Pablo Pêgas dribla dificuldades visuais da ceratocone e lembra como demorou assumir a sexualidade devido à doença


Diagnosticado com a doença visual crônica, aos 11 anos, o ator da série “Eleita”, da Amazon Prime Video, teve adolescência caótica, quando não conhecia ninguém que tivesse o mesmo problema. Assim, teve total identificação ao ler entrevista de Saulo Meneghetti, no site HT. “Me reconheci na reportagem. Me abrir sobre o tema é quase como o armário que você demora para sair”. Pablo atuou no filme “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz. E estreou com o pé direito no cinema, interpretando o papel do neto da personagem de Fernanda Montenegro

* Por Carlos Lima Costa

O ator Pablo Pêgas, o Juan, da série “Eleita”, da Amazon Prime Video, e que contracenou com Fernanda Montenegro no filme “A Vida Invisível”, se identificou ao ler a entrevista de Saulo Meneghetti, aqui no site Heloisa Tolipan, onde ele desabafou sobre o ceratocone, doença visual crônica, com a qual foi diagnosticado aos 14 anos. “Eu me reconheci muito na reportagem, quando ele fala, por exemplo, que demorou muito para se abrir sobre esse tema. Pra mim, o ceratocone é quase como um armário, que você demora para sair. Também demorei para contar para as pessoas, porque tinha preguiça de ter que ficar explicando o que é essa doença rara. Não conhecia ninguém que tivesse. Então, passei uma adolescência muito solitária. No trabalho, não falo talvez por medo de ser colocado em um lugar específico. E, hoje em dia, já levo vida com qualidade. Ela não me impossibilita de fazer nada. Bem diferente da época da adolescência. Me assombrava o fato da doença diminuir a minha visão periférica. E ser ator é muito de visão periférica, principalmente no teatro. Tinha medo disso afetar meu desempenho como ator, de não conseguir enxergar o que estava ao meu redor. O Saulo fala de contar os passos. No teatro, sempre tive a preocupação de saber onde estavam as coisas, fico com uma atenção mais aguçada em uma cena de continuidade”, frisa ele, que começou a conviver o ceratocone um pouco mais cedo, dos 11 para os 12 anos.

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Natural de Barra do Piraí, aos 8 anos, foi para Resende, onde os sintomas começaram a se manifestar. “Na sala de aula, eu sentava mais do meio para trás e a professora reparou que eu estava forçando a vista para tentar enxergar. No início, fui resolver com óculos, mas não melhorou. Comecei a usar lente de contato, que era rígida, começava a machucar. E ela escapava na sala de aula, era um constrangimento. A doença estava avançando e com 13 para 14 anos, entrei na fila de transplante”, lembra ele, que agora torna público também a sua história.

Na adolescência, eu vivi os piores momentos. Então, surgiu uma bolsa de água no olho, uma hidropsia e precisei fazer cirurgia de secagem do edema e da bolsinha – Pablo Pêgas

Isso acabou sendo positivo, melhorou um pouco a visão e ele não precisou fazer o transplante de córnea. “Acho que contou muito o fato de que a minha mãe tinha muita fé de que ia dar certo e eu também. Mas tenho uma cicatriz na vista, o que faz com que eu nunca alcance 100% da visão. Hoje em dia, uso lente de contato e faz tempo que não tenho uma dificuldade maior. Mas não posso afirmar que nunca vai piorar. Com as lentes, eu alcanço 80% da visão no olho direito e 60% no esquerdo. Agora, sem elas eu não enxergo quase nada e me causa insegurança. Não me atrevo a sair na rua sem as lentes. A sensação é como se eu abrisse os olhos dentro da piscina, vendo tudo turvo, às vezes, reconheço alguém pela silhueta”, enfatiza ele, que desde os 11 anos é acompanhado pelo oftalmologista Frederico Pena, de Niterói, sendo que Pablo se mudou para a cidade do Rio somente aos 21 anos. Pablo ressalta que em 2005, ele tinha uma visão menor que 5%.

Pablo Pêgas, da série ‘Eleita’ revela as dificuldades na vida por conta da ceratocone, doença visual crônica (Foto: Max Gleiser)

Atualmente, o cotidiano é bem diferente da adolescência caótica. “Em função da visão, perdi eventos ligados a escola, por problemas com a lente. Mas tive uma forte rede de apoio, amigos que copiavam as matérias nos meus cadernos e minha mãe me ajudava a estudar. Graças a isso eu consegui me formar. E minha mãe sempre foi uma pessoa que me empurrou pra frente, ela não me deixava ficar no lugar de vítima que não conseguia fazer as coisas. O pensamento positivo fez com que eu não me enxergasse como único, mas já tive muito medo de perder a visão”, recorda ele.

DIFICULDADE VISUAL ATRASA INÍCIO DA VIDA AFETIVA

O ceratocone fez com que demorasse também a assumir sua orientação sexual. “É engraçado pensar nisso. A doença veio também ajudando a me cegar para coisas que estavam aparecendo e eu talvez não quisesse ver por medo. Dá para fazer um link da doença da visão ao mesmo tempo da descoberta da sexualidade na adolescência também, quando entendi que o meu desejo por garotos era maior do que aquele desejo que eu estava tentando ter por garotas. Mas demorou muito até essa frase sair do armário, até eu de fato chegar nesse entendimento e dizer: ‘é isso, sou gay, gosto de ficar com rapazes’. Na adolescência, eu estava tão ocupado com a questão da visão, que o desejo foi ficando de escanteio. A visão era o foco número 1. Só fui conseguir de fato sentar e conversar sobre isso aos 21 anos, quando eu saí de casa e vim para o Rio de Janeiro”, frisa.

Os relacionamentos custaram para acontecer. “Isso tudo me atrasou no desenvolvimento das relações afetivas e sexuais. Eu demorei para dar meu primeiro beijo, para transar pela primeira vez. Quando as coisas estavam melhorando, eu já estava com os meus 17 anos, quando tive o meu primeiro namoradinho, que foi meio secreto, pelo medo de assumir esse lugar, acabou não dando certo. Estava com medo das reações das pessoas próximas a mim. Até que aos 21 anos, eu falei: ‘É isso que eu sou, é assim que o meu desejo funciona, preciso ser fiel a isso e minha família super me acolheu. Vir para o Rio, foi também um passo importante para viver os afetos e a minha sexualidade. Me senti mais livre, solto e independente do que me sentia na cidade do interior. Não tinha ninguém para me olhar e me julgar. Eu podia viver a vida que eu sempre quis e com qualidade, porque estava conseguindo enxergar melhor com as lentes”, explica ele, que se mudou para a capital do estado para tentar ser ator e ingressou na UNIRIO.

“Na adolescência, eu estava tão ocupado com a questão da visão, que o desejo foi ficando de escanteio”, relata o ator (Foto: Max Gleiser)

Hoje, inclusive, em seu Instagram, se define como Queer, da letra Q da sigla LGBTQIAP+. “Nos meus estudos de gênero e sexualidade, fico sempre pensando no uso da palavra. Como uma identidade pode se tornar tudo aquilo que a pessoa é. Gosto muito da palavra ‘bicha’, por exemplo. Mas por muito tempo ouvi essa palavra ser direcionada a mim e me causava um sentimento ruim, porque sempre foi jogada num lugar de diminuição, de inferioridade, deboche. Agora, gosto da palavra ‘queer’. Ela tem a dimensão de guarda-chuva, consegue abrigar nela várias identidades de indivíduos que não se reconhecem como heterossexuais, como cisgêneros, então, ela é ampla”, reflete.

E acrescenta: “Entrando no termo da sexualidade, eu não me reconheço como bissexual. Eu fico só com homens. O meu desejo se direciona para o sexo masculino. Mas estamos em um momento de discussão mais ampla e essas identidades estão sendo esgarçadas. Cada vez que eu estudo mais gênero e sexualidade fico pensando mais nessa sigla que vai aumentando e que bom que a gente vai pensando em novas formas de se posicionar, de existir. Gosto de utilizar Queer, e que tem um significado do lugar do estranho, ao olhar normativo e mais masculinista, dominante da sociedade. Tenho amigos que preferem falar que são LGBTQIAP+. É muito legal pensar que estamos vivendo um momento em que a discussão de gênero e sexualidade está bem efervescente. É importante se posicionar da  forma como queremos e que a gente se sinta acolhido pela sociedade”, aponta.

TEMÁTICA LGBTQIAP+ RENDE PRÊMIOS

A temática LGBT vem marcando alguns de seus trabalhos, inclusive, como roteirista. Um exemplo é “Anamnese”, seu primeiro solo teatral, com o qual ganhou os prêmios de Melhor Ator e Texto Original no 7º FESTU (Festival de Teatro Universitário do RJ), em 2017. “No final da minha graduação senti que precisava montar um solo para falar dessas questões que envolviam afeto, sexualidade. Me incomodavam os relacionamentos através dos aplicativos, como eu não conseguia estabelecer nenhuma relação com outro cara, porque era tudo muito rápido. Isso nos aplicativos e até na vida. Comecei a achar que talvez o problema fosse eu. Foi quando montei o ‘Anamnese’, que fala sobre essa inquietação, do desejo de viver uma relação amorosa com outro cara”, pontua.

ESTREIA NO CINEMA COM FERNANDA MONTENEGRO

No FESTU, encontrou um amigo da UNIRIO, que estava trabalhando com produção de elenco. Algum tempo depois, esse amigo o procurou para sugerir que ele fizesse um teste para o filme “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz. Pablo fez e estreou com o pé direito no cinema, interpretando o papel do neto da personagem de Fernanda Montenegro. “Eu pensei: ‘Meu Deus, que doideira, meu primeiro trabalho e eu já vou cair num filme dirigido pelo Karim e contracenando com a Fernanda. Se não tivesse feito ‘Anamnese’, não teria feito ‘A Vida Invisível’. Gosto de pensar assim, que uma coisa desencadeou a outra. Trabalhar com o Karim foi tão legal. Foi uma participação pequena, mas contracenar com Fernanda, nossa, ela jogava muito junto. Fiquei emocionado de trabalhar e estar com ela que é a história viva do teatro, uma aula de atuação na minha cara”, vibra ele, que participou também da série ‘Eleita’, que estreou, em outubro, na Amazon Prime Video.

“Escolhi ser ator na vida, mas acabo fazendo muito freela de produção, dou aula de inglês, porque é difícil me manter só como ator”, explica Pablo (Foto: Max Gleiser)

“Escolhi ser ator na vida, mas acabo fazendo tanto freela de produção, produção de elenco, dou aula de inglês, porque é difícil me manter só como ator, quando você não é conhecido. Mas estava na produção de elenco da série e soube do teste. Então, fiz”, conta ele que da vida a Juan, assistente de ordens da governadora Fefê (Clarice Falcão). “Esse personagem foi fantástico desde o início. Ele juntava comédia, moda, papel LGBT, foi perfeito”, conta ele, aos 30 anos de idade e dez de carreira. No momento, está criando uma série de Podcast, onde fala sobre afeto, resgate de memória no tema LGBTQIA+ e que pode ser conferida no Spotify.

OFICINA PARA PESSOAS  COM TRANSTORNOS MENTAIS

Antes de se mudar para o Rio e ingressar na UNIRIO, ele trabalhou como Oficineiro Terapêutico no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que presta atendimento e acolhimento a pessoas com transtornos mentais severos e seus familiares. “Estava com meus 17 anos, me adaptando a lente de contato e aí minha mãe falou sobre um concurso público para a prefeitura de Resende. “Foi meu primeiro trabalho na vida, uma experiência fantástica, onde podia trabalhar com arte junto com terapia. Eu tinha que desenvolver oficinas artísticas com pessoas que tinham transtornos mentais severos. A equipe é formada por psicólogos, terapeutas ocupacionais, pessoas do serviço social, administrativo, psiquiatras, uma equipe muito mista, e tinha essa função de Oficineiro Terapêutico. Fiz oficinas de teatro, organizei saraus, produzi peças, foi enriquecedor trabalhar com saúde mental. Ali conheci mais sobre pessoas que trabalhavam com arte terapia, conheci quem foi Nise da Silveira (1905-1999) e todo trabalho que ela realizou. Tudo isso foi criando uma base em mim”, lembra.

A estreia de Pablo Pêgas no cinema foi no longa “A Vida Invisível”, ao lado de Fernanda Montenegro (Foto: Max Gleiser)

“Era um trabalho específico e difícil. Saúde mental é um tema bem desvalorizado e é muito importante. No Centro de Atenção Psicossocial as pessoas podem ir para serem reintegradas na sociedade, é um lugar de passagem. Não tem mais essa ideia de que a pessoa tem que ficar internada num hospital psiquiátrico a vida toda. O CAPS tem a função de ajudar a pessoa a se reintegrar. E não é um trabalho fácil, porque essas pessoas vão ter os seus momentos de recaídas, onde vão estar em surtos. Eu nunca presenciei um surto de violência com nenhum dos profissionais ou entre eles. Mas era um trabalho difícil, porque eu não tinha experiência com nada. A única coisa que eu tinha era paixão pela arte e ali eu pude utilizar dela para construir a minha própria experiência e aí eu tive acolhimento não só dos funcionários, mas dos usuários. Eles me acolheram bem, compravam as minhas oficinas. Imagino que não eram as melhores, porque de fato eu não tinha experiência”, ressalta ele, que tinha feito cursos livres de teatro. Envolvido com questões da saúde mental, até cursou um ano de Psicologia.