Mês da Consciência Negra: apenas 4 novelas na Record e uma no SBT tiveram protagonistas pretos nos últimos 30 anos


Onde estão os negros protagonistas nas emissoras além da Globo? Levantamento feito pelo Site Heloisa Tolipan aponta que, historicamente, Record e SBT estão muito atrás na representatividade afro no que tange ao protagonismo. Só agora o SBT traz seu primeiro negro em papel principal, o Romeu de “A Infância de Romeu e Julieta”, após haver realizado 54 novelas. Na Record, desconsideramos a fase anterior à entrada da Igreja Universal – entre 1953 e 1989 e analisamos uma a uma as novelas produzidas entre 1990 e 2023. Foram quatro, apenas. Entre 34 exibidas. Para o ator Muato, é importante haver uma legislação que garanta uma presença mais importante de pessoas pretas nas produções audiovisuais da TV

*por Vítor Antunes

Em Março de 2023, a Globo exibia três novelas: “Amor Perfeito“, “Vai na Fé” e “Travessia”. O momento era singular não apenas por ser a primeira vez em que autoras mulheres assinavam uma obra de dramaturgia, mas também por ser um momento em que as três principais novelas da Globo traziam, em personagens principais, atores pretos. Já vem acontecendo de forma gradual na Globo um projeto de inclusão e de diversidade. E não apenas na questão étnica. Atualmente “Elas por Elas” traz uma de suas protagonistas sendo uma mulher trans, além de outra, negra. No início do mês fizemos uma reportagem tratando sobre a invisibilidade LGBT nas novelas do SBT e Record, que também produzem teledramaturgia. Porém, uma pesquisa aprofundada na historiografia das mesmas emissoras faz saber que ambas não costumam ter pretos como protagonistas – ou tem apenas o atual produto inédito em exibição. Entre 1982 e 2023, o SBT produziu 54 novelas. Destas, apenas a atual “A Infância de Romeu e Julieta” possui um protagonista preto, o jovem Miguel Ângelo. Na Record, contando apenas a partir da gestão Edir Macedo, iniciada em 1989, foram quatro: “Jezabel” (2019), “Escrava Mãe” (2016), Luz do Sol (2018) e “Rebelde” (2011). Entre aquele ano e o atual foram 34 novelas pela casa.

Gabriela Moreyra em “Escrava Mãe” (Foto: Edu Moraes)

Historicamente sempre houve uma grande dificuldade em se incluir personagens negros nas novelas. Quando eles estavam presentes, em sua maior parte, eram funcionários subalterizados e/ou escravizados. Não são raras as novelas da Globo, especialmente as mais antigas, a não ter negros em seu elenco. Já referenciada aqui certa vez, “Água Viva” de 1980, não há um negro sequer. “História de Amor“, sucesso noventista de Manoel Carlos, traz três. Todos eles, empregados domésticos. E apenas uma das atrizes, Joyce Santos, era creditada… nos créditos de encerramento. Porém, especialmente após as duras críticas que sofreu ao fazer uma Bahia branca em “Segundo Sol” (2018), a líder de audiência apostou mais decididamente na diversidade. De lá para cá, o número de pessoas pretas protagonizando novelas ou tendo relevância na narativa dramaturgica só aumentou. Ao menos os três últimos folhetins em cada faixa natural de horário tem uma pessoa preta como protagonista.

Em contrapartida, para se ter uma maior amostragem nas emissoras concorrentes, foi preciso pesquisar pelos últimos 30 anos. A atual trama do SBT, baseada no maior sucesso de Shakespeare, traz o protagonista Romeu (Miguel Ângelo) e sua família, como um exemplo de lar bem sucedido. Romeu é filho de um casamento interracial. Anteriormente a esta novela, ainda que tenham havido personagens de destaque pretos, como o Cirilo (Jean Paulo Campos), em “Carrossel”, ou a Pata (Júlia Olliver) de “Chiquititas”, nenhum outro teve papel principal.

A que chega mais próximo disso, numa função de co-protagonista, é a Mamãe Dolores (Dhu Moraes), em “O Direito de Nascer“. Uma empregada da casa, devotadíssima, que criou como seu filho, Albertinho de Juncal (Jorge Pontual). Dolores é uma espécie de mammie, personagem tipicamente presente na dramaturgia, que é a cuidadora da família. Geralmente é preta e gorda. Dois exemplos de mammie são Tia Nastácia, do “Sítio do Picapau Amarelo“, e Januária (Zeny Pereira) de “Escrava Isaura“. Ainda nesta amissora, “Pérola Negra“, também do SBT, exibida em 1998, não havia sequer um negro no elenco.

Miguel ângelo vive Romeu Monteiro em “A Infância de Romeu e Julieta”, no SBT (Foto: Divulgação)

No caso da Record, muito afeita às sagas, por vezes é difícil definir quem ou quais são os protagonistas das novelas. Destaca-se aqui, que em “A Escrava Isaura” coube à Patrícia França viver a antagonista Rosa. Patrícia seria o principal nome de “Luz do Sol” (2018). Em “Rebelde”, Micael Borges vivia um dos seis protagonistas e em “Escrava Mãe“, Gabriela Moreyra a personagem principal, que seria a mãe da escrava Isaura, por sua vez protagonista da novela que leva o seu nome, exibida em 2004. Diferentemente da novela que teve em Bianca Rinaldi seu papel principal, “Escrava Mãe” teve uma mulher preta à frente. Porém, ainda hoje é comum não haver ao menos um ator preto em produtos da casa. No elenco principal de “Amor Sem Igual” (2019), nenhum negro com papel relevante, assim como em “Apocalipse” (2017). Em “Vidas Opostas“, ainda que houvesse um número expressivo de negros, boa parte deles vivia os traficantes da trama.

Para o ator Muato “o mais grave é dar protagonismo para narrativas pretas, sem que haja um diretor ou roteirista igualmente preto. Fora disso, dificilmente haverá um personagem fortalecido. Eu acho que para a estrutura funcionar é necessário que existam personagens que façam sentido. É importante que quem está no comando, na criação, na tomada de decisões, saia da estereotipação”.

Há uma disputa de poder. Clamar por espaço é algo que fragiliza. Precisamos de espaço e enquanto isto não for uma determinação do Estado, não funcionará. É fragil cobrar dos canais, das emissoras. É preciso haver uma legislação. Não há outra forma que não seja através de leis [que determinem uma quantidade maior de negros no audiovisual]. Essa competição ela é desleal, sob algum aspecto  – Muato

Um dos assuntos dos quais problematizou-se e que dialogam com a fala de Muato dizem respeito à novela “O Direito de Nascer“, exibida pelo SBT, e anteriormente citada. A trama, mesmo exibida no Brasil, se passava em Cuba. Apenas uma atriz preta. Numa trama que acontecia num país majoritariamente preto – ainda que os índices oficiais desdigam este dado. Para Muato, “provavelmente o fato de o autor e o diretor serem brancos [acaba prevalecendo]”. De fato, o diretor era Roberto Talma (1949-2015) e os adaptadores, Aziz Bajur, Alcione Carvalho e Jayme Camargo, brancos. No caso da Record, algo similar acontece, já que algumas novelas bíblicas se passam na África, onde caberia uma pluralidade étnica maior. Ainda que avanços estejam acontecendo no audiovisual, nunca é demais ressaltar que muito ainda falta a se fazer para haver uma teledramaturgia mais igualitária.