Retorno à TV e crítica à sociedade mais careta. Kadu Moliterno quer fazer versão cinematográfica de Juba e Lula


Kadu Moliterno é símbolo da jovialidade dos anos 80. Aos 52 anos de carreira e 70 de idade, ator está há 3 anos fora do ar. Tentando retornar à televisão e trabalhar nas novas plataformas de streaming – ele atua em “Quatro por Quatro”, que recentemente entrou no catálogo da Globoplay -, o artista pretende fazer um revival de um de seus maiores sucessos na televisão, a série “Armação Ilimitada”, na qual vivia o personagem Juba, dupla de Lula. A série icônica é pioneira ao trazer o poliamor na TV aberta aos sábados à tarde. Segundo ele, a sociedade contemporânea é muito mais careta que aquela que havia na época da ditadura. Ator revisita a carreira, fala sobre sua primeira peça, na qual teve que ficar nu, sobre a vez em que tivera de fugir de um tubarão nas gravações de “Água Viva”, e aborda a importância de haver falado abertamente sobre a homossexualidade do seu filho

*Por Vítor Antunes

Kadu Moliterno é um símbolo oitentista. Ainda que nascido na capital de São Paulo, por estar fortemente ligado à identidade carioca, são poucos os que não reconhecem nele a imagem de um “garoto de Ipanema”. Os 70 anos de um eternamente jovem o credenciam ao título de “vovô garoto”, segundo ele próprio nos disse. O sucesso em “Armação Ilimitada”, de 1985, despertou nos protagonistas, Kadu e André di Biase o interesse em um revival, sobre como seria a vida dos surfistas 30 anos depois. Três anos fora da tevê aberta, Moliterno está tentando voltar ao ar nas grandes redes e recadastrou-se nas emissoras, ainda que lamente não ser reconhecido pelos produtores de elenco mais jovens – “os profissionais dizem não conhecer os atores mais veteranos”. Nesta entrevista, o ator relembra seus personagens mais marcantes, como o Rodrigo de “Anjo Mau” (1997) e o Samuel Spadafora, de “Quatro por Quatro”, que recentemente entrou no catálogo da Globoplay.

Kadu Moliterno: aos 70 Anos ator está a pleno vapor (Foto: Gutho Oliveira)

JUBA E LULA, UOU!

Às pessoas que viveram os anos 1980 a frase que abre este trecho da reportagem não é apenas leitura. É sonora. A dupla de surfistas cariocas que protagonizou o seriado “Armação Ilimitada” (1985) é, ainda hoje, lembrada. mesmo por aqueles que não assistiram a série, cuja exibição aconteceu até 1988. Está nos planos de Kadu Moliterno e André di Biase um filme que conta a trajetória dos personagens, observados com distanciamento de 30 anos. O ator relata-nos que o projeto está nas tratativas de execução há oito anos, e quando estava às raias da montagem, foi impedido pela pandemia:  “O filme do Juba e Lula tem um roteiro do Luís Carlos Baião, maravilhoso. Estávamos para fazer quando começou a pandemia e o mundo parou. É um sonho nosso, meu e do André em reviver esses dois heróis. Há muitas gerações que têm saudades desses personagens e pedem para eles voltarem. O programa ainda tem muitos fãs”, afirma.

Com efeito, “Armação Ilimitada” além de seu valor simbólico, é muito transgressora em sua narrativa, que dialoga com a linguagem das revistas em quadrinhos. Os autores que colaboraram na escrita do projeto – Patricya Travassos, Euclydes Marinho e Antonio Calmon – permaneceram associados à estética disruptiva e moderna do seriado. No programa, os protagonistas namoravam a mesma garota e o trisal adotava um menino de rua. Algo muito transgressor para o Brasil recém-saído de uma ditadura, encerrada no ano de estreia da série, mas que ainda respirava o vapor quente da Censura ali, em seu cangote.

Segundo Moliterno, a inspiração do trisal nasce numa referência ao filme “Jules e Jim”, de Truffaut (1932-1984), ícone da Nouvelle Vague francesa. O ator salienta, contudo, que o texto da série e sua ousadia talvez não fossem bem aceitos hoje em dia “Muita coisa do ‘Armação’ hoje em dia não seria liberado. Não apenas o fato de os dois rapazes namorarem a mesma menina ou adotarem um garoto abandonado. Há textos ali que, creio, não seriam bem interpretados hoje”.

Um trisal vivendo um relacionamento poliamorista nos Anos 1980 em “Armação Ilimitada (Foto: Acervo/Globo)

O artista observa que “A sociedade moderna é mais careta. Eu acho que o preconceito avançou muito, assim como o racismo, a homofobia. Tudo ficou numa lente aproximada demais. Creio haver uma diferença grande de 35, 40 anos atrás para hoje. Havia uma liberdade maior para tudo, não havia barreiras para a criatividade: As coisas iam para o ar e ponto final”.

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Hoje em dia eu sinto haver uma censura velada tanto da parte das lideranças como do governo e da sociedade. Algo que aparentemente não é censura, mas há sim algo, no fundo. Para mim, ou há liberdade ou não. O meio termo incomoda e acho que estamos vivendo esse meio-termo hoje. Não se pode dizer isso, não se pode falar aquilo… O politicamente correto é uma coisa que ninguém sabe exatamente o que é –Kadu Moliterno

Diante de um terreno político ferino que o Brasil tornou-se, diante de uma eleição profundamente polarizada, Kadu prossegue sua fala sobre a “caretice” da sociedade contemporânea: “Quando se assume um lado político hoje, você, automaticamente, torna-se um criminoso para o outro lado. Antigamente éramos mais livres. Tanto que a década de 1980 foi uma das mais criativas. Ainda que tivesse havido uma pressão muito grande, quando houve a abertura ela revelou-se com grande criatividade, com bandas de rock como Titãs e Paralamas, por exemplo. Todos tinham uma flecha na mão. Às vezes a ditadura nem percebia que estava sendo criticada. Não há hoje letras contundentes. Acho esse momento careta, estranho, complicado”.

Aliás, em se tratando de rock, coube a Moliterno o pioneirismo em apresentar a primeira edição do Rock in Rio, também em 1985. O convite surgiu exatamente em razão do sucesso como o “Juba”, da série da TV: “O [Roberto] Medina me chamou para apresentar o RiR por causa da série. Pouco antes de eu me apresentar, pedi o texto que usaria na apresentação dos shows. Disseram que queriam, exatamente “o Kadu do Armação”. Eu me vi tendo que criar uma apresentação para aquelas 100 mil pessoas. Foi a maior plateia da minha vida”

“Vendo a mim em meio àquelas pessoas, pedi ajuda a Deus para criar uma apresentação. Foi quando me veio à cabeça a ideia de dedicar o festival à Elis Regina (1945-1982) que havia falecido há pouco tempo, na ocasião. A plateia veio abaixo – Kadu Moliterno   

Kadu Moliterno apresentando o primeiro Rock in Rio, em 1985 (Foto: Reprodução/TV Globo)

 A MATURIDADE E A TELEVISÃO

Kadu Moliterno amadureceu na televisão. Seu primeiro trabalho em TV foi em 1970, na TV Record, onde em 1972, faria seu primeiro protagonista na novela “O Príncipe e o Mendigo”. Na Globo, estrearia ainda em 1972, no sucesso “Selva de Pedra”. Seu primeiro papel relevante, contudo, foi em “O Pulo do Gato”, de 1978, no qual introuduziu a sua iagem como um “surfista de Ipanema”. Tanto que havia quem dissesse que ele nem era ator. era um surfista que a própria Globo pegou para viver o “Billy”, na trama de Bráulio Pedroso (1931-1990). Depois de vários anos de contrato ininterruptos com a TV dos Marinho,  o último trabalho de Moliterno naquela casa foi em “Alto Astral”, de 2015. Nos anos seguintes vinculou-se à Record, canal onde toda a trajetória foi iniciada. O ator, atualmente, tenta fazer o caminho de volta às telas: “Tenho feito contato com os streamings, e eu acho que é esse o caminho. Os players oferecem personagens mais densos e eu acho importante fazer uma série. Meu nome está na Globo e na Record, que estão recadastrando os seus talentos”.

Kadu Moliterno foi Billy em “O Pulo do Gato” (Foto: Acervo/Globo)

Fiz esse cadastro também devido aos novos produtores dizerem não conhecer os atores mais veteranos. Eu discordei, pois são 40 anos dentro da Globo é difícil não me conhecerem. De qualquer maneira estes são novos tempos – Kadu Moliterno

Ainda que possua 70 anos, o ator não aparenta tê-los. O que foi um “problema” para ele, quando preencheu os dados das emissoras a fim de cumprir qual a faixa etária dos personagens os quais se encaixaria: “Quando fiz o cadastro na Globo fiquei na dúvida. Havia uma pergunta que era voltada a idade a qual um personagem se encaixaria a mim. Respondi que estaria na idade compreendida entre 40 e 60”. Ainda de acordo, com a sua fala, seria interessante que houvesse “um autor que escrevesse para mim, um personagem que, ainda que tivesse 70 anos tenha um espírito jovem. (…) Tanto que tenho sido chamado de vovô garoto”.

Ainda segundo o ator, o fato de ele não estar sendo escalado, “deve-se, em primeiro lugar, à pandemia. Em segundo lugar a uma mudança do mercado. Não é possível ver notícias como ‘Fulano de Tal’ acabou de ser contratado, mas o contrário. Está havendo dispensas de grandes nomes.  Perguntamos a Kadu, então, se a TV exige haver uma imagem jovial. Ele negou, mas fez considerações contundentes:

As TV’s passaram a escalar quem tem mais seguidores , os mais veteranos não tem  muitos seguidores. Isso é coisa jovem, da garotada. A aponto de uma ex-bbb virar protagonista de novela das 9 por que junto a ela há uma legião de seguidores. Ela não tem experiência como atriz e estão valorizando isso. (…) Não há uma valorização das pessoas que têm 50 anos de carreira. Deixam de aproveitar a experiência dessas pessoas (…) A modernidade está investindo na garotada de 20, 30, 40 anos como eu também já fui. Atores como Lima Duarte continuam trabalhando. Eu acho que é uma questão de escrever [para estes atores] – Kadu Moliterno

Kadu Moliterno quer fazer versão cinematográfica de Juba e Lula (Foto: Gutho Oliveira)

VIDA

Como citado anteriormente, um dos primeiros trabalhos de Kadu Moliterno na TV foi em tramas da TV Record. Um dos primeiros trabalhos relevantes no teatro, porém, foi a montagem de “Lição de Anatomia”. Montagem na qual boa parte do elenco, em plena ditadura, recebia o público totalmente nu. A nudez surpreendeu o elenco de tal maneira que Moliterno pensou em desistir de fazê-la e voltar a trabalhar como propagandista “Eu trabalhava como propagandista e enquanto passava pela Rua Augusta, em São Paulo, vi que haveria um teste para uma peça de teatro. Entrei com o meu terno e a pastinha na mão, fiz o teste e consegui, entre 30 candidatos, ser aprovado. Estávamos ensaiando normalmente e a uma semana da estreia o diretor falou que nós iriamos tirar a roupa toda e só então a peça começaria. (…) Tomei um susto e liguei pro meu chefe antigo e pedi para voltar ao trabalho como propagandista e ele disse q não havia como eu voltar por que o meu lugar já estava ocupado”. A peça foi um escandaloso sucesso naquela década e permeneceu anos em cartaz. revelou, não apenas Kadu Moliterno, mas Herson Capri e Imara Reis.

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Regina Helena fez as fotos do cartaz de “Lição de Anatomia”. Sucesso dos Anos 1970 (Foto: Reprodução)

Um dos primerios trabalhos do ator na Globo, quando as novelas deixaram de ser em preto-e-branco foi “O Pulo do Gato”. Depois fez o galã de época de “A Sucessora”, para em seguida viver o “filho-do-diabo” em “Paraíso”. Nesta última, talvez o ator seja um dos primeiros a participar da abertura de uma novela com um clipe especial tendo nele o protagonista. Anos depois, outro personagem protagonista ganhou relevância: O Rodrigo, de “Anjo Mau”. Conta-nos o ator que houve muita resistência interna na televisão para que ele desse vida ao protagonista do remake “O Carlos Manga (1928-2015) apostou muito em mim, a contrário de outras correntes na Globo que não viam em mim aquele personagem”, relata. Além disto, conta que não usou a primeira versão do folhetim como referência.

Um trabalho do ator que recentemente entrou no catálogo da Globoplay foi o detetive Samuel Spadafora, em “Quatro por Quatro”, do qual ele diz ter sido “muito divertido fazer. O Carlos Lombardi tem um texto excepcional”. Diante de uma carreira extensa, o ator diz ser “muito grato à sua carreira. Os personagens vieram ao meu encontro. Eu nunca procurei trabalho. Eles sempre vieram até mim. Sou muito feliz com a minha carreira e tenho orgulho de tudo q eu fiz. Tenho as recordações as mais felizes possíveis na carreira”

“A gente deve ser homenageado em vida. No Brasil acontece isso de os seus artistas serem esquecidos e só serem lembrados quando morrem e o Jornal Nacional faz uma matéria em sua homenagem. Eu acho que a morte não existe. Ela só acontece de fato quando ninguém se lembra de você. Enquanto há lembrança não há morte. Só morre aquele que é esquecido. – Kadu Moliterno

Diante de tantos personagens e tanta personalidade, o ator flagrou-se diante de uma realidade que o surpreendeu na ocasião: A homossexualidade de seu filho, Kenui. Ainda que não esconda o orgulho do herdeiro, Moliterno não esconde sua preocupação com o fato de o Brasil ser um dos países que é mais preconceituosos com homossexuais “Quanto ao meu filho, eu sempre percebi sua sensibilidade, mas achei tratar-se apenas de sua personalidade. Quando me procurou para falar de sua orientação sexual estava com medo da minha reação e ela foi a melhor possível. Hoje ele defende e ajuda muita gente que passa pela mesma situação. (…) O meu medo é de que ele possa ser agredido já que no Brasil o preconceito é muito forte. A gente vê muita gente ser assassinada por ser gay. Tenho receio mas nunca fui contrário a nenhum posicionamento quanto a isso”, disse ele sobre o rapaz, que é biólogo e mora numa fazenda nos Estados Unidos.

Kadu Moliterno e Kenui. Pai e filho empenhados na causa LGBTQIAPN+ (Foto: Reprodução/Instagram)

Numa das cenas da novela “Água Viva” o ator e a equipe técnica precisaram fugir de um tubarão, enquanto gravavam uma cena em alto mar, na altura da Barra da Tijuca (Rio). Ele explica que “Paulo Ubiratan (1947-1998) viu um tubarão na agua. Quando a barbatana do tubarão fica fora da agua é sinal de que ele está pronto para morder. Após ele dar duas voltas no braço onde estávamos eu consegui, rapidamente, nadar e alcançar a proa do barco”. Quarenta e dois anos depois, de qual tubarão Kadu foge? “Corro dos invejosos, aqueles que entram na nossa vida e têm maldade no coração, como gente fofoqueira, invejosa, negativa. O sucesso e a felicidade incomodam o invejoso”, filosofa.