A vida após os transplantes de córnea e a convivência com o ceratocone: os desafios do ator Saulo Meneghetti


Três cirurgias, um ano de recuperação, uma vida inteira com o ceratocone. Saulo Meneghetti, ator de ‘Os Mutantes’, ‘Carrossel’, ‘Tempos Modernos’, ‘Escrava Mãe’, está redescobrindo como é viver sem os reflexos da doença, que diminuiu muito sua qualidade de vida. Em seus últimos trabalhos na TV, antes do transplante de córnea, o artista possuía 30% de visão e às vésperas da cirurgia, 5%. Nesta entrevista, ele faz um relato sobre as dificuldades que enfrentou e hoje luta para que a doença seja contemplada no panorama de patologias que classifiquem seus portadores como PCD’s. Um ano após o transplante, Saulo já tem capacidade visual em um dos olhos e caminha para a plenitude em outro e estuda projeto para streaming em paralelo ao trabalho como artista plástico e dono de antiquário

*Por Vítor Antunes

Novelas, filmes e trabalhos como modelo. Ainda que transparecesse uma vida normal, Saulo Meneghetti, ator de Os Mutantes, Carrossel, Tempos Modernos, Escrava Mãe, entre outros trabalhos, convivia com uma doença visual crônica que lhe trazia muita dificuldade não apenas para seu desempenho profissional, mas também em sua vida social: ceratocone. Um ano após o transplante de córnea e uma série de complicações – em 15 dias ele foi submetido a três cirurgias -, o ator está voltando à ativa. Atualmente, Meneghetti é voz ativa da “comunidade ceratocone” e luta para que os portadores da doença sejam reconhecidos como deficientes físicos. “Tornei pública a minha questão com o ceratocone para chamar atenção e dar suporte a essas pessoas. É algo difícil. Iniciei uma campanha de abaixo assinado para levar ao Senado a fim de que o ceratocone seja reconhecido como uma deficiência visual e as pessoas tenham acessos gratuitos e amparos legais”. Com objetivo de conscientizar e informar sobre a doença, ficou estabelecido em 2016 pela National Keratoconus Foundation (NKCF) que 10 de novembro é o Dia Mundial do Ceratocone.

O fato de Meneghetti haver decidido tornar pública a sua doença é importante especialmente por fazer dele uma referência junto a outras pessoas que também possuem a mesma condição, ainda que, com isso tenha de lidar com uma maior exposição. “Assim como eu recebi muito carinho, também fui alvo de muito hate na Internet, com gente torcendo para que tudo desse errado. Diziam eles que eu estava sendo privilegiado por ser artista, ou por supostamente ter dinheiro. Recebi, também, muito ódio. Foi muito pesado tudo”. Hoje, ele analisa projetos de trabalhos no streaming e para o cinema, ainda que aguarde voltar para a TV, veículo que mais gosta de estar e foi recentemente premiado pelo trabalho em “Escrava Mãe“. Em paralelo, o ator segue investindo em seus projetos como artista plástico e no seu antiquário, o Casa di Corallo. Um mundo novo se abre em possibilidades e nitidez, de quem pode, finalmente ver a vida com outros olhos.

Nas gravações de novelas, como “Escrava Mãe”, da RecordTV, que co-protagonizou, o ator relata que “chegava muito mais cedo na emissora ai, me orientava sobre onde seriam as locações – se internas ou externas – e começava a medir o espaço através da contagem de passos. Desta maneira eu saberia a quantos passos estava da câmera ou do cenário, que eu também tentava tê-lo decorado. Então, se o diretor me mandasse olhar apara a câmera 4 eu saberia exatamente onde ela estava. Quando o pessoal da [direção de] arte mudava as coisas de lugar eu imaginava a quantidade de passos que teria de dar ou à esquerda ou à direita para não me perder na hora”. E os problemas não ficavam restritos aos estúdios. “Houve uma situação em que tive de interromper um espetáculo para procurar a minha lente de contato que havia caído no palco e eu não conseguia enxergar nada”. Durante a participação num evento, no qual havia uma passarela construída sobre uma piscina, o ator precisou de muita habilidade para não cair na água. Outra vez, na apresentação de um musical, pediu para não ficar sobre um praticável no qual teria que dançar, justamente por temer cair dele.

Saulo Meneghetti. Ator, artista plástico e dono de antiquário, ator é voz ativa da causa do ceratocone (Foto: Drigo Costa/ Styling: Jacqueline Hass/Cabelo: Spaço KN)

OS DESAFIOS DO CERATOCONE

Segundo dados da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica (SBOP), a doença ocorre em cerca de 1 a cada 2.000 pessoas na população em geral. E, de acordo com a Sociedade Brasileira de Oftalmologia (SBO), trata-se de uma patologia genética rara, hereditária e de evolução lenta que se manifesta mais entre os 10 e 25 anos de idade, com progressão ou estabilidade até os 40 anos. Ainda com informações da SOB, o ceratocone pode atingir os dois olhos de maneira assimétrica, com maior afetação a um órgão que a outro.

Eu fui diagnosticado com o ceratocone com 14 anos e convivi com a doença, mas escondi e só fui torna-la pública recentemente. Escondia com medo que pensassem tratar-se de uma fragilidade ou me atrapalhasse no trabalho”. A declaração de Saulo Meneghetti vai ao encontro de muitas pessoas que, tal como ele, possuem problemas oftálmicos raros e que não se sentem amparadas ou por seus empregadores, ou familiares. Até mesmo os consultórios de oftalmologia, em algumas situações, têm dificuldade em fechar diagnósticos ou tratamentos precocemente. No caso do ator, cujos pais – ambos – e o irmão mais novo também possuem ceratocone, o rapaz pôde ser acompanhado desde muito cedo.

O ceratocone tem evolução gradativa e envolve a perda da equidade visual. Saulo conta-nos que quando tornou pública a sua condição “tinha 30% da visão. Quando estava próximo do transplante, apenas 5%”. A SBOP define a enfermidade como sendo uma degeneração ocular na qual a córnea – superfície frontal transparente do olho – que geralmente é redonda e tem forma de cúpula, se torna cada vez mais fina e protrusa, com a forma de cone, justamente na parte mais fina do órgão, acarretando numa diminuição da capacidade visual.

O oftalmologista Wilson Obeid, médico de Meneghetti, declarou ao site do Hospital CEMA, o qual trabalha, que “a conscientização é importante, pois pode evitar que muitos pacientes evoluam para um quadro grave, que causa grande dano à vida cotidiana”. Sobre a enfermidade, quanto mais jovem o paciente, mais agressiva é a doença. A progressão maior decorre, justamente, na adolescência.

Saulo Meneghetti: “Tinha 30% da visão. Quando estava próximo do transplante, apenas 5%” (Foto: Danilo Borges/Styling: Leandro Bernardes Rabelo/Cabelo: Katia Marrques)

O ator nos aponta que “não se falava em ceratocone. Tanto que eu fiquei muitos anos escondendo a doença. Depois de adulto achei que pudesse atrapalhar a minha profissão, mas na minha juventude, quando havia menos acesso à informação eu também não falava. As pessoas questionavam muito a razão de eu não usar óculos ainda que tivesse problemas de visão, e achavam que eu usava lentes de contato por uma questão estética”.

Entre as principais formas de tratamento do ceratocone, segundo o médico Wilson Obeid, declarou ao site do Hospital CEMA, “estão o uso de óculos e lentes de contato, mas, em alguns casos, pode ser necessário transplante de córnea”. O oftalmologista também fala sobre uma outra técnica, o “crosslinking, procedimento que aumenta a resistência da córnea e reforça sua estrutura (…) interrompendo o agravamento”. O médico prossegue dizendo que “em casos mais avançados, o Implante de Anéis Intracorneanos é uma das formas de remodelar o formato da córnea. Em caso mais graves, o transplante”.

Alguns desses tratamentos acompanharam o ator, como o uso de lentes. Porém o transplante foi inevitável: “Lancei mão de algumas lentes (…) o que deu certo nas primeiras semanas, mas a longo prazo tudo se agravou muito. Tratava-se de uma lente especial que não encostava na córnea e pegava na parte branca do olho. Ainda que gerasse um conforto maior, incialmente. Todavia, a lente só era colocada e retirada com ventosas que tem um manuseio agressivo. De modo que cheguei a ter úlcera nos dois olhos, algo que precisou ser tratado com corticoides”.

Nesse meio tempo aconteceu algo raro: uma das córneas estourou, tornando imprescindível o transplante imediato: “Parei na emergência quando soube que este é um fato incomum (…). Fui informado que precisava passar por um transplante, porque estava perdendo o líquido do olho e podia ficar cego”. A necessidade de uma intervenção imediata ganhou contornos trágicos quando o médico entrou no banco de órgãos e percebeu que não havia córnea disponível. Porém, segundo o ator, “por uma ação divina”, vinte minutos depois apareceu uma disponível para transplante. Após a cirurgia, quando ele achava estar tudo resolvido, e já estava encaminhando-se para o quarto, um outro fato: a outra córnea também estourou. Um segundo transplante em tão curto espaço de tempo não era recomendado. Era necessário ao menos seis meses para uma nova intervenção. O médico, então, optou por uma medida conservadora, secando e fazendo uma espécie de colagem para sustentar a córnea. O procedimento também não logrou sucesso e o órgão tornou a romper. Quinze dias depois, houve a necessidade de um novo transplante”.

Cirurgias sequenciais e transplantes de urgência. Os desafios de Saulo Meneghetti (Foto: Danilo Borges/Styling: Leandro Bernardes Rabelo/Cabelo: Katia Marrques)

 TORNAR PÚBLICA A DOENÇA OU OPTAR PELA AUTOPRESERVAÇÃO?  

Mas eu comecei a ter aceso a outras pessoas com ceratocone, uma doença que não era muito falada. Vi que nem todo mundo tem acesso a à informação ou ao tratamento. Percebi que havia grupos de WhatsApp com portadores de ceratocone. Entrei de forma anônima comecei a conversar com as pessoas sem me identificar. Depois tornei pública a enfermidade – Saulo Meneghetti

A prerrogativa da autopreservação foi a mesma que norteou a carreira da atriz Geórgia Gomide (1937-2011). Eram muito poucos os alheios à cena artística que sabiam de sua baixa visão. A biografia da atriz “Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira”, relata que desde os 18 anos a intérprete possuía apenas 10% da visão. Sobre este assunto, a atriz falou em entrevista ao semanário Intervalo, em 1965, e em 2008, justamente no livro que a biografou. No entanto, negou-se a dizer o diagnóstico: “Tenho um trauma muito grande no nervo óptico e a retina e a mácula estão muito atingidas, embora minha visão periférica seja perfeita, tanto é que me viro bem, ando pela casa. Só não consigo ler, e para decorar meus textos, uso gravador (…)”. Saulo Meneghetti, por sua vez, lançava mão de outro expediente para decorar as falas de seus personagens: “O texto que recebíamos impressos tinham uma letra padrão, que não me servia. Como eu também recebia o texto por e-mail, imprimia o meu com a letra maior”.

Georgia Gomide. A icônica atriz do teatro e TV convivia com apenas 10% da visão, motivo pelo qual foi hostilizada por diretor (Foto: CEDOC/TV Globo)

Gomide dizia que sua baixa visão não “atrapalha meu trabalho. (…) Minha visão periférica é ótima, então, sei exatamente onde me posicionar. Sempre fiz televisão e teatro numa boa, até teleteatros ao vivo, mas às vezes estou no estúdio, fico na frente da câmera e não percebo.  (…) Tina [Ferreira, atriz] jura que já me viu conversando com um extintor de incêndio no SBT, durante as gravações da novela “Uma Esperança no Ar” (1985). Quando eu trabalhava em “As Divinas… e Maravilhosas” (1973), na Tupi, o Kito Junqueira (1948-2019) entrou na sala e estendeu a mão para me cumprimentar, eu estendi a minha e cumprimentei a gravata dele. A cena foi para o ar assim mesmo…”.

No set, a falecida atriz dizia que as pessoas a respeitam muito e “às vezes querem me ajudar tanto que quase que me carregam”. Geórgia prossegue, em sua biografia, dizendo que teve problemas apenas com um diretor que a xingou numa gravação, em face de sua dificuldade “Eu não consegui responder nada [a ele]”. Meneghetti, por sua vez, disse nunca haver experienciado nenhum problema com diretores. Importante estabelecer este comparativo por que Gomide dizia não “considerar-se uma deficiente física”, ainda que tivesse apenas 10% da visão. O que, claro, reflete uma perspectiva da sua época.

Não há classificação enquanto PCD. Daí a importância de haver uma campanha que começamos na internet para levar ao Senado para que seja reconhecida como deficiência – Saulo Meneghetti

O artista revela que haver tornado pública a sua condição valeu muito a pena, “porque iniciei campanhas e consegui consultas, especialmente para quem é de São Paulo. Conseguimos óculos para crianças e um número grande de consultas também, atendendo a pessoas mais humildes e valeu super a pena”. Aos portadores do ceratocone em sua fase inicial, os óculos podem trazer um pouco mais de conforto, ainda que não corrija, assim como as lentes. Trata-se de uma doença sem cura. Que depende de tratamento ou de transplante.

PÓS TRANSPLANTE: “VENDO A VIDA COM OUTROS OLHOS”

As grandes especificidades às quais passou o ator – tanto pelo estouro das córneas como pelo transplante feito com muita rapidez – não são as únicas questões personalíssimas vividas por Meneghetti. O artista passou por um longo período de tratamento que incluiu uma junta médica de oftalmologistas, reumatologistas e cardiologistas. E uma rotina muito dispendiosa “Ainda não parei para somar os custos”, pontua. Segundo o ator, o momento é de esperança: “Hoje, do olho esquerdo eu ainda não sei totalmente o quanto enxergo, mas do olho direito eu já tenho 100% da visão (…) Agora que estou votando às atividades, pra mim vai ser uma nova vida especialmente por não precisar decorar cenário. Vou ter que me preocupar apenas com o texto e a cena e não tenho nem ideia disso. (…) Quero voltar apara a TV que é o que eu amo”.

Jamais imaginei que isso fosse possível. Sou muito grato e tenho a impressão de que agradeço a Deus e à família dos doadores que foram muito generosos. Acho muito importante isto. É uma gratidão sem fim. – Saulo Meneghetti

Saulo Meneghetti e a vida nova com novos olhares ((Foto: Drigo Costa/ Styling: Jacqueline Hass/Cabelo: Spaço KN)

Saulo Meneghetti. Ator, na fase final do tratamento, quer voltar à TV (Foto: Drigo Costa/ Styling: Jacqueline Hass/Cabelo: Spaço KN)

“Estou no processo final do tratamento, fazendo algumas campanhas publicitárias e alguns projetos que tive que parar por ocasião da pandemia”, diz o artista, esperançoso. Antes da pandemia previa-se a sua presença numa trama da Record que teve suas gravações canceladas. Além de sua carreira como ator, Meneghetti também é artista plástico. Está com algumas séries de pintura que foram mandadas para a Europa. “Há peças expostas em Portugal e nesse período eu participei da Casa Cor de São Paulo e Paraná. Neste ano, inclusive, a obra que foi premiada era minha, uma homenagem ao Hans Donner”.

O contato de Saulo com as artes não fica restrito ao teatro ou às plásticas. Ele é sócio de um antiquário, o Casa di Corallo, no qual cuida da curadoria junto com sua sócia, Jaqueline Hass. O espaço foi aberto no Centro Histórico de São Paulo, com uma proposta arrojada “O antiquário foi aberto num apartamento e o atendimento é diferenciado. O cliente é recebido como se fosse uma visita e oferecemos a ele uma experiência sensorial. Tudo nele está à venda. Desde a xícara do cafezinho aos lustres. As roupas também passam por curadoria e o mobiliário também é assinado”.

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VERDEJANTES TEMPOS

Muito se questiona, especialmente na teledramaturgia a presença dos homens – e mulheres – bonitos e que foram modelo e que se aventuram a trabalhar como atores. No caso de Meneghetti, ainda que tenha sido modelo, o teatro veio primeiro. O passado como modelo chegou por acaso, a contrário daqueles que iniciam a carreira nas lentes e passarelas e depois descobrem pode ser atores.

Enfrentei preconceito de colegas que diziam que o fato de eu ter sido modelo me permitiria dar conta de atuar, que eu era só um rosto bonitinho. Porém eu fiz o caminho inverso. Eu já era ator fui trabalhar como modelo. Precisava pagar minhas contas. Ainda que eu tivesse trabalhado com outras coisas, como ter sido barman, nada adiantava. Quando fui um dos personagens centrais de “Escrava Mãe” (…) ganhei prêmio de Ator Revelação. Só aí a coisa mudou – Saulo Meneghetti

Sobre o trabalho como modelo, Meneghetti relata que é “um nicho de mercado muito menor para os homens. A quantidade de modelos masculinos é menor que a do feminino e é muito mais difícil conseguir destaque ou capas de revista. Se falarmos de modelos mulheres, é fácil lembrarmos de várias. Dos modelos masculinos, a contrário, é difícil lembrar de algum. O salário é menor e a visibilidade também”, destaca ele. Com efeito, a carreira de modelo é uma das poucas nas quais os homens recebem menos que as mulheres ao desempenhar as mesmas funções.

Quando o ceratocone revelava-se a Saulo, havia quem dissesse que seus olhos, verdes, eram fruto de uma lente de contato estética, ainda que ele não as pudesse usar. Verde, de ver de perto e adiante a sede de navegar a vida, nos verdejantes tempos de mudança dos ventos em seu coração.