*Com Thaissa Barzellai
Ao som de trilhas clássicas e contemporâneas do universo cinematográfico, como as do “O Rei do Show” (Michael Gracey) e da “Lista de Shindler” (Steven Spierlberg), apresentadas pela Orquestra Sinfônica de Gramado, a 47ª edição do Festival de Cinema de Gramado abriu as portas do Palácio dos Festivais nesta sexta-feira, dia 16, para receber convidados e produções escolhidas a dedo para iniciar uma das principais e mais prestigiadas festas do cinema. A emoção desfilou no tapete vermelho com a calorosa chegada da atriz Sonia Braga ao lado da equipe do premiado “Bacurau” e com homenagens aos curadores do festival Eva Piwowarski e Rubens Ewald Filho, que morreram neste ano. A noite continuou com as primeiras exibições da Mostra Competitiva, na qual o longa-metragem “O Homem Cordial”, do premiado Iberê Carvalho, e o curta-metragem “A Pedra” (Iuli Gerbase), foram os escolhidos para darem a largada. Vem saber tudo que rolou!
Esqueça os flashes de fotógrafos e multidões de jornalistas em busca do comentário perfeito. Tudo isso foi para o segundo plano quando, durante a passagem da equipe do premiado ‘Bacurau’, os gritos emocionados do público ansioso pela chegada da atriz Sonia Braga ecoaram pelo tapete vermelho. Frases como “Sônia, eu te amo” e “Nossa Gabriela” foram o que realmente chamaram a atenção da atriz que, sempre deslumbrante, fez questão de cumprimentar a todos. “É uma delícia, olha isso”, disse a atriz sobre o carinho recebido. Nome recorrente nos 47 anos de história do festival, a atriz retornou à Serra Gaúcha depois de dois anos, mais uma vez, com um filme escrito e dirigido pela dupla Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Inspirado pelos climas barrocos do faroeste, um gênero quase não visto nas produções brasileiras e pelo teor tecnológico que à primeira vista pode parecer uma influência da ficção científica, os diretores criaram um universo à parte, mas sem perder a realidade dos fatos, para contar a história não de Bacurau, mas do seu povo. Invadida por uma onda distópica, a população, que se despede de uma das suas principais líderes, Carmelita, precisa lidar com assassinatos inesperados contra os moradores da região. O problema é que o sinal de celular e até mesmo a presença nos mapas do país foram retirados de seu poder. Para reverter toda a situação, todos colocam as desavenças de lado e, unidos pelo poder de resistência, vão em busca da sobrevivência.
É exatamente essa questão, tão pautada pela memória local e cultural, que atraiu Sonia para o roteiro e a emocionou durante a sessão especial no Festival. “Eu ainda não tinha visto o filme em tela grande e esse é um filme para ser visto no cinema. É difícil falar, sabe? Eu fiquei muito emocionada, porque é muito além de qualquer coisa. Se você não viu o filme, você não vai saber… mas é que eu tomo um remedinho e eu estou vendo todo mundo ampliado, entendeu? Eu estou com um otimismo enorme e eu acho que quando as pessoas virem ‘Bacurau’, que é um filme que se passa no futuro, elas vão se unir de novo, vão conversar, vão entender que a gente pode ter um futuro melhor”, refletiu.
O contato com as questões sociopolíticas não só relacionadas ao macro como também ao micro, vide a luta pelas causas indígenas – algo pouco falado na grande mídia -, caminham lado a lado da trajetória artística da atriz. Em suas redes sociais e em diversas entrevistas, Sonia faz questão de abrir espaço para discussões que lhe agregam, e o filme “Bacurau” foi um projeto que ela viu como uma porta de entrada dos espectadores nesse mundo que poucos vêem e cujos detalhes são capazes de expandir o olhar, gerando uma reflexão sobre o contexto atual que talvez por outro caminho não tivesse sido possível. “Eu estou com essa sensação de que nós podemos fazer coisas muito boas. Quando eu estive aqui com “Aquarius”, eu voltei ao Brasil como um país dividido e foram tempos muito tristes para a gente. Então, eu acho que está na hora de a gente consertar tudo isso”, completou a atriz que divide a vida entre Nova York e Rio de Janeiro.
É com essa premissa que ‘Bacurau’ tem conquistado premiações e festivais ao redor do mundo. E a viagem tem sido bem sucedida. Em Cannes, o longa foi premiado, ao lado de “Les Miserábles” (Lady Ly), com o Prêmio do Júri, um dos mais esperados e conceituados do âmbito. Na Alemanha, não foi diferente e a equipe trouxe para o Brasil o troféu de Melhor Filme do Festival de Munique. Agora, a história foi a escolhida para representar o país no Prêmio Goya, na qual concorre na categoria de Melhor Filme Íbero-americano. A cereja do bolo, no entanto, foi a exibição em terras brasileiras na abertura do maior festival do país, onde a expectativa para conferir o que tanto tem se falado na mídia internacional estava quase sufocante – principalmente, para os fãs assíduos da sétima arte. “O filme é brasileiro, nós somos brasileiros e eu acho que o filme é sobre o Brasil, sobre história, sobre memória e ao mesmo tempo é um faroeste. É um filme de aventura e feito com brasileiros para os brasileiros. Essa é a vontade que a gente tinha de finalmente chegar aqui em um festival tão tradicional quanto o de Gramado”, comenta Juliano Dornelles.
Como um filme para brasileiros feito por brasileiros, é claro que não poderia faltar uma exaltação, por mais discreta que tenha sido, por parte da equipe e, principalmente, do diretor Kleber Mendonça Filho, que durante uma passagem por Cannes em 2016 protestou contra o Governo Temer. Antes do início da exibição do longa, Kleber abriu um espaço para todos da equipe falarem ao microfone nome e profissão que ocupam na indústria audiovisual, começando pela estrela da noite, Sonia Braga. O momento foi de extrema importância. Só essa produção, por exemplo, gerou mais de 800 empregos. Sendo assim, nada mais justo do que em um filme cuja resistência se faz presente, deixar claro que os cineastas estão juntos. Afinal, “somos profissionais da área da cultura e merecemos respeito”, disse o diretor.
Nesse clima de enaltecimento e valorização cultural, a noite continuou com o início da Mostra Competitiva Nacional, que trouxe duas produções, dentre os mais de mil inscritos, para o primeiro dia de evento. Acompanhado do curta “A Pedra”, uma história dirigida por Iuli Gerbase que aborda a inocência da jovem Pietra, o longa-metragem “O Homem Cordial” trouxe um outro lado do Brasil para a sala de exibição. Enquanto “Bacurau” focou mais na união do povo, o thriller psicológico assinado por Iberê Carvalho, premiado diretor de “O Último Cine Drive-in”, traz à tona como a polarização política de 2015 rachou as principais bases de sustentação social do país, sendo uma delas entre os próprios cidadãos. Tudo começa quando Aurélio, um homem de 60 anos, precisa enfrentar uma plateia tomada pelo ódio gerado pelas divergências políticas. Diante dessa situação, o personagem, interpretado por Paulo Miklos, precisa descobrir como deixar de ser alvo de grupos radicais. O que ele não espera é que a sua ajuda talvez seja uma figura pública que cada vez mais tem sido questionada: Helena, uma jornalista que se interessa pelo caso.
Sempre atento à cena cinematográfica nacional e internacional, o Festival de Cinema de Gramado é um dos principais incentivadores da produção audiovisual do país. A cada ano, grandes obras e nomes são revelados, agregando prestígio e qualidade a um cinema que vem tentando ficar de pé. No entanto, se depender de Edson Humberto Néspolo, presidente da Gramadotour, o Cinema Brasileiro – sim, em letras maiúsculas -, continuará fortalecido a cada edição. “É como eu falo sempre: o governo federal tem que ver com mais carinho os festivais e eu faço um apelo para fortalecer os festivais. O cinema nacional bateu os recordes esse ano, porque há muita produção boa sendo realizada no Brasil”, afirma.
Com o carinho de amigos e familiares presentes, os curadores Eva Piwowarski e Rubens Ewald Filho, falecidos em janeiro e junho, respectivamente, foram lembrados em uma homenagem póstuma pelo trabalho distinto e necessário que fizeram durante todos os anos de curadoria no Festival. Na presença das apresentadoras Renata Boldrini e Marla Martins, o argentino Daniel Gonzáles, marido de Eva, e um integrante da produção do festival, subiram ao palco para receber as homenagens. O Festival de Gramado acontece até o dia 24 e diversas produções, como “Hebe – A Estrela do Brasil” (Maurício Farias) e “Legalidade” (Zeca Brito), e homenageados do ano, como Carla Camurati, Lázaro Ramos e Maurício de Sousa estão confirmados no Palácio dos Festivais.
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