Invisibilidade nas novelas: Há quase 10 anos não há pessoas LGBT em novelas da Record e há 12 no SBT


A Globo atualmente está exibindo quatro novelas inéditas e duas reprises. Em apenas uma delas, “Mulheres de Areia”, não há personagem LGBTQIAPN+. Porém, em todas as outras novelas da emissora há personagens LGBT – quer gays, lésbicas, não-binários e pessoas trans. Contudo, essa mesma representatividade não parece se estender às outras emissoras. O SBT não apenas não exibe produções próprias com pessoas LGBT como redubla e edita uma novela mexicana transformando um casal homossexual em dois machões. A Record, voltada a atender o público evangélico que a segue, volta seu olhar especialmente para as novelas bíblicas e desde 2014 invisibiliza a diversidade. Há quase 10 anos não há pessoas LGBT em nenhuma obra de dramaturgia. Ao ver do psicólogo Felipe Medeiro, isso marca que “comparativamente, temos de um lado uma emissora machista e de outro uma TV religiosa. Ambas fazem programas que ninguém vê. A Globo se destaca por fazer o mínimo”. Mário Camelo, jornalista e Mestrando em Comunicação com ênfase em questões LGBT pela Universidade Federal de Goiás (UFG) acredita que “ver as narrativas LGBTQIAPN+, em suas mais diversas pluralidades, num filme ou numa novela, é essencial”

*por Vítor Antunes

Atualmente, as três maiores emissoras de TV do país exibem novelas de produções próprias. Como sempre, a Globo é a mais volumosa, e exibe quatro produções inéditas: “Elas por Elas“, “Fuzuê”,Terra e Paixão” e “Todas as Flores” – ainda que esta última tenha ido ao ar primeiro no Globoplay, é inédita da televisão. O SBT e a Record exibem apenas uma novela cada e ambas obedecem à segmentação a qual os canais resolveram dedicar-se. O SBT, o público infantil, ao qual tenta atingir com “A Infância de Romeu e Julieta“; a Record, exibe a nova temporada de “Reis”, chamada “A Sucessão“. Diante deste fato, observamos que apenas nas novelas da Globo há a representação de pessoas LGBT. Trans, gays, lésbicas e travestis estão nas novelas como personagens e inclusive uma delas é protagonista, caso de Renée (Maria Clara Spinelli), em “Elas por Elas“. Mas há espaço para a diversidade nas outras emissoras? Atualmente, não.

Nenhuma TV apresenta personagens LGBT em programas autorais e inéditos há muito tempo. Na Record, a última novela foi “Vitória” (2014). No SBT, “Amor e Revolução” (2011). De lá para cá, as emissoras migraram definitivamente rumo à segmentação teledramatúrgica, fechando os olhos, portanto, para a representatividade. A Record, aliás, nunca exibiu um beijo gay em suas novelas, especialmente depois do início da gestão da Igreja Universal, em 1989 – e reluta para exibi-los mesmo em programas mais “liberais”, como “A Fazenda“. No SBT, por sua vez, houve um beijo lésbico em “Amor e Revolução“.

O psicólogo Felipe Medeiro (CRP-DF 01/21378), um dos coordenadores do Instituto Prideórgão que objetiva promover a saúde mental de pessoas LGBT através de atendimento psicológico –  foi perguntado sobre a razão que leva as emissoras a invisibilizarem personagens LGBT em suas obras e por tanto tempo. Segundo ele, “o SBT ele faz questão de destacar o gay no caricato. Notemos que o humorista Igor Guimarães está no “Programa do Ratinho” sendo mal aproveitado num programa que destila muito preconceito. Eles não colocam LGBT’s nas novelas com protagonismo. Na Record há um [pensamento] arcaico”. Ao ver do psicólogo, “quando observamos a questão da diversidade nas instituições, as que não forem diversas não terão sobrevida. Se o SBT e a Record continuarem negando essa parcela de pessoas e se a marca não representar o público, eles não a irão consumir”.

Para o jornalista e Mestrando em Comunicação com ênfase em cultura LGBTQIAPN+, pela Universidade Federal de Goiás (UFG) Mario Camelo, “ainda em 2023, alguns veículos de comunicação regidos por máquinas conservadoras –  e elas são poderosas – insistem em nos invisibilizar. Sinto dizer que nós existimos. E que a nossa representação é necessária para que mais pessoas nos vejam, nos naturalizem, nos aceitem. Ver as narrativas LGBTQIAPN+, em suas mais diversas pluralidades, num filme ou numa novela, é essencial, pois faz com que a sociedade também, aos poucos, nos entenda como presentes, como normais, como apenas mais uma parte de um todo.”

A Globo esta metendo o pé na porta e acho que não vai demorar para as outras copiarem. Ela impulsiona a fazer com que as pessoas se sintam representadas – Felipe Medeiro, psicólogo

 

Giselle Tigre e Luciana Vendramini protagonizaram o primeiro beijo gay do SBT, costumeiramente tido como o primeira da televisão (Foto: Reprodução/SBT)

AUGUSTÃO, VAMOS TOMAR UM CAFÉ?

Na Globo, pelo menos desde 2003, com a exibição de “Mulheres Apaixonadas“,  a presença de casais e/ou pessoas LGBT passou a ser mais contínua. Eles estavam presentes anteriormente, claro, porém de forma mais focal, como em “Explode Coração” (1995), com ou “A Próxima Vítima” (1995). Mário Camelo aponta que “há algum tempo as pessoas LGBTQIAPN+ não são mais invisíveis. Nós nos fizemos notar, lutamos e buscamos por nossos direitos de existir. Assim também, a indústria nos notou, notou o potencial do nosso pink money, e assim, não somente as marcas e empresas nos viram, mas também o audiovisual e o Entretenimento ao redor do mundo, que vêm construindo novas e belas narrativas que ilustram nossos dramas, nosso cotidiano, nossas demandas, em filmes e novelas”.

Na Record, após a retomada de produção de teledramaturgia, em 2004, com “A Escrava Isaura“, a intenção da emissora era competir com a líder de audiência. Tanto que seu slogan, por anos, foi “A Caminho da Liderança”. Desta forma, em novelas como “Balacobaco”,Chamas da Vida” e “Pecado Mortal“, havia personagens LGBT. Inclusive, o grande vilão desta última revelava-se apaixonado pelo mocinho, e recentemente fizemos uma entrevista com o ator que o interpretou, Vítor Hugo, que deu vida ao Picasso. Sucessos como a trilogia “Mutantes” trouxeram o personagem Danilo (Cláudio Heinrich). Ainda que ele fosse um gay-alívio-cômico – tanto que seu tema musical era “Robocop Gay“, dos Mamonas Assassinas. O  personagem evidenciou um dos problemas da emissora em abordar a temática LGBT. O autor da novela Tiago Santiago chegou a comentar em entrevistas que haveria um beijo entre Danilo e Bené (Deo Garcez) na segunda temporada da novela, algo que foi barrado pela igreja.

Inicialmente, o personagem de Cláudio Heinrich não era abertamente homossexual, como consta na página de Os Mutantes no R7 (Foto: Reprodução/R7)

Ainda na trilogia de novelas sobre os seres sobrenaturais, Françoise Forton (1955-2022) deu vida à Estela, que também era gay, “mas sem muitos conflitos”, como foi divulgado na época. Em “Balacobaco”  (2012), Léo Rosa (1983-2021) viveu Breno, que era gay. Em “Chamas da Vida” (2008) e em “Vidas em Jogo” (2011) dois casos que hoje gerariam grande discussão. Na primeira, o ator Roberto Bomtempo viveu a Docinho, travesti que dividia apartamento com uma prostituta. Para Felipe, “Há uma representação estereotipada, marginalizada. Restritas a esta significação da prostituição e das drogas. É preciso dar foco a essas mudanças”. 

No caso do SBT, para o psicólogo há uma manutenção de “patriarcado. Sílvio Santos reproduz o estereótipo do homem hetero, da família tradicional brasileira e faz da emissora o espelho da sua família. Chega a ser um desfavor à sociedade colocar pessoas LGBT’s de forma velada, exclui-los os restringi-los a lugares caricatos como chamariz de audiência. Há um machismo tão grande no SBT que não há homem na plateia. Ou seja, comparativamente, temos de um lado uma emissora machista e de outro uma TV religiosa. Ambas fazem programas que ninguém vê. A Globo se destaca fazendo o mínimo”, dispara.

Eu, enquanto psicólogo, queria entender qual o medo das pessoas em reconhecer que LGBT’s são pessoas que vivem uma vida, que movem a economia, que pagam impostos… São essas pessoas, que as emissoras precisam abrir os olhos e reparar para não fazer-lhes de LGBT de estimação. É algo bem adoecedor – Felipe Medeiro, psicólogo

Em “Vidas em Jogo“, Denise Del Vecchio, viveu a trans Augusta. Ou seja, tanto ela como Bomtempo são dois atores cis-héteros que interpretaram personagens trans, o que configuraria o transfake. A despeito desta questão, ainda que seja por si só problemática, estas foram uma das poucas ocasiões nas quais personagens LGBT estiveram presentes em novelas da Record. Na época, Del Vecchio delcarou ao Jornal Extra que nem ela mesma sabia que seu personagem era trans. E, ao fim da cena com essa revelação os técnicos brincaram com o fato dizendo “Augustão, vamos tomar café?”.

Eu sou tão feminina… (…) Sabia que havia algo nebuloso na vida de Augusta, mas nunca imaginei que ela seria um transexual – Denise del Vecchio, em 2011

A última novela a trazer personagens LGBT foi “Vitória” (2014). Desde então, a emissora migrou decididamente para as novelas bíblicas e/ou proselitistas e há quase 10 anos não há representatividade nos folhetins da emissora evangélica. Em razão da diretriz religiosa, ou influenciada por ela, é como se para a TV da Barra Funda essas pessoas não existissem. Importante ressaltar que em todos os casos acima citados não houve beijo entre personagens LGBT. Além disso, a emissora veta de exibir quer na TV aberta quer no Play Plus – seu aplicativo de transmissão ao vivo, os beijos entre gays/lésbicas que compõem o elenco de “A Fazenda“, reality marcado pela ousadia. Neste ano mesmo, Kamila Simioni e Jaquelline Grohalski beijaram-se e o vídeo foi exibido por pouco tempo no app e não transmitido na TV aberta.

Denise Del vecchio em “Vidas em Jogo” (Foto: Munir Chatack/Record)

Ainda que a presença LGBT seja mais infrequente nas novelas do SBT, por mais que tenha havido personagens com esta natureza, chama a atenção o fato de pelo menos desde 2011 não haver uma produção do canal que contemple essas pessoas. Em “Amor e Revolução“, daquele ano, foi exibida uma cena de beijo lésbico entre as personagens Marina e Marcela (Luciana Vendramini e Giselle Tigre, respectivamente), sendo a primeira do canal e uma das primeiras da TV. Desde então, ainda que tenham sido feitas novelas contemporâneas, não houve persongens LGBT’s. Em 2013 a emissora dedicou-se a produzir novelas infantojuvenis, e compreendeu que, desta forma não caberia dar espaço à diversidade.

Contudo, em 2014, a TV de Sílvio Santos exibiu “Sortilégio”, uma novela mexicana na qual havia duas pessoas bissexuais que viviam um relacionamento homossexual. Sob a prerrogativa de “poder exibir a novela à tarde”, e assim não sofrer prejuízos com a Classificação Indicativa, a emissora editou e redublou cenas do casal Ulisses (Julián Gil) e Roberto (Marcelo Córdoba), de modo que os diálogos sobre a intimidade do casal e suas cenas de afetividade nunca foram transmitidas, na primeira exibição da trama na TV paulistana. Nos 90 capítulos do folhetim exibidos naquela ocasião, ambos os rapazes foram transformados em  dois machões heterossexuais.

Há ainda muito moralismo. Por que razão repreender o amor? É uma coisa inacreditável…  Para ter saúde mental, a pessoa que se sente inconformada com situações assim, ela tem o poder do controle e deve ver apenas aquilo que se reconhece e identifica, e não dar audiência ao que não concorda – Felipe Medeiro, psicólogo

Cenas de cama entre Ulisses e Roberto foram cortadas na exibição do SBT em 2014 (Foto: Reprodução/Televisa)

Para o psicólogo Felipe Medeiro, essa postura revela que pensar e Freud diz que “todos nascendo bissexuais e depois vamos descobrindo as nossas vidas. É complexo ver emissoras tomando essa postura [conservadora]”. Perguntamos ao profissional se ele projeta que em algum momento a TV representará pessoas LGBT com honestidade e ele finaliza dizendo que “Só o farão quando isso doer no bolso, quando audiência cair. Não adianta só se mostrar gay friendly. Quando o telespectador desligar o canal por não se sentir represntado, esse movimento acontecerá”.