*por Vítor Antunes
Na última sexta-feira, morreu Emiliano Queiroz. Algo que os noveleiros mais aguerridos lembram, mas desconhecido do público geral, é que Emiliano, em 1967, tentou lançar-se como roteirista de novela e escreveu “Anastácia, a mulher sem destino“. A trama foi um dos maiores fracassos da história da Globo e precisou de uma intervenção sistemática para que tivesse um final digno. Janete Clair (1925-1982) foi chamada para conduzir a trama, que, a contrário do nome, não tinha nenhum destino. “Anastácia” segue sendo um exemplo quando trata-se de uma mudança radical na narrativa de uma novela, por conta de um terremoto que matou boa parte do inchado elenco da trama, cuja exibição foi encerrada na data de 16/12/67. Apenas três atores da novela estão vivos: Suely Franco, José Augusto Branco e a “assassina” Marieta Severo. Possivelmente, “Anastácia” foi uma das primeiras novelas das oito a ser exibida aos sábados. Senão a primeira. Inicialmente a novela era exibida somente de segunda-feira a sexta-feira.
Segundo matéria escrita por Vítor Antunes para o extinto site Mofista, “Anastácia” prometia, segundo os jornais da época “arrebatar os telespectadores, transportando-os a um país e a uma época cheia de encantamentos: a França antiga”. A Central Globo de Novelas, nome do Departamento de Entretenimento da Globo à época, preparou o folhetim que estreou no dia 28/06, vendida como sendo “uma violenta história de amor, ódio e vingança”. E as frases de divulgação eram todas arrebatadoras: “A fuga sensacional da Fortaleza de Zenda… O mundo dos corsários a violência e o rancor de uma família marcada pelos preconceitos de um marquês”. Para retratar este universo, a novela contou com um navio de piratas – que tratava-se de um veleiro de 40 metros, mobilizado pela Globo.
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Não resta dúvidas de que a presença mais excêntrica da novela seja a posição de Emiliano Queiroz como autor, nesta que foi a sua única experiência como roteirista de novelas. Anteriormente à “Anastácia”, ele adaptou, sob a supervisão de Gloria Magadan, um programa onde eram dramatizadas cartas enviadas por telespectadores. Como gostou da escrita do rapaz, Magadan convidou-o a adaptar, junto a si, o romance “A Toutinegra do Moinho”, acrescido de outras pérolas de livros rocambolescos, como “O Prisioneiro de Zenda”, de Anthony Hope, que também foi adaptado para o cinema num filme homônimo, estrelado por estrelado por Stewart Granger (1913–1993) e Deborah Kerr (1921–2007). Dessa soma de referências nasceu “Anastácia”.
Em dado momento a novela estava inflada de atores e personagens e nem Emiliano nem Glória conseguiram dar conta daquele universo. É aí que entra Janete Clair. Em sua biografia, Emiliano diz que convidou Janete a dar uma solução para aquele problema: “Eu já tinha trabalhado em várias radionovelas da Janete, conhecia o diálogo dela e achava muito bom. Também já tinha feito teatro com Dias Gomes (1922-1999). Boni (…) quis Janete. (…). Logo Janete veio”. Em Manchete (1977), Janete diz que Magadan a chamou para estudar a novela, já que haviam muitos personagens e o autor estava “abandonando a novela (que) tinha mais de 40 personagens”.
A princípio, um evento natural presente num dos folhetins que inspiraram a escrita da obra, era de que haveria um maremoto. Esta solução bastaria para dar cabo de vários personagens ao mesmo tempo. Porém o efeito seria muito difícil de ser reproduzido na TV dos anos 60. Janete, então, decidiu pelo terremoto. Era simples: bastava balançar as câmeras, soltar umas pedras de isopor lá de cima, jogar um pó de serragem e estava feita a catástrofe. E assim foi feito: No capítulo 58, de 18 de setembro de 1967, a câmera balançou, focando na rival de Anastácia, a Duquesa de Kisnet, chamada Ziegried (Marieta Severo) e quase todos os personagens morreram. O fatídico capítulo foi resumido assim: “Anastácia grita que é um terremoto e pede pelo amor de Deus não a separem de seu marido. (…) Gaby tem a perna esmagada (…). Pierre e Gaby chegam à conclusão de que uma velha com a perna esmagada não pode cuidar das crianças (…) O terremoto matou ou separou todos aqueles que se queriam. (…) Henry segue pelas ruas e ouve o cantar de uma mulher que aparentemente está louca. (É) Anastácia (…) Henry percebe com horror que Anastácia está louca”.
Com o passar dos anos, os cronistas de televisão inflaram ainda mais o já grande elenco, dizendo que havia mais de 100 personagens em “Anastácia”, fato que inclusive consta no site da própria Globo. Dois periódicos da época – Manchete e O Cruzeiro – diziam que o grande elenco de Anastácia tinha cerca de 40 atores, o que parece mais acertado diante da época, já que, àquele momento, não costumava haver tramas com muitos núcleos paralelos, o que costuma inchar os elencos.
A história de “Anastácia” se passa na França, no século XVIII, quando aperta o cerco aos republicanos espalhados naquele país. Henry Monfort (Henrique Martins [1933-2018]) é um dos que lutam contra a monarquia. Casado com Anastácia (Leila Diniz [1945-1972]), ele planeja a fuga de sua família para o Castelo de Monfort, propriedade que acabara de herdar. Mas, na hora da partida, é preso na Fortaleza de Zenda, fazendo com que Anastácia e a filha recém-nascida do casal, Henriette, sigam sozinhas – E sem destino. Daí o nome da novela.
Como bem se nota, a obra tinha toda afetação novelesca da época, com narrativas rebuscadas que chegam a ser risíveis aos dias de hoje. Num dos resumos da novela, o personagem Henry de Monfort era apresentado da seguinte maneira: “O republicano, prisioneiro da terrível fortaleza de Zenda (…) conseguirá vingar-se e recuperar Anastácia, cujo único crime foi amá-lo?”.
O capítulo 43 é resumido da seguinte maneira: “Anastácia, Raposa e sua trupe chegam ao acampamento. Agora estão todos juntos. Anastácia, em seu carinho aproxima-se das crianças sem desconfiar que aquela pequena menina é Henriette, a filha que lhe foi roubada numa noite (…). Blanche (Aracy Cardoso [1937-2017]) adormece. Ao despertar, ouve de Fabio (Edson França [1930-2003]) uma revelação: O homem que transformara sua vida num inferno diz que a ama”. Aliás, o maniqueísmo se fazia presente na apresentação de todos os personagens. O de Emiliano Queiroz, que também era autor da novela, era apresentado como sendo o “maquiavélico Pepe LeCoq”. Edson França que vivia Fábio Orsini, era um “Um corsário rude e ambicioso”, ou “um rude homem do mar, cujos lábios jamais saiu a palavra perdão”. Tudo excessivamente rebuscado e adjetivado.
CONTEXTOS DA ÉPOCA
“Anastácia” era a primeira novela de Edson França, na Globo. Egresso da Excelsior, o ator só havia feito uma obra no canal 5 de São Paulo, quando o canal ainda era ainda era a TV Paulista. O ator destaca que aquele talvez fosse o primeiro épico da TV. Não podemos assegurar tal informação, embora saibamos que, de fato, a temática da capa-e-espada foi pouco abordada na TV: Além de Anastácia, poderíamos citar, “Belaventura” (2017), “Deus Salve o Rei” (2018) e “Que Rei sou eu?” (1989). Outra que estreava, desta vez como protagonista, era Leila Diniz, a Anastácia. A moça já havia feito outros trabalhos na Globo como coadjuvante e estava no elenco de “A Rainha Louca” quando foi convidada a fazer “A Mulher Sem Destino”. Para justificar a sua saída da obra anterior, sua personagem morreu. Leila vinha de sucessos no cinema como “Todas as Mulheres do Mundo” e estava trabalhando não só em “Rainha”, como em “A Madona de Cedro”. Leila disse em entrevista “encarar com muita responsabilidade o trabalho em Anastácia. Sei que o papel contribuirá para firmar ainda mais meu nome na TV”.
Na época de Anastácia, a Globo já ocupava, rotineiramente, ao menos as 5 primeiras posições entre os programas mais vistos. Em suas primeiras semanas, dizia-se que a novela batia recordes de audiência. Depois, a obra ficou subentendida como sinônimo de fracasso. Na verdade nem uma versão nem a outra podem categorizar “Anastácia”, que teve uma audiência muito irregular durante sua exibição. Tanto que o “Correio da Manhã” dizia: “A direção da TV Globo já está pensando na substituta da novela “Anastácia” (que) ainda não atingiu a apresentação do 30º Capítulo”. A contrário da crença geral, a audiência não subiu com a entrada de Janete Clair, pelo contrário. Manteve-se irregular. Cogita-se que Janete entrou na novela no início de outubro.
A novela oscilou desde a estreia até o seu fim, variando entre a segunda posição e a nona entre os programas mais vistos da semana. Houve momentos em que chegou a ser o segundo programa mais visto (30/10 a 05/11); ou o terceiro (Entre 2 e 8/10); quinto (Entre 21 e 27/08); sexto (Entre 7 e 13 de agosto); repetiu a sexta posição entre 16 e 22/10); chegou ao oitavo lugar entre 14 a 20 de agosto, depois ao nono (4 e 10/09), repetiu a nona posição (Entre 18 e 24/09). Ainda segundo a Revista Intervalo, um fato curioso: Anastácia pontuou como o segundo programa mais visto da semana de 18 a 24 de dezembro de 1967. Contudo, apuramos que a novela de fato terminou dia 16/12 – Embora hajam periódicos da época que afirmem que a novela terminou em 1968! Até mesmo o Jornal O Globo se confundiu com a outra obra exibida simultaneamente, “A Rainha Louca”. Afirmou que a novela de Gloria Magadan encerrou sua exibição numa terça feira e que em seu lugar entraria “Sangue e areia”. Porém, aquela encerrada neste dia foi Anastácia. “A Rainha Louca” acabou naquela mesma semana, num sábado. E na semana seguinte estrearam, no mesmo dia, “O Homem proibido (Demian, o Justiceiro)” e “Sangue e Areia”.
Possivelmente em razão do seu insucesso, a novela migrou de horário, o que nos leva a crer que talvez seja uma das primeiras novelas das 20h a passar às 21h. Houve ocasiões em que o horário das 20h era ocupado pelos programas “Dercy de Verdade”, “TV Ó, Canal Zero” ou “Buzina do Chacrinha”. Outro dado curioso é que a novela das dez, “A Rainha Louca” era exibida às 21:30. Segundo a revista Intervalo, a novela foi exibida em 128 capítulos. O Memória Globo aponta de que foram 125 capítulos. Ainda segundo a Intervalo, Henry de Monfort, um dos personagens protagonistas, morreu no final da novela. Mesmo tão irregular em audiência, o Correio da Manhã noticiou que o pianista Jacques Klein mudou o horário de sua apresentação justamente para não bater com a reta final de “Anastácia” e “A Rainha Louca”. Anastácia viria a ser a última novela de Leila Diniz na Globo. A atriz faleceu num desastre aéreo em 1972. Sua última novela foi feita na Tupi, em 1970: “E nós, aonde Vamos?”
Edson França em principio considerava “O texto de Emiliano Queiroz excepcional e a direção de Daniel Flho, (…) cuidadosa”. O que insere mais um nome nos créditos da novela. Daniel não é registrado nem pela Globo comoum dos diretores da novela
Ao fim de “Anastácia”, Edson França retornou para a Excelsior, substituindo temporariamente Francisco Cuoco na saga “Redenção”. Ao retornar para a Excelsior, França reclamou publicamente de Anastácia: “De repente aconteceu um terremoto e morreu todo mundo. Meu papel mudou completamente. Um dia cheguei lá para gravar e me vi pai de um ator de 25 anos (Nota: Na ocasião, França tinha 37 anos). Mesmo assim, toquei o barco. Depois queriam me dar um papel secundário que não aceitei para defender a minha integridade artística. Além disso eu precisava viajar para São Paulo para atender a um problema pessoal e não me deixaram pois marcaram a gravação para o mesmo dia. Viajei assim mesmo e voltei de avião a tempo de trabalhar. Depois dessa trabalheira toda haviam desmarcado a gravação. De repente. Ai já era trade demais, rescindi meu contrato com a Globo” (Intervalo Ed. 261). França ainda voltaria à Globo, onde faria seis novelas entre 1972 e 1976.
Henrique Martins já na “fase Janete” reclamava dos atores que não decoravam o texto: “Vou pedir à autora para fazer novelas com surdos-mudos. Assim ninguém vai precisar decorar o script”. Arlindo Rodrigues era o figurinista da novela. E já tratava-se de um grande nome do carnaval carioca pois que já havia sido campeão pelo Salgueiro em três ocasiões – 1960, 1963 e 1965. Numa pesada crítica aos atores a aos figurinos, Fausto Wolff, do JB, disse: “Os atores não tem a mínima noção de movimento de época e os figurinos são uma mistura de bizantino-barroco-rococó-belle-époque além de alguns recortes de carnavais recentes”. E continuava: “Impossível ser sincero diante de um texto tão superficial”.
Como já dito, Anastácia entrou para a História como “a novela do terremoto”. A Mulher sem destino, felizmente encontrou outra, esta, predestinada, que também assinaria o seu nome na História: Janete Clair. Outros eventos drásticos aconteceriam em novelas da Globo (Torre de Babel) ou do SBT (Cortina de Vidro), mas de alguma maneira, todos parecem filhos desta obra, que de tão perdida, encontrou seu lugar no tempo.
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