*Por Thaissa Barzellai
Para o bem ou para o mal, o sobrenome da atriz Agnes Brichta, que faz a sua estreia nas telinhas na nova novela das 19h “Quanto Mais Vida, Melhor”, da Rede Globo, é carregado de predicados. Primogênita do ator Vladimir Brichta, Agnes reconhece a bagagem privilegiada a qual teve acesso ao mesmo tempo que não hesita em afirmar que seu objetivo enquanto artista é traçar o seu próprio caminho – a despeito das expectativas. “Eu sou filha do meu pai, eu não vou negar isso nunca, mas eu também sou uma pessoa inteira, separada e independente. Eu acho importante criar a minha própria imagem, porque eu não quero estar neste lugar somente a serviço de ser filha de quem sou. Eu estou muito feliz com o trabalho que eu entreguei e acredito que seja positivo para mim como artista por si só. Eu sei o que eu tenho que fazer: é fazer bem o meu trabalho, independente de onde eu vim”, declara a atriz que desde cedo mergulhou no estudo teórico das artes cênicas e passou por escolas como Catsapá Escola de Musicais e Núcleo Gema.
Em uma coincidência digna de um clássico folhetim, este primeiro grande salto da carreira de Agnes a colocou, no entanto, cara a cara com o maior exemplo artístico que ela teve desde cedo. Após uma apresentação de fim de ano da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) com mais de 100 pessoas, o produtor de elenco Guilherme Gobbi a convidou para interpretar a jovem Martina, que viria a ser filha do ex-jogador Neném, personagem de Vladimir, sem saber do vínculo entre a dupla, surpreendendo a todos com a relação de pai e filha que não ficaria somente na ficção. “Quando o Guilherme soube que eu tinha parentesco com o meu pai, ele chegou a telefonar para ele para ter certeza de que não haveria problemas em repetir esse laço em cena. O Vladimir é um ator que eu nunca imaginei que iria contracenar, mas, é claro, é algo que eu adoraria fazer. Até porque eu nunca achei que eu pudesse sonhar com isso, ainda mais em um primeiro trabalho. Foi muito gostoso e especial trabalhar com ele porque nós encaramos a profissão de uma forma muito parecida”, afirma a atriz que foi uma das últimas a ser escalada para o folhetim. Já no início da novela, a presença da dupla na trama, que acompanha quatro pessoas que tiveram uma segunda chance na vida após ficarem diante da morte, repercutiu entre os espectadores que ficaram chocados com as semelhanças entre os dois.
Para Agnes, Vladimir é o ator que mais viu atuar e, apesar da certeza de que não quer viver à sua sombra, não há como negar que em diversos momentos a sensação era a de que estava diante de um espelho. “Nós conversávamos muito sobre o ofício, diversas vezes levei coisas do meu curso e das minhas leituras para debater com ele. Nós temos essa relação um pouco filosófica sobre o trabalho, sem dar muitas indicações diretas, sabe? Eu já tinha visto meu pai atuando, mas, ao vê-lo por trás das câmeras nessa intensidade, eu aprendi muito só de assisti-lo. À princípio eu não notava que eu era tão parecida com ele. Mas, quando sentamos para assistir algumas cenas juntos, eu tomei consciência de que eu tenho alguns trejeitos de atuação dele”, lembra Agnes que usou essa intimidade a favor da relação dos dois na trama.
Na novela, Martina, ou Tina para os íntimos (fãs inclusos), é uma das duas filhas de Neném, que compartilha com o pai a paixão futebolística e sonha em seguir os seus passos. Aos olhos de Tina, Neném é mais do que um antigo fenômeno da bola, é um herói de aspecto quase divino com o qual ela compartilha seus anseios, visões de mundo, angústias e, claro, a marra. Tal qual uma jovem prestes a terminar o ensino médio, Martina vai passar por um processo de amadurecimento que irá interferir na forma que enxerga Neném. “Ela é encantada com tudo o que ele faz e fez na carreira de jogador, e os dois enxergam o mundo de forma muito parecida, têm uma personalidade esquentada, de quererem resolver os problemas brigando. Mas, ao amadurecer, ela passa por uma transição de reconhecer que Neném também tem defeitos, algo que aprendemos ao longo da vida”, conta.
No decorrer da trama, o público vai viver junto da jovem essa transição da fase adolescente para a adulta, comum a todos, e acompanhar o desabrochar de outras facetas que ela tem receio em mostrar por não serem consideradas características de alguém forte. “Chega um momento que nós experimentamos as relações de forma diferente e ela vai viver isso. Mesmo ela sendo cabeça dura, as certezas e seguranças que ela tem vão se mostrar não tão sólidas quanto ela pensava. A vida sempre dá uns baques. No caso dela, ela acha que é a rainha do mundo, que sabe exatamente o que está fazendo, apenas para perceber que, quando terminar o terceiro ano, as coisas não vão ser como imaginadas. Ela tem sua vulnerabilidade e vai fazer as pazes com isso, vai perceber que não precisará fugir para se permitir ter esse lado”, diz a atriz que, diferente da personagem, não vivenciou tantas rupturas para chegar na vida adulta.
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Formada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Agnes Brichta sempre traz uma abordagem mais analítica para os seus trabalhos, seja nos palcos ou diante das câmeras. Na construção de Martina não foi diferente e, logo na primeira lida do roteiro, estava à procura do que mais a interessa em qualquer personagem que venha a fazer: a vulnerabilidade humana – que, segundo ela, é a contradição que faz com que exista uma conexão com os personagens. “Eu estudei psicologia para construir uma visão do que nos faz humanos. Temos medo de sair das nossas caixas, por não querer nos contradizer, ao invés de somar as complexidades. Então, é muito interessante quando eu tenho uma personagem que, na maior parte do tempo, tenta ser forte e ao longo das cenas vamos descobrindo arcos onde ela é insegura e não se sente tão à vontade assim para mostrar o que é especificamente e deliciosamente humano. Somos seres contraditórios e é isso que faz a gente ver que esses personagens são de verdade. Quando a gente mostra os dois lados, há uma chance de identificação maior”, reflete.
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Se a psicologia foi uma grande aliada na construção da personagem, de nada ela lhe valeu para se tornar uma talentosa jogadora de futebol feminino. O fascínio pelo esporte, uma das principais características da personagem, não é totalmente compartilhado pela atriz, que, apesar de se declarar flamenguista, só assiste aos jogos de Copa do Mundo e não se arriscava para além do gol quando jogava com amigos no colégio. “Tive aula com o Jamir Gomes, ex-jogador do Grêmio e do Botafogo. Eu precisei correr bastante atrás, não é uma coisa muito fácil para mim, mas acabei gostando mais do que eu imaginava. Talento eu não sei o quanto que dá para dizer se tenho ou não, mas o fato é que me diverti para caramba”, brinca. A personagem entra em campo em um pós momento no qual o Brasil foi motivo de orgulho internacional devido às atuações das atletas de diferentes modalidades, dentre elas o futebol, nas Olimpíadas de Tóquio, levando a discussão mais uma vez a nível nacional.
Pela primeira vez, o Brasil chegou ao país sede com uma delegação formada por 46,7% de mulheres e conquistou 21 conquistas no pódio, das quais nove foram vitórias femininas. O futebol feminino, mesmo que não tenha chegado à final, deu o que falar e foi celebrado pelo dobro da audiência. Por que então um país com esses dados, só para citar alguns, ainda insiste em desconsiderar a presença das mulheres, principalmente no futebol? Esta é a pergunta que Agnes Brichta se fez e, a seu ver, Martina pode ser uma ferramenta essencial para a evolução do diálogo e, subsequentemente, para a efetiva elaboração de políticas públicas e desmantelamento de estigmas sexistas que ainda se fazem presente. “Temos uma craque do futebol e é isso, nem precisa ter revoluções a respeito disso. É simplesmente aceitar e desconstruir essa convenção social que reflete em menos público, menos espaço na televisão, menos investimento e, portanto, menos oportunidades para meninas se sentirem aptas a serem jogadoras com grandes talentos. É um ciclo. Espero que isso crie uma reflexão no pensamento social porque já passou da hora de mudar”, declara.
Como parte integrante de um núcleo jovem formado majoritariamente por atores negros, como Diego Francisco, Fabrício Assis e Camila Rocha do grupo teatral Nós do Morro, Martina também pode vir a ser uma grande aliada na luta por uma representatividade negra que vai além da presença de personagens que estão cumprindo cotas e são oradores de discursos performáticos. Embora não se declare, apesar do fenótipo, uma mulher negra — e agora nem parda –, percepção oriunda de estudos referentes ao assunto realizados na pandemia, Agnes Brichta entende a importância de se ver refletido em um semelhante e ficará honrada caso qualquer jovem negra olhe para a televisão e diga “Esta poderia ser eu!”. Afinal, a presença das narrativas negras no audiovisual evoluíram, mas ainda não é ideal. “Eu não me identifico como uma mulher preta, mas eu estou em um núcleo que com certeza vai trazer mais oportunidades para pessoas pretas se reconhecerem. Já tive meus momentos de assistir TV e ficar me questionando o porquê de ninguém falar um pouco mais da minha história. Se eu tiver falando com alguém que não costuma estar em protagonismo nesse espaço, já é minha alegria”, diz.
No auge dos seus 23 anos, Agnes Brichta ainda tem muito o que mostrar e viver, mas já em seu primeiro trabalho, sem dúvidas, teve a experiência que muitos só vêm a ter com anos no mercado. Além de dividir a cena com o pai, um dos principais nomes da teledramaturgia brasileira, Agnes também teve a oportunidade de aprender com atores que são símbolos da cultura novelesca: Elizabeth Savala e Marco Caruso. “Tem muitos atores nessa novela que admiro e com os quais eu aprendi olhando ou fazendo uma cena, mas a Elizabeth e o Caruso estavam comigo absolutamente todos os dias. Somos uma família que vive muita coisa em conjunto, então eu aprendi muito com eles. É um toque, uma sugestão ou só escutar eles falando do caminho deles. Isso é muito enriquecedor”, relembra. A atriz Julia Lemmertz, embora esteja em outro núcleo da novela como Carmem, uma empresária ambiciosa e descolada, também foi motivo de tietagem para Brichta, que já trazia uma admiração pela atriz quando o encontro delas ainda não havia saído da sala de aula. “Uma vez eu assisti a um debate sobre teatro em que ela também era aluna e eu me identificava com as coisas e o jeito que ela falava. Ali, eu acabei virando fã da pessoa. Ela é muito incrível e sensacional, então só de estar na mesma novela que ela eu já assumi de novo o papel de fã’’, relembra.
Sem dúvidas, “Quanto Mais Vida, Melhor” foi um aprendizado que a jovem atriz vai levar para o resto da vida. Martina foi o primeiro gol de placa e deixou um legado pessoal para a tímida e cautelosa Agnes. “Eu espero levar da Tina a assertividade dela. Como boa libriana, eu fico muito tempo na dúvida e às vezes é bom partir para ação. Vou lembrar dela sempre que tiver sentindo que eu estou muito na minha cabeça para ver se ela me coloca de volta à realidade”, afirma. Agora, depois de um ano de trabalho em plena pandemia, a atriz se deleita com a vida de espectadora e confessa que está acompanhando a novela junto dos fãs. “Mais importante do que eu senti depois de fazer uma cena é o que o público está sentindo. Já tive a oportunidade de ver pessoas dizendo que se emocionaram ou que se sentiram tocadas por uma cena e é isso que me deixa muito realizada. É a parte comunicativa da arte que consegue transmitir para o outro um sentimento, fazê-lo torcer, se emocionar e se reconhecer”, relata a atriz que já tinha fãs clubes dedicados a ela desde quando publicava covers de músicas tocadas com ukulele.
Apesar de ter uma relação de afeto e diálogo com aqueles que vibram com o seu trabalho, Agnes enxerga o olhar público como uma faca de dois gumes: de um lado, a adoração; do outro, a cultura de cancelamento. Para ela, esse fenômeno do nosso zeitgeist é reflexo do receio humano em explorar a sua complexidade e, por isso, investe nessa busca constante por uma dicotomia maniqueísta, potencializada pelo fluxo das redes sociais. “Nós, por vezes, enxergamos a internet como trivial, mas hoje eu tenho meu olhar crítico sobre isso que me protege, psicologicamente, de não ceder tanto assim a esse lugar extremista. É um lugar que cabe menos contradição por ser muito fácil e rápido, então nós julgamos rápido para passar para a próxima curtida, próximo assunto. Precisamos ter o exercício pessoal de desacelerar porque na internet vamos ser sempre sacudidos e só de entender isso já me dá um certo alívio”, reflete.
Assim como Martina, Agnes ainda está em processo de autoconhecimento pessoal e profissional, e admite que talvez nunca consiga alcançar a gloriosa resposta, mas para ela essa é a beleza de tudo. Focada em finalizar seus estudos cênicos na CAL, na sua atuação pensante, a porta para novos trabalhos, personagens e experiências distintas e desafiadoras, continuará sempre aberta, inclusive para a mãe e atriz Adriana Esteves – que a criou com Vladimir após o falecimento da mãe biológica de Agnes, a cantora Gena Karla Ribeiro, quando a jovem tinha apenas 2 anos. “Eu nunca tinha ousado pensar que trabalharia tão cedo com meu pai ou com a minha mãe, embora existisse uma brincadeira. Esse trabalho me permitiu ousar e pensar com quem eu gostaria de trabalhar. Trocar com ela, com certeza, seria maravilhoso”, diz. Sendo assim, com tantas possibilidades no horizonte em uma só vida, quem precisa de uma segunda chance?
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