*por Vítor Antunes
Dizem que os cariocas e baianos falam cantando. Mais que isso, os outros países falantes de Língua Portuguesa, como Portugal e Angola são mais abrangentes e dizem que “os brasileiros falam cantando”. Dhu Moraes, brasileiríssima, “como eu e como você“, maximiza esse poder da fala-cantora, já que pontua às próprias palavras e canções. Não à toa, afinal, elas ocupam toda a vida dessa artista de Itaboraí, filha de Ponciano e Estelita. Agora, a disco-diva volta ao palco do Teatro dos Quatro, que nos anos 1970 abrigou o Frenetic Dancing Days Discothèque, uma das mais icônicas discotecas do Brasil. Para este semestre, além do show, ela poderá ser vista na segunda temporada da série “Cosme e Damião, Quase Santos” e a terceira temporada de “Encantado’s“, série que vem sendo aclamada, e espera-se que venha também neste ano uma excursão com o show “O Canto da Dhu“.
Éramos seis mulheres empoderadas – Sandra Pêra, Leiloca, Regina Chaves, Lidoka, Edyr de Castro – muito à frente do nosso tempo. Cantávamos umas letras que as quais as pessoas não estavam acostumadas, não eram comum. Não se podia conceber que cantassem “eu vou fazer você ficar louco dentro de mim”. Minha mãe, por exemplo, cantava essa música , “Perigosa” dizendo, “eu vou fazer você ficar louco, muito louco, lá, lá, lá, lá”. Essa música foi censurada, inclusive. O Nelson Motta, autor, teve que fazer uma adaptação para ela passar na Censura – Dhu Moraes
Dhu analisa o atual momento: “Me sinto muito feliz, é como retornar às origens, como diz o ditado, o bom filho a casa torna”, relata. O show musical foi batizado “O Canto da Dhu” e “o repertório é composto por músicas pelas quais eu fiquei encantada, ou sou encantada até hoje, e que gosto de cantar. Algumas músicas que venho cantando desde 1970. Então, passa por Maysa (1936-1977), Vander Lee (1966-2016), um pouco de sertanejo, de Luiz Melodia (1951-2017), um passeio, realmente, pelo tempo. E muito feliz por estar retornando ao Teatro dos Quatro, que é a minha casa também”.
É como retornar a um momento, à juventude e coisas que você viveu que só você sabe, só você sentiu aquele gosto, aquele prazer. O prazer que vivemos um dia. Eu comecei a carreira em 1970, no Teatro Casa Grande. Então, tenho esta mesma sensação quando faço alguma coisa no Teatro Casa Grande – Dhu Moraes
Em sua carreira, Dhu deu vida a duas personagens que são icônicas, ainda que sobre elas se abatam algumas críticas dentro do movimento negro moderno. Uma delas é a Mamãe Dolores, de “O Direito de Nascer” (2001), exibida pelo SBT, baseado num original clássico de Félix Caignet (1892-1976), adaptado diversas vezes nas tevês latinas. Outra é a Tia Nastácia do “Sítio do Picapau Amarelo“. Ambas são “mamies”, pretas gordas, cozinheiras, humildes e subservientes, além de carismáticas e de bom coração. Dhu não as critica, mas releva-lhes os contextos históricos. “Eu me orgulho muito das personagens que dei vida no cinema, no teatro e na TV. Até bem pouco tempo, não é segredo para ninguém, que os artistas pretos não tinham acesso, não tinham personagens, oportunidade de fazerem bons papéis, grandes papéis. Então é isso, eu acho que é uma questão, é um momento, um momento que eu estava vivendo ali. As coisas nos mudaram muito de uns, vamos dizer, uns dez anos para cá, graças aos deuses. Eu não as problematizo. Tanto Mamãe Dolores quanto Tia Nastácia são frutos de sua época. Período em que a sociedade colocava o negro somente em condições de subalternidade e submissão”.
Aos 70 anos, tendo iniciado a carreira muito muito jovem, ela analisa assim a madureza: “A ideia de envelhecer não me agrada, não mesmo. Entretanto, o passar do tempo nos traz, com toda certeza, sabedoria e maturidade”.
PRAZER EM CONHECER, SOU A TAL FRENÉTICA!
“Pessoas como você não dançam o Lago dos Cisnes, mas o Voo do Urubu“, disseram à Dhu na juventude, ainda antes de tornar-se famosa. Por fim, ela acabou não voando nas asas nem do Urubu, nem do cisne, mas “nas asas da Pan-Air”. Ganhou mundo através do sucesso de As Frenéticas, oriundas do Frenetic Dancing Days. O Dancing funcionou por pouco mais de seis meses, entre 1976 e 1977. Virou música de Caetano, “Tigresa“, e da dupla Nelson Motta e Ruban que serviu de tema de abertura de Dancin’Days, a mais icônica e simbólica novela dos anos 1970 com Sonia Braga. A trama de Gilberto Braga teve seu tema principal antado justamente pelas Frenéticas, que eram garçonetes-cantoras da boate. Lennie Dale (1934-1994), famoso coreógrafo americano que fundou o grupo Dzi Croquettes, foi a base fundamental para aquelas meninas artistas que falavam sobre feminismo e pluralidade e diversidade em plena ditadura. Mas especialmente para Dhu, que para outra coreógrafa estava vocacionada a ser “urubu”. “As Frenéticas e o Dancing Days para mim simbolizam companheirismo, alegria, amizade e uma mudança significativa em minha vida como ser humano, artista e mulher”.
VALE SER ALGUÉM COMO EU… COMO VOCÊ!
Para além da glitter-revolution trazida pelo Dzi Croquettes e pelas Frenéticas, ambos os movimentos artísticos trouxeram à cena brasileira, fortemente oprimida pela ditadura, corpos marginalizados. As mulheres, que eram silenciadas, cantavam e dançavam, mais que isso, falavam sobre orgasmo em seus hits. Esse girl-group também tinha duas negras: Edyr Duque (1946-2019) e ela, Dhu. Os Dzi, de Lennie Dale, que as coreografava, falava sobre linguagem queer, e androginia, hoje compreendida como não-binariedade, de alguma forma. Mas não havia espaço nem para diversidade étnica, nem sexual naqueles idos. Impossível haver negros protagonistas, por exemplo. Cabia às atrizes apenas os papéis secundários, subalternos. Edyr e Dhu, por anos, fizeram papéis assim. Dhu, ao menos, teve a sorte de poder pegar os que, sob este recorte étnico e social da época, eram os mais importantes, até quase no início dos Anos 2000: A Mamãe Dolores, de “O Direito de Nascer” e a Tia Nastácia do “Sítio do Picapau Amarelo“.
Segundo Dhu, “foi um grande prazer representar duas personagens que tiveram grande relevância na minha vida. A Mamãe Dolores eu lembro que assisti algumas cenas na TV, e foi uma novela que ouvi alguns capítulos na rádio com a minha mãe. Na época em que passou na TV a primeira versão, em 1964, íamos até o centro da vila, no subúrbio do Estado do Rio, onde assistíamos na casa do meu irmão, onde tive o prazer de assistir à Isaura Bruno (1916-1977), Nathalia Timberg na trama. E adulta, pude participar dessa releitura do “Direito de Nascer. Sinto gratificada para sempre pela oportunidade que me foi dada pelo Roberto Talma (1949-2015). Ele que me convidou e também para fazer a Tia Nastácia, que interpretei depois da Jacyra Sampaio (1922-1998) ter dado vida a essa personagem e a quem fui apresentada a ela, que graças aos deuses ainda tive a oportunidade de ter dado um beijo naquela criatura, a quem tenho tanto carinho. São personagens que mexem com esse lado lúdico, não só da criança como do adolescente, até mesmo do adulto”.
Dhu Moraes nasceu Dulcilene em Itaboraí, cidade da Região Metropolitana do Rio. Claro que Dhu e Dulcilene são mulheres diferentes, já que uma é personalidade artística de outra, que é a mulher por trás da artista. Sendo assim, o que uma ensinou à outra: “Dulcilene era uma pessoa tímida e pacata, menina do interior que sonhava em ser artista. Aprendeu com a Dhu a vencer a timidez, a insegurança e a enfrentar os grandes desafios da vida. A Dhu aprendeu com a Dulcilene o respeito, a humildade e a determinação, valores que ela aprendeu em criança, dados por Ponciano e Estelita, meus pais, essas pessoas maravilhosas que me deram a vida”.
Uma das músicas de maior sucesso da girl-band, composta por Gonzaguinha (1945-1991), dizia que “a tal da felicidade baterá em cada porta”. No caso de Dhu, houve o chamado dessa tal felicidade? “Sim, claro que a felicidade bateu a minha porta. Bateu à porta daquela sonhadora menina do interior, cujos objetivos foram alcançados. Fui parar na Europa, em Portugal e Paris, meu bem! [de tanto cantar que] A tal da felicidade baterá em cada porta, ela bateu na minha, e que importa mula manca, se quero, sempre quis, a felicidade. E ela está aqui e ela mora em mim”. Escarlate, desde quando era da banda de São João de Meriti, ou quando cantava para os reumáticos em sua cidade natal, a-nega-Dudu-entre-aspas, como se apresentava já na época de Frenéticas, é mulher simples… como o fogo. No trem da Alegria, da Rádio Nacional, a gare principal da Central, carregado de ioiôs e colares, cocares, miçangas, tangas e sambas para o carnaval.
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