No ar em ‘O Rei do Gado’, Mara Carvalho fala de preconceito por ter casado com famoso e o atual sucesso off novelas


Mara Carvalho retornou às telas na reprise de “O Rei do Gado”. Ex-mulher de Antônio Fagundes, a atriz fala sobre os desafios que enfrentou por conta de sempre ser associada a ele e como lida com o amadurecimento e o avanço do tempo. Artista também assume ter uma ótica caleidoscópica sobre fé e transcendência da alma. Mara aborda o sucesso de sua atual montagem nos palcos “Baixa Terapia” e revela a sua vontade em roteirizar um espetáculo sobre Gala Dalí, esposa do artista plástico Salvador Dalí

*por Vítor Antunes

Em “O Rei do Gado“, que está sendo reexibida na Globo depois de 27 anos, Mara Carvalho interpreta a professora Bia, que convive diretamente com as questões às quais estão expostos os sem-terra na trama de Benedito Ruy Barbosa, pioneira a trazer com protagonismo a questão fundiária na teledramaturgia. A atriz desenvolveu outras habilidades, e retornou de forma pontual à emissora carioca como roteirista do seriado “Carga Pesada“. Nesta entrevista exclusiva, a atriz revela os preconceitos que enfrentou diante do fato de haver sido casada com Antônio Fagundes, e como foram superados, além dos desafios do machismo estrutural. Afirma não ter problemas com a passagem do tempo e anseia montar uma peça escrita por si, baseada na biografia de Gala Dalí (1894-1982),  mulher de Salvador Dalí (1904 –1989).

As mulheres ainda hoje ficam às escuras, sombreadas pelo masculino. Este é um assunto muito pertinente e traz luz para o estado que vivemos, que margeia a submissão, o preconceito, o apagamento – Mara Carvalho

Além disto, a artista fala sobre o sucesso da montagem de “Baixa Terapia“, peça de Matias del Federico dirigida por Marco Antônio Pâmio, que prossegue sua exitosa carreira nos palcos, agora no Rio de Janeiro. Na peça, Antônio Fagundes, que já foi casado com Mara, contracena com sua atual mulher, Alexandra Martins, que numa das formações do elenco era casada com o personagem de Bruno Fagundes, filho de Antônio e Mara – seu enteado, portanto. O ex-namorado de Mara Carvalho, Carlos Martin também compôs a equipe da montagem e hoje está na peça de Bruno, “A Herança“. Para a atriz este é “um mundo ideal, que deveríamos ter. É o sonho de convivência saudável que deveria ser natural. Trata-se de uma consciência de que somos civilizados e acho que não é mérito conviver com pessoas que fazem ou fizeram parte da nossa vida. As pessoas que não enxergam com naturalidade, quando é algo que deveria ser assim”.

Mara Carvalho também comenta sobre a paixão pela Espanha, que acabou motivando-a a abrir um restaurante étnico, em São Paulo, o El Mercado Ibérico. Afetivamente ligada ao território espanhol, já que não possui nenhuma ascendência com os nativos daquele país, Mara diz acreditar ser essa ligação fruto de outra vida, ainda que não tenha uma opinião formada sobre a imortalidade da alma e o espiritismo. Um dos seus maiores sucessos na TV foi a novela “A Viagem” (1994), de Ivani Ribeiro (1922-1995), que tratava abertamente sobre o tema. Para ela, há algo misterioso entre o céu e a Terra, ainda que não saiba explicar de forma efetiva.

Eu acredito no aqui, no agora, no que sou, no que faço e nas minhas escolhas. Eu não posso dizer que acredito ou não [em outras vidas], mas vivencio sensações diferentes que me parecem sugerir algo maior – Mara Carvalho

Mara Carvalho: atriz está em “Baixa terapia” e fala sobre a ausência das novelas (Foto: Fabio Audi)

POVO MARCADO, POVO FELIZ

Em 1996, n’O Rei do Gado, Benedito Ruy Barbosa ousou ao fazer uma espécie de “Romeu e Julieta”, trazendo como protagonistas um latifundiário e uma sem-terra. Ainda que tenha feito um grande sucesso, a trama trouxe pela primeira vez a discussão sobre os Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra para a sala da estar da família brasileira. Além de Luana (Patrícia Pillar), a protagonista feminina, o núcleo dos ruralistas era composto por Regino (Jackson Antunes), sua esposa, Jacira (Ana Beatriz Nogueira), e a professora Bia (Mara Carvalho). A trama se propôs em debater as questões fundiárias, que ainda era muito incipiente no Brasil urbano, ainda que fosse algo recorrente no interior. Quase 30 anos depois, conta-nos a atriz que muita coisa ainda precisa vir à tona no que tange a esta questão.

“A gente ainda não construiu um terreno sólido em termos políticos nesse sentido fundiário. Esbarramos nas mesmas dificuldades, no que diz respeito aos sem-terra, e com agravantes na questão indígena. Trata-se de um sistema ineficiente, não importando quem esteja politicamente à frente dele. Cada um vê apenas as suas próprias necessidades e tudo que se relaciona a este tema acaba passando por uma perspectiva capitalista, do dinheiro no bolso. É triste, parece que só andamos para trás, mesmo tendo recursos, dos quais antes, em 1996, não havia. Nesse aspecto acho que [a pauta rural] piorou”, analisa.

Tal como a questão fundiária de três décadas atrás, a própria atriz era uma outra profissional, uma outra mulher naquele momento: “Quando eu olho para mim e vejo meu trabalho, eu compreendo que estava em processo que não parou e espero que não pare. Vejo em mim umas lacunas, mas também tenho por mim, ternura e compaixão. Era uma outra época. Eu tinha menos bagagem e enxergo ali um trabalho do qual acho muito prazeroso ver. Quando me mandam cenas me acho fofa, até. Além de tudo há um outro corpo, um outro físico, eu era mais jovem. É legal me rever assim, é prazeroso”.

Leia Mais: Reforma agrária de volta às telas! Patricia Pillar fala sobre sua personagem em “O Rei do Gado”, uma sem-terra

Mara diz lidar de maneira amistosa com o tempo, por mais que mantenha um mistério sobre sua idade. “Eu não me sinto cobrada pelo tempo. Disponho do privilégio de lutar contra o envelhecimento, porque estou viva, mas acho que é difícil. Percebo diferenças apenas quando me olho no espelho, mas como não faço isso o tempo todo, lido bem”.

O tempo tanto cura como arrasa. É da vida, é o processo, é o que tenho para ser feliz. Mas quando passamos a ver um futuro menor que o passado, ou quando se tem o mesmo tempo de futuro que o de passado é que essas fichas caem – Mara Carvalho

Mara Carvalho em “O Rei do Gado” e atualmente (Foto: Reprodução)

MULHER, MULHER 

Enquanto esteve casada, por 14 anos, com Antônio Fagundes, por diversas vezes a atriz teve seu nome ofuscado pelo de seu, então, marido. Algo muito semelhante aconteceu com Gala Dalí e com a romancista Maria José Dupré (1898-1984). Esta última, inclusive, só teve assinado o seu nome de batismo em sua obra anos depois de sua morte. Até então, livros como “Éramos Seis” e “Gina”, traziam em sua capa a identificação Sra. Leandro Dupré. De acordo com Mara, que por anos ganhou o apêndice de “mulher do Fagundes”, este é o reflexo de uma “cultura, de uma sociedade que sempre desclassifica a mulher deixando-a como um ser menor”.

A atriz sinaliza que mulheres como “a Sra. Dalí”, nunca “conseguiram ser profissionais da arte tal como seus maridos. “Assim como eu, que também vivi algo semelhante. É muito difícil você mostrar o seu valor, quando se é automaticamente rotulada como ‘a mulher do Antônio Fagundes’, e isso foi até bem pouco tempo atrás. Tive que batalhar para ser reconhecida (por meus méritos). Agora que estou no Baixa Terapia, as pessoas reconhecem o meu talento. E eu estou aí há anos tentando. Hoje já há um olhar para mim e não apenas diante do fato de eu haver sido esposa dele. As pessoas conseguem passar um pouco por cima do preconceito e me olhar como profissional. Temos que defender essa causa, senão não teríamos oportunidade de mostrar o nosso talento, nossos conhecimentos”.

Sempre houve preconceito, mas estamos galgando, lutando por espaço. Tivemos menos oportunidade de estudo e de chegar onde só os homens chegavam. Além de toda a liberdade que eles tiveram, já que tudo é focado na história masculina. Se eu tivesse que ir para guerra, eu iria – Mara Carvalho

Mara Carvalho fala sobre o empoderamento feminino. “Se eu tivesse que ir à guerra eu iria” (Foto: Fabio Audi)

Ainda de acordo com Mara, “há um avanço das pautas femininas na arte. Mas ainda há caminhos para serem investidos pelas mulheres. “A própria Gala Dalí realizava seus projetos surrealistas e dava palpites na poesia do seu primeiro marido Paul Éluard (1895-1952)”. Carvalho foi uma das roteiristas de “Carga Pesada” (2003-2007) e encontrou muita resistência. Também por conta do fato de ter seu ex-marido num papel de destaque e em razão de ser uma mulher escrevendo sobre caminhoneiros e um masculino ambiente rural. “Não queriam que eu participasse da série por conta da minha relação com o intérprete de Pedro. Trata-se de um duplo preconceito. Eu tenho um histórico muito próximo daquele ambiente. Domei cavalo, tenho carteira de caminhão, transito bem nesse universo. Há um estudo, uma base e tive a sorte de ser uma criança criada num ambiente onde isso era natural para mim”.

Ainda que seja curioso ter uma mulher escrevendo para homens e caminhoneiros, eu não sentia dificuldade nenhuma [em falar desse tema], só prazer – Mara Carvalho

Mara salienta que no âmbito profissional, a mulher precisa ser respeitada. E não apenas ela, mas a pluralidade de gente(s): “Eu luto pela igualdade e respeito. Não temos que ser melhores, mas respeitadas. Isso é a base de tudo. Não há como haver discriminação para nada. Cada um deve à sua maneira ser o que é, independente de etnia, de gênero. O ato de respeitar é algo que ainda precisa ser lapidado”.

Leia Mais: Antonio Fagundes estreia peça, tem projeto no streaming e diz que voltaria às novelas na Globo

O AMOR CHAMOU E EU REGRESSEI

Segundo fala-nos Mara, seu trabalho como atriz ficará, no momento, restrita à montagem do “Baixa Terapia“. Além deste projeto, toca dois filmes como roteirista e o seu restaurante/empório, o “El Mercado Ibérico”. Segundo ela, sempre foi de sua vontade “fazer algo espanhol” e, “através de um amigo, Javier Martínez, houve uma conexão e tudo veio ao encontro desse meu desejo. Inicialmente minha ideia não era tão ambiciosa, de fazer um restaurante, mas uma cafeteria. No nosso empreendimento vendemos produtos daquela região, como os suprimentos para paella e outros produtos étnicos”. A fixação pela Espanha “parece vir de outras vidas”, de acordo com a fala da atriz, que não possui ascendência daquele país.

“El Mercado Ibérico”, o restaurante de Mara e Javier (Foto: Divulgação)

“El Mercado Ibérico” é também um empório (Foto: Divulgação)

Em se tratando de transcendência da alma, o tema “A Viagem” não poderia passar despercebido. Mara teve um papel de destaque na trama, sendo uma das vilãs da novela de Ivani Ribeiro (1922-1995), ao lado de Jonas Bloch. A novela espírita é até hoje uma recordista de audiência da Globo, chegando a bater 50 pontos em sua exibição original, em 1994, além de haver sido reprisada duas vezes no Viva e duplamente no “Vale a Pena ver de Novo“. Todas as vezes, com grande sucesso. Sob a ótica de Mara, a fé é algo complexo, work in progress. É aqui e agora, mas com uma pitada de ontem e um pouco de mistério: “Eu acredito no aqui, no agora, no que sou, no que faço e nas minhas escolhas. Quanto à espiritualidade e seu envolvimento lúdico e ao mesmo tempo religioso, eu só não questiono eu vivo. Não consigo dizer se acredito em reencarnação ou não, mas vivencio sensações diferentes, que me parecem sugerir a existência de outras vidas. Há algumas vibrações que me parecem respostas. Ao mesmo tempo, questiono o fato de usarmos desse expediente para justificar nossos erros e acho pretensioso crer que uma só vida não é necessária e é preciso haver uma outra. Prefiro acreditar no presente, nas escolhas e na gratidão diária”, propõe.

A Viagem. Mara Carvalho e Jonas Bloch na trama de 1994 (Foto: Reprodução/TV Globo)

Ainda em consonância com a sua fala, “A Viagem” foi “um step para o meu desenvolvimento profissional. Essa pegada espiritual é válida, porque lida com conceitos como amor e ética. A novela é bonita e por isso sobrevive até hoje, pois é uma novela bonita, romântica, fala das relações, teve, tem e terá sua função, por que é significativa, atual.

Depois de “A Viagem“, Mara fez outras participações, como nas já citadas “O Rei do Gado” e “Meu Bem Querer“. Depois desta, voltaria aos folhetins em “Marcas da paixão” (2000), na Record. Para ela, a ausência das novelas tem várias justificativas e todas se somam “Há a questão da distância. Sou uma atriz que mora em São Paulo e se dedica muito ao teatro. Inclusive, eu tenho uma escola de atuação. Além disto, eu escrevo. A TV tentou me contratar em algumas ocasiões, mas perdiam o interesse por conta de eu estar em cartaz. Hoje há, também, a questão das redes sociais, onde é preciso ter milhares de seguidores para ser chamada para os trabalhos. Os meus seguidores são orgânicos, seguem a mim por gostarem do meu trabalho.”

A PEDAGOGIA DO HUMOR

Baixa Terapia” é uma peça sobre relacionamentos. É montada há anos e sempre com grande sucesso. Para Carvalho, “a grande lição que a peça propõe é a da lançar um olhar para as relações e para discussões contemporâneas como o machismo. As pessoas riem, se surpreendem, se emocionam… É uma comédia que sai do lugar comum. O humor ele aproxima mais, ele não tem barreiras, ele nos deixa desarmado”, diz. Na montagem dirigida por Marco Antônio Pâmio, três casais que não se conhecem, se encontram inesperadamente em um consultório, e descobrem que a psicóloga está ausente. Cabendo aos próprios pacientes conduzir a sessão, que se transforma num caos. 

Mara Carvalho acredita que as relações podem ser mantidas mesmo após o fim dos relacionamentos (Foto: Patrícia Canola)

Leia Mais: No ar, na reprise de “O Rei do Gado”, Bruno Fagundes fala sobre peça LGBTQIAPN+ e como lida com rótulo de nepo-baby

Com mais de 30 anos de carreira – só seu filho Bruno tem 33 -, Mara encerra a entrevista respondendo uma pergunta que é, ao mesmo tempo, clichê e fundamental: Quais os desafios trabalhar com arte no Brasil? “Muitos. É dia sim, dia não. O Brasil não tem cultura teatral, é muito deficitário nisso. Então trata-se de um exercício diário de resiliência e muito amor”.