Record teria perdido todo o seu arquivo em P&B de novelas, tramas bíblicas dos 90’s e estreia de Ana Maria Braga


A disponibilização de conteúdos faltantes ou a ausência de novelas e programas produzidos pela Globo e, recentemente, disponibilizados no Globoplay acendeu uma grande discussão sobre a historiografia da TV. Por onde andam as novelas e programas das outras emissoras? A Record, emissora mais antiga em rede nacional ainda em atividade, passou por algumas mãos até chegar às da atual diretoria. E de igual maneira, o zelo, ou a falta dele, para o que diz respeito ao arquivo fica latente. Informações apontam que, ainda que a Record tenha montado o seu centro de documentação em 1985, ela apagava sistematicamente os tapes de sua programação até 1997. Com isso, o primeiro ano de Ana Maria Braga na casa, 1993, desapareceu de seu arquivo. Conseguimos ter acesso a um pequeno vídeo daquele ano, o que talvez nem a Record tenha mais. Ana Maria lamenta não apenas a perda deste material, mas também o de sua passagem pela Tupi. ” É lamentável que as fitas tenham sido perdidas, pois elas representam não apenas a minha trajetória, mas também um pedaço da cultura televisiva do país”. Cogita-se que até mesmo as novelas bíblicas dos Anos 1990 estejam incompletas. Tanto os musicais como as novelas do período 1953-1970 teriam sido perdidas em incêndios ou regravadas, caso de “As Pupilas do Senhor Reitor”, que teria dado vez a jogos de futebol. Procurada a falar sobre esse assunto, a Record não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.

*por Vítor Antunes

No rastro da inclusão de novelas incompletas no Globoplay e do “Projeto Fragmentos”,  no qual as novelas com capítulos faltando eram disponibilizadas no streaming da emissora líder, muito começou a ser levantado sobre o patrimônio ainda mantido pelas outras emissoras ainda ativas. Há muita perda de material de arquivo. Talvez o mais grave problema venha da Record. Muito do arquivo da TV ainda em preto e branco teria sido perdido, ainda que, no passado, a emissora não tenha se notabilizado pela produção de novelas, mas de musicais. Destes, não há nada de “O Fino da Bossa” ou “Jovem Guarda“, programa que acabou por batizar um movimento musical brasileiro. De igual forma, a estreia de Ana Maria Braga está ausente e até mesmo as novelas bíblicas teriam sido afetadas. A primeira incursão da Record no segmento de teledramaturgia religiosa, em obras como “A Filha do Demônio” e “Olho da Terra“, ambas de 1997, podem estar entre as obras perdidas. Procurada desde o dia 1º de fevereiro a falar sobre o tema, a Record não se manifestou. O espaço segue aberto para a TV.

Ana Maria Braga lastima que parte de sua própria história tenha sido perdida. Afinal, não só seu primeiro ano de Record desapareceu, como são raros os registros videográficos de sua passagem pela Tupi. “Guardo na memória esse período, mas é uma pena, porque muitos momentos importantes ficaram perdidos. Acredito que a manutenção da memória do meu trabalho e da televisão em geral é uma responsabilidade de todos nós, envolvidos nesse meio. Devemos valorizar e apoiar iniciativas que visam preservar o acervo televisivo, para que as futuras gerações possam ter acesso a essa rica história. É uma forma de garantir que o legado da televisão brasileira seja celebrado e compartilhado, honrando aqueles que contribuíram para o desenvolvimento desse veículo de comunicação tão importante em nossas vidas”

A preservação da memória da televisão brasileira é um tema de extrema importância, e o que aconteceu com os primeiros anos da minha carreira na TV Tupi é um exemplo triste dessa lacuna na nossa história televisiva. É lamentável que as fitas tenham sido perdidas, pois elas representam não apenas a minha trajetória, mas também um pedaço da cultura televisiva do país – Ana Maria Braga

O problema do arquivamento não é restrito à TV dos bispos. O SBT, por exemplo, sofreu sete inundações até 1990, das quais acredita-se que tenha perdido parte de seu acervo. Em novembro do ano passado, o Site Heloisa Tolipan procurou a emissora, a fim de falar sobre o assunto, pelo qual não houve resposta. Entre as tramas perdidas e/ou incompletas, estariam “Solar Paraíso” (TVS Rio, 1978) e “O Espantalho” (TVS Rio e Record SP, 1977). Chamado a falar sobre as tramas perdidas – especialmente aquela exibida em parceria com a antiga Record -, o SBT não respondeu oficialmente até o fechamento desta reportagem. Uma fonte ligada ao arquivo da TV, contudo, afirmou que há “alguma coisa destas novelas, sim”.

Patrícia de Sabrit em “A Filha do Demônio”. Minissérie estaria entre as perdidas (Foto: Reprodução/Record)

A Band, até 1999, ainda “desgravava”, ou seja, gravava conteúdo por cima de material já gravado. “Hoje quando temos que desgravar usamos um critério mais seletivo. Do “Programa Silvia Poppovic (1990-2002)”, por exemplo, foram mantidos “10 episódios de cada ano”, disse Milton Trindade, responsável pelo arquivo da Bandeirantes, ao Estadão em 1999. Ano no qual começou a catalogação do arquivo do SBT também. Estima-se que hoje em dia apenas a Cultura de São Paulo e a Rede TV! tenham seus arquivos total ou majoritariamente preservados. A emissora de Marcelo de Carvalho e Amilcare Dallevo é uma das poucas, talvez por ser a mais jovem, a estar com seu arquivo digitalizado e intacto.

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Primeiro ano de Ana Maria Braga na Record foi perdido. (Foto: Reprodução)

… E O TEMPO LEVOU

A Record é uma das mais antigas emissoras de televisão ainda em atividade no Brasil. Fundada em 1953, a emissora, que hoje é de posse do bispo Edir Macedo, tem como presidente Luís Cláudio Costa. Porém, a atual conformação, de braço da Igreja Universal, sucede desde 1989, quando Macedo comprou a emissora das mãos do Grupo Sílvio Santos e da família Machado de Carvalho, fundadora do canal. Durante esta época já havia algo perdido, já que os videotapes só surgiram na televisão brasileira no início dos Anos 1960, em 1962, e as emissoras deixaram de ser estritamente transmissoras de programação ao vivo. Além de os tapes serem caros, a emissora passou por inúmeros incêndios, sendo o último em 1966 no qual muito material de acervo foi perdido. Além do incêndio, o acondicionamento inadequado fez perder muitas novelas do período, até 1970. A primeira versão de “As Pupilas do Senhor Reitor“, por exemplo, pode estar entre as “perdidas”. Lauro César Muniz conta em sua biografia que as fitas foram reaproveitadas para gravar jogos de futebol.

Mesmo depois disso, a falta de zelo ainda era grande – o que não é um privilégio da Record. A emissora teria criado um centro de documentação em 1985. Porém, só em 1997 passou a não mais gravar por cima das fitas e reaproveita-las. Com isso, a estreia e o primeiro ano de Ana Maria Braga em programas de culinária foi perdido. Ela teria estreado no “Diário da Mulher“, em 1993 substituindo Beth Russo. Em dezembro daquele ano, a atração ganharia o nome que o consagrou: “Note e Anote“. Importante ressaltar que mesmo fotografias dos primeiros anos de Ana Maria na Record são poucas. Nas que ilustram esta matéria, em quase todas ela está acompanhada do Louro José, personagem que só surge em 1997.

Fragmento mais remoto do primeiro ano de Ana Maria Braga na Record ao qual tivemos acesso. A emissora não teria mais registros do “Note e Anote” de 1993, como este (Foto: Reprodução/Record)

O descaso não é algo restrito à Record. Na Globo havia alguma fitas Quadruplex, um dos mais antigos formatos de videotape. Fontes apontam que a Globo ainda possui destas em seu arquivo, das quais ainda há chance da localização de cenas raras, como de novelas sessentistas tidas como perdidas. Porém, Erick Brêtas nos informou com exclusividade, “que muitos desses filmes em 16mm são de matérias de telejornais. Não há nada [de novela] dos Anos 1960”. O material de arquivo mais antigo da Globo hoje é datado do ano de sua inaguração, ainda que o vídeo seja mais velho que a emissora. Foi gravado no carnaval daquele ano, por Roberto Farias (1932-2018). A Globo nasceria em abril. O material foi resgatado em 1965, ano em que se celebrou o quatricentenário do Rio de Janeiro. Enquanto esta reportagem era escrita, Brêtas anunciou o seu desligamento da Globo. Oficialmente, a novela mais antiga disponível é “Irmãos Coragem” (1970).

Primeira transmissão da Globo, ainda experimental, vai fazer 60 anos (Foto: Arquivo/Globo)

Das TV’s muito antigas, especialmente as cariocas, como a Continental, Rio e Excelsior, muito pouco, ou nada, sobrou – desta última ainda há algo residual sob posse da Globo. Quanto à Tupi paulista há algo na Cinemateca e da sucursal carioca, coisas no Arquivo Nacional. Falida em 1999, o acervo da Manchete foi recentemente comprado – ainda que incompleto – e seu paradeiro é desconhecido. O acervo da CNT também não existe mais.