Reforma agrária de volta às telas! Patricia Pillar fala sobre sua personagem em “O Rei do Gado”, uma sem-terra


Uma sem-terra que se apaixona por um latifundiário. É sob este mote, de uma espécie de Romeu e Julieta rural, que se apoia “O Rei do Gado”, novela de 1996 que voltou ao ar na última semana. A trama noventista vem no rastro do sucesso de “Pantanal”, do mesmo autor, e que foi exibida até 07/10. A reprise do folhetim que tem em Antônio Fagundes seu protagonista masculino foi, inclusive, anunciada durante a exibição do último capítulo de “Pantanal”, suplantando “Mulheres Apaixonadas”, que vinha sendo apontada como a substituta de “A Favorita” na faixa Vale a Pena Ver de Novo. As duas novelas exibidas em reprise da grade global trazem Patricia Pillar num papel protagonista. Em “O Rei do Gado”, Pillar vive Luana, uma camponesa afiliada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e trouxe ao debate público a questão da reforma agrária ao principal produto da TV brasileira. Pillar fala sobre sua vivência com os campesinos e o legado da trama

*Com Vítor Antunes

 Com o desafio de trazer uma boia-fria como protagonista, “O Rei do Gado” estreou em 1996. Atualmente em reexibição no “Vale a Pena Ver de Novo”, a trama de Benedito Ruy Barbosa é a primeira a ter uma tri-reprise na faixa. A nova transmissão vem no rastro do sucesso de “Pantanal”, do mesmo autor, que repete a questão fundiária tão presente na obra do novelista. Nos papeis protagônicos, “O Rei do Gado” traz Antônio Fagundes e Patricia Pillar. A atriz, que já estava em cartaz no “Vale a Pena”, com “A Favorita”, marca sua onipresesença no horário com mais uma novela no ar. Novamente com boa audiência, a trama dos Anos 1990 marcou um pouco mais que o triplo que a concorrência, segundo o Ibope. Pillar fala sobre o folhetim e o processo de criação desta personagem, além da cena que mais a marcou na trama.

Luana. A sem-terra vivida por Patrícia Pillar foi uma ousadia em "O Rei do Gado" (Foto: CEDOC/TV Globo)

Luana (Patricia Pillar). A sem-terra vivida pela atriz foi uma ousadia em “O Rei do Gado” (Foto: CEDOC/TV Globo)

ADMIRÁVEL GADO NOVO

O contexto no qual foi exibida a novela “O Rei do Gado” mostrava que a protagonista seria uma sem-terra interpretada por Patrícia Pillar e que o “amor impossível” da personagem seria com um latifundiário, Bruno (Antônio Fagundes). Meses antes da estreia da trama, houve um evento conhecido como “Massacre de Eldorado do Carajás”, no Pará, que vitimou dezenove sem-terra e teve outras 69 vítimas foram levadas ao hospital. Estes reivindicavam a desapropriação da fazenda Macaxeira, que ocupavam, e foram alvo de repressão violenta. Temia-se a abordagem que a trama daria ao movimento, não apenas pelos componentes do MST (Movimento dos Sem Terra) como pelos latifundiários, já que aquela era a primeira vez que a questão da reforma agrária era efetivamente retratada na televisão, tendo uma boia-fria como protagonista. E a abordagem política não era exatamente sutil. Tanto que o tema dos sem-terra era “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, canção crítica e plena em signos sociais.

Patricia Pillar viveu uma camponesa do MST, em “O Rei do Gado” (Foto: CEDOC/TV Globo)

Sobre a novela e a importância desta para a sua carreira, a intérprete de Luana diz ser “Um marco para a televisão e não poderia deixar de ter impacto semelhante na minha carreira. Além de toda a trama Mezenga x Berdinazzi, a questão dos trabalhadores sem-terra foi tratada de forma inédita e abriu os olhos de muita gente sobre a importância da reforma agrária. Acho que a novela contribui até hoje para esse debate. “O Rei do Gado” é uma novela lindíssima, uma referência até hoje”. Além da questão fundiária, a trama abordava a rivalidade entre duas famílias italianas – Berdinazzi e Mezenga.

Ainda que tenha feito papéis importantes e protagonizado alguns outros àquela época, sem dúvida, Luana foi um dos personagens que mais dialogaram junto ao público até aquele momento “Ela repercutiu fortemente: “Até hoje as pessoas me abordam para falar da novela e da personagem. Foi uma obra muito marcante. Benedito Ruy Barbosa, um autor com quem tive o prazer de fazer várias novelas, tem um texto brilhante, que me comove”, disse. Até aquele momento, além de “O Rei do Gado”, Pillar havia trabalhado com Benedito em “Sinhá Moça”, “Renascer” e “Vida Nova”.

A atriz disse sobre o processo que composição da personagem: “Durante 15 dias morei em uma casa bem simples e convivi de perto com os boias-frias. Era preciso acordar por volta das 4h da manhã para ir trabalhar. Com eles aprendi a cortar cana e acompanhei toda uma rotina de luta e muito trabalho em condições precárias. Quando nos aproximamos de uma realidade diferente da nossa, a gente aprende a amar e a respeitar aquelas pessoas, criando a empatia necessária para compreender e construir a personagem”.

O tempo que passei entre os boias-frias foi muito esclarecedor. Fiquei impressionada ao descobrir que apesar da vida miserável, aquelas mulheres alimentam sonhos e fantasias, são afetivas e sinceras (…) Gosto de estar onde os bons personagens estão. Por isso não deixei de interpretar a Luana, verdadeiro desafio para mim uma personagem que precisava de uma pesquisa profunda. Isso eu adoro – Patricia Pillar

Patrícia Pillar conviveu com as mulheres dos acampamentos do MST, em 1996 (Foto: CEDOC/TV Globo)

Quanto à definição de sua personagem, diz que “Luana era uma mulher de poucas palavras e poucos amigos. Antes de conhecer o Bruno Mezenga, era mais próxima do casal sem-terra Regino (Jackson Antunes) e Jacira (Ana Beatriz Nogueira). Com o Bruno (Antônio Fagundes), vive um amor improvável, que a surpreende e a desperta para o seu próprio passado”.

Ainda sobre seu par romântico, diz que a sequencia que mais gosta da trama é justamente uma que o envolve “A cena em que a Luana encontra o Bruno, que estava desaparecido. Foi emocionante para todos os atores que estavam envolvidos: Stênio Garcia, Fabio Assunção e para o próprio Fagundes.”

“OS PÉS-DESCALÇOS CONTRA OS BARRIGAS-CHEIAS”

O debate sobre a reforma agrária na televisão sempre foi problemático. Esteve presente de forma discreta em “Irmãos Coragem” (1970), de Janete Clair (1925-1983) e, também, em “Meu Pedacinho de Chão” (1972), do próprio Benedito. Esta última, uma novela educativa não pôde trazer a questão fundiária em seus capítulos, coisa que só ganharia a cena em seu remake, de 2014. As novelas exibidas ainda durante a ditadura encontraram resistência junto ao poder vigente. Segundo os militares, os folhetins representavam perigo pois eram uma “infiltração comunista”, logo as temática ruralista não poderia ser abordada com profundidade.

Em entrevista concedida à TV Globo, em 2010, Benedito explicou a razão que o faz trazer tão recorrentemente o tema da reforma agrária em suas obras. Segundo ele “É um problema importantíssimo que, se o Brasil tivesse resolvido há 50 anos, o país estaria hoje no Primeiro Mundo. O Brasil, queira ou não queira, tem vocação para a terra. O país tem terra demais. O que nós temos de terra produtiva poucos países têm de território. Temos também um clima maravilhoso. Depois de “Cabocla”, eu abordei o mesmo tema em “Renascer”, com o personagem Tião Galinha, e em “O Rei do Gado”, em que havia um núcleo de sem-terra. Eu tenho uma preocupação muito grande com a questão da reforma agrária”.

É a luta dos pés-descalços contra os barrigas-cheias, como eu sempre digo” – Benedito Ruy Barbosa

“Meu Pedacinho de Chão”. No remake, de 2014, Benedito Ruy Barbosa pôde falar de questões fundiárias na novela das 18h, ainda que ela tivesse uma atmosfera mais fabulística (Foto: Divulgação/TV Globo)

Veja Mais: Tereza Seiblitz fala da polêmica na web sobre sua idade, debate o etarismo, e vai ser dirigida por trans no teatro

Ainda naquela entrevista, o autor relatou a importância de trazer, numa novela, a discussão desse tema. Segundo Barbosa “A novela conscientiza o povo, ela tem o poder de pôr esses assuntos em debate. Eu nunca me esqueço de ter lido, certa vez, uma nota no jornal Estado de São Paulo que dizia que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso havia declarado que a novela “O Rei do Gado” havia ensinado mais aos brasileiros sobre reforma agrária, e a necessidade de encarar esse problema, do que qualquer outro meio de comunicação. Eu me orgulho muito disso”.

Dentro da Globo, que já havia experienciado problemas com o tema nos Anos 1970, havia ume preocupação. Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, diretor da TV] dizia haver sido pego de surpresa e questionou-o pela escolha de falar sobre Reforma Agrária na novela das 20h “Um dia, o Boni me ligou muito bravo porque eu coloquei os sem-terra na trama. Ele queria saber o porquê de não aparecer essa informação na sinopse”, revelou Benedito à Biografia da Televisão Brasileira, livro de Flavio Ricco e José Armando Vanucci. O novelista afirmou que a abordagem seria cautelosa e este foi o norte da trama. Ainda assim, Benedito não foi poupado. Numa fala à Folha de São Paulo, relatou que “houve muita incompreensão. Eu recebi cartas de sem-terra elogiando a novela, dizendo que iria ajudar a causa deles. E recebi também cartas de sem-terra achando ruim, porque estava pregando a não invasão de propriedades produtivas. E, de outro lado, recebi muitas cartas de fazendeiros, dizendo que eu estava incentivando a invasão de terra, quando fiz o contrário”, justificou.

Ainda à Folha o autor disse “O Rei do Gado” ter sido a “novela mais tensa que já fiz. Primeiro, adoeci, tive problemas de coluna, e atrasei os capítulos. E, por estar mexendo com os sem-terra, sempre andei na corda bamba, tentando conduzir a trama sem criar atritos”.

Patricia Pillar. Pela primeira vez a reforma agrária era protagonista de uma novela (Foto: CEDOC/TV Globo)

A luz que “O Rei do Gado” trouxe foi tão grande que até mesmo latifundiários como o cantor Chitãozinho – cuja música estava presente na trilha da novela – dizia dialogar com as lideranças operárias no caso de ter sua fazenda invadida: “Conversaria com o líder dos sem-terra e procuraria convencê-lo de que minhas propriedades são produtivas. Muitas vezes, a invasão de sem-terra é explorada com fins políticos. Ainda há terras boas e improdutivas em Rondônia, no Pará e no sul da Bahia”, afirmou ele à Folha em 14/06/1996, época em que engordava gado em suas fazendas na região do rio Araguaia e local onde eram gravadas algumas cenas da produção global.

Frente ao ineditismo temático, a Revista Manchete quis saber como as lideranças do MST viam a si na trama. O extinto semanário ouviu, então, o presidente do órgão, João Pedro Stédile. Segundo ele, a representação presente na trama era “positiva. O autor é progressista, comprometido com as causas sociais do seu tempo e apoia a reforma agraria. (…) Novela é algo que todo brasileiro gosta, e é uma forma excelente para fazermos uma reflexão sobre as causas do problemas sociais do campo”.  Ainda que assinada por uma mulher, a reportagem de Manchete perguntava, de forma um tanto machista, se “Luana poderia ser a musa dos sem-terra”. Stédile negou: “Luana não tem trajetória típica das famílias ou mulheres sem-terra, ainda que transmita uma imagem positiva, bonita de pessoa humilde e meiga. Não se transformará em musa dos despossuídos”.

Luana (Patrícia Pillar) em “O Rei do Gado”. Segundo seu autor, esta foi uma novela “tensa” (Foto: CEDOC/TV Globo)

Vinte e seis anos depois, a boia-fria de “O Rei do Gado” encontra a malvada Flora, de “A Favorita“, na faixa de reprises do “Vale a Pena Ver de Novo“. De lá pra cá outros personagens vieram, outros prêmios e filmes na carreira da atriz. Dentre tantas distinções uma delas pode ser considerada a mais importante honraria a qual um ator pode receber: O de nomear uma sala de cinema. Desde o início deste ano, uma das salas do Cine Bijou, em São Paulo, tem o nome da atriz. A novela que retorna ao ar traz a intensidade de Benedito Ruy Barbosa que encontrou a energia de Patricia Pillar numa obra que, oportunamente, trouxe debates sociais à cena dramatúrgica. Incomodou? Talvez. Outro autor, que também tinha um gosto especial na abordagem ruralista e sociológica, Dias Gomes (1922-1999), dizia que “quem não veio incomodar, não devia ter nascido”.