Mauro Mendonça: As saudades dos estúdios, as desculpas ao filho, a sobrinha no The Voice e um casamento de 63 anos


Os números de Mauro Mendonça impressionam: 91 anos de idade, 63 anos de casamento, 66 anos de carreira. Com bom humor e memória invejável, o ator afirma estar num contrato vitalício com a TV Globo. Com uma vida inteira nos palcos e sets, desde 2016 está fora do ar e diz sentir saudade de estar trabalhando – “Sinto falta e milagres acontecem. Uma hora pinta aí alguma coisa” . Afirma que deve desculpas ao herdeiro, Mauro Mendonça Filho, por suas traquinagens na trama que Maurinho dirigia. Apaixonado, celebra a parceria com Rosamaria Murtinho, sua esposa desde 1959: “Tivemos muitas batalhas mas ninguém ganhou a guerra”

*Por Vítor Antunes

Uma inconfundível voz de barítono e vários tipos de malvado e durão. Assim foi construída a carreira de Mauro Mendonça, que após passar por várias TV’s, fixou-se na Globo, onde mantém uma relação sólida. Ao ver a sua sobrinha-neta no The Voice, o artista relembrou o seu próprio tempo de cantor quando também apresentara-se em programas do gênero, como o “Papel Carbono”, de Renato Murce (1900-1987), na Rádio Nacional. Em entrevista exclusiva, ele fala sobre temas espinhosos, como a ausência dos veteranos na TV e o etarismo. Revela intimidades do seu casamento longevo com a atriz Rosamaria Murtinho. Por sua fase enfant-terrible, diz dever um pedido de desculpa ao filho e diretor Mauro Mendonça Filho pela época em que os dois trabalharam juntos em “Gabriela” (2012). Aos 91 anos e com muitos e tantos anos de carreira – Mauro assinou seu primeiro contrato em 1955 e estreou profissionalmente em 1956 –, perguntamos ao ator se ele sente falta de estar nos sets e nos palcos, já que sua última novela foi em 2016. E ele afirmou que sim, “Sinto falta e milagres acontecem. Uma hora pinta aí alguma coisa. Ainda mais agora que eu descobri que cadeira de rodas é um excelente automóvel (…) O ator sofre quando está no set mas, depois, quando sai fica triste, porque é um trabalhador. Eu sou um ator”.

Artista superlativo, Mauro Mendonça tem mais de 60 anos de carreira (Foto: João Miguel Junior/TV Globo)

CAMINHEMOS

Mauro Mendonça chegou ao Rio de Janeiro em 1946. Nascido em Ubá, no interior de Minas Gerais, o ator transitou por várias outras cidades da Zona da Mata mineira, morou em Uberlândia e chegou em 1946 no Rio de Janeiro. Na antiga capital carioca havia um barzinho onde, por tanto cantar a música “Caminhemos”, de Nelson Gonçalves (1919-1998) acabou recebendo como apelido o nome da canção. Além deste bar, cantou nos programas “Papel Carbono”, de Renato Murce (1900-1987), show da Rádio Nacional onde os calouros imitavam seus ídolos, e em programas da Rádio Tupi, como o de Ary Barroso (1903-1964). Muitos anos depois, sua sobrinha-neta – Isis Mendonça – investiu na carreira de cantora e hoje é uma das calouras a compor o time Iza, do The Voice Brasil “Minha sobrinha-neta está no programa [The Voice] e usa o sobrenome da família. [Meu sobrinho] está felizão e satisfeito. Eu sou suspeito para falar, mas Rosamaria gostou demais, afinal ela também fez muito musical”. Mendonça ainda confessa “Rosa canta muito melhor que eu”.

Namorados desde 1955, Rosamaria Murtinho e Mauro Mendonça estão tem uma parceria de mais de meio século (Foto: Reginaldo Teixeira/TV Globo)

Desde 2018, Mendonça tem problemas de locomoção ao haver internado-se em decorrência de uma pneumonia. Mendonça é dono de um grande humor, que é equivalente ao seu 1.80m de altura. Quando ele próprio fala de seu signo lamenta, com comicidade “Sou ariano, infelizmente. Mas tem arianos bons, como o Lima Duarte”. Segundo ele, há uma frase do dramaturgo Abílio Pereira de Almeida (1906-1977) que toma para a vida que é: “O essencial é não perder o bom humor”. Tanto adota a si que recorre à graça até mesmo para falar de temas espinhosos, que é a ausência dos veteranos na TV e o etarismo. “A televisão é comercial. Quem vende mais são os jovens. Os velhos eles não vendem tanto”. A última novela na qual Mendonça trabalhou foi “Eta Mundo Bom”, trama que ele não faria por inteiro. “A última novela que eu fiz foi uma brincadeira. Uma moça me ligou para me convidar para fazer uma novela. Meu personagem ia ser morto e acabou não morrendo”.

Em tratando-se de longevidade, para além da questão nonagenária, o casamento igualmente longevo é referência. Um casal astrologicamente explosivo – de um ariano com uma escorpiana – dura mais de 60 anos. Ele mesmo destaca que “aguentar ator não é brincadeira. São várias as mudanças de lua (…). Mas quando nos conhecemos eu disse a ela que queria construir uma família. E ela disse que queria também”. O que é reiterado pela esposa no documentário que os homenageia “Eu queria casar e ter filhos. Casei, tenho filhos e sou atriz”, disse ela colocando à frente da profissão, a vontade de ser mãe. Mauro e Rosa conheceram-se durante a encenação de “Rua São Luís, 27, Oitavo Andar”, de Abílio Pereira de Almeida.

Estamos constituindo uma família por todo esse tempo. Temos uma brincadeira entre nós. Todo casal briga, discute, temos três filhos homens, todos conviviam conosco nas coxias… Vivemos muitas batalhas, mas ninguém ganhou a guerra – Mauro Mendonça

Rosamaria Murtinho e Mauro Mendonça começaram a namorar em 1955, durante a montagem desta peça: “Rua São Luís, 27, 8º Andar”. Fernanda Montenegro também estava no elenco (Foto: Reprodução/Globoplay)

Por haver estado em todas as fases da vida juntos, Mauro, Rosa, os filhos e a arte, não era algo incomum que restasse a um dos filhos a trajetória artística. Coube, então, a Mauro Mendonça Filho o seguimento na carreira. O herdeiro é um dos mais importantes nomes da nova direção de diretores da Globo.  O encontro de pai e filho aconteceu em “Gabriela” (2012). Ainda que a montagem tenha sido um sucesso para ambos, Mendonça diz dever “um pedido de desculpas para Maurinho. Quando ele estava começando eu já era veterano. Eu errava o texto, dei trabalho, errava, brincava muito em cena e ele me chamava a atenção”.

Mauro Mendonça foi Manoel das Onças em “Gabriela” e confessa que deu trabalho ao filho, diretor geral da novela (Foto: Raphael Dias/TV Globo)

Mauro foi um dos nomes a protagonizar o retorno do teatro musical ao Brasil, com Evita (1983). Por muito pouco Mendonça não fez a montagem. “Victor Berbara, o produtor, ofereceu uma porcaria [de cachê]. Meu empresário [Marcus Montenegro], me convenceu a fazer, porque era uma coisa que ninguém tinha feito”.

Mauro Mendonça, Claudya e Carlos Augusto Strazzer em “Evita”. Um marco do teatro musical brasileiro (Foto: Reprodução/TV Cultura)

ENTRADAS, BANDEIRAS E… FLÂMULAS?

Um dos trabalhos dos quais Mauro mais gosta de falar sobre, e empolga-se ao relembrar é “A Muralha”. “Gostei de fazer e fiz bem”, disse. Curiosamente, o ator esteve presente nas duas versões da obra: Tanto naquela produzida pela Excelsior em 1968, como na que fora montada pela Globo, em 2000. Em ambas produções, teve uma experiência insólita. Viveu o mesmo personagem: Dom Braz Olinto. Talvez seja este seja um dos raros casos na teledramaturgia onde um ator vive o mesmo personagem mais de 30 anos depois. Na produção dos anos 60, ainda que fosse muito jovem, vivia um personagem com cerca de 70 anos, idade que possuía em 2000. “O maquiador da Excelsior era um argentino muito talentoso. Quando ele me caracterizou, eu mesmo acreditei ter aquela idade. A novela tratava da guerra dos bandeirantes contra os emboabas. O indígena que mata o meu personagem, um bandeirante, era interpretado pelo Sílvio de Abreu”.

Naquela época, a Excelsior já vivia a crise financeira que a levaria à bancarrota. A pobreza na montagem e as dificuldades da TV em colocar a novela de pé eram patentes. Tanto que o intérprete de Olinto diz que Gonzaga Blota (1928-2017), um dos diretores da trama, ao ver figurantes cenários e figurinos muito pobrezinhos para retratar o épico das entradas e bandeiras virou-se a Mauro e disse “que isso não é uma bandeira. É uma flâmula”.

A novela não tinha nem uma figuração boa, era cerca de cem pessoas que ganhavam um trocadinho. Era tudo muito precário – Mauro Mendonça

Anos depois, no remake de “A Muralha”, no formato de minissérie, na Globo, a produção rica e luxuosa rendeu vários prêmios. Segundo o ator, algumas das cenas foram gravadas em Xerém, distrito de Duque de Caxias (RJ). Nesta obra, houve consultoria com os índios xavantes, que, segundo o ator, eram eles próprios que construíam as ocas dos indígenas que compunham a trama. Antes do remake, Mauro esteve também em Kuarup, filme baseado no livro de Antonio Callado e que teve em Taumaturgo Ferreira seu protagonista.

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Mauro Mendonça em “A Muralha”, da Globo (Foto: Divulgação/TV Globo)

Mauro Mendonça em “A Muralha”, da Excelsior (Foto: Reprodução)

 

NOMES

Dono de uma memória primorosa, o ator lembra-se de trechos inteiros de montagens que fizera ainda nos Anos 60. Num deles, um teleteatro da Bandeirantes, encenou “A Rainha Morta”, obra que tratava sobre a Rainha Inês de Castro (1325-1355). A personagem principal era vivida pela própria Cacilda, que vivia a rainha portuguesa que é coroada depois de falecida. Atribui-se a ela a frase fatalista “Inês é morta”. A montagem fazia parte do Teleteatro Cacilda Becker, programa da TV do Morumbi que referenciava-se ao show semelhante que era exibido na Tupi. No teleteatro, que foi ao ar em 20/05/1968, estreou um garoto de 14 anos: Fábio Junior.

Fábio Junior e Mauro Mendonça em “A Rainha Morta”, teleteatro de 1968, da Band. Talvez a primeira aparição de Fábio Jr na TV, quando ainda assinava Flávio Galvão, ainda que seu nome seja Fábio (Foto: Reprodução/TV Bandeirantes)

Mauro rememora este trabalho não apenas por tratar-se da estreia de Fábio Junior ou por haver trabalhado com Cacilda Becker (1921-1969), mas por estar saindo de uma depressão que lhe havia tirado a voz. “Durante a minha fala, amigos como o Dionísio Azevedo e Augusto Boal foram ver a mim representando. Vi, também que conseguia usar o método Stanislawski [teórico de teatro], direitinho. Fui embalado por ele e me via fazendo. Estava emocionado e via as pessoas assistindo e me vi interpretando. Isso é trabalho de ator!”.

Quando a voz de Mauro teve sérios problemas, em 1969, por conta da depressão, reconquistou-a através de Gloria Beutenmüller, fonoaudióloga famosa. Devido ao seu talento, Glorinha passou a ser conhecida como “A feiticeira da Tijuca”. O epíteto da profissional não era tão simpático ao ator, que estava com problemas emocionais, razão pela qual demorou a embarcar nos métodos da fono. Hoje, rende elogios a ela, bom como à Maria José de Carvalho (1919-1994), profissional do teatro que era famosa por sua austeridade. Através dela, Mauro conheceu a psicanálise. Segundo ele, todo ator deveria fazer este acompanhamento terapêutico, já que “[Há tantos] atores problemáticos… A história está cheia de exemplos”.

Ao reviver os nomes que passaram por sua vida, falou de Eugênio Kusnet (1989-1975), professor ucraniano, ator e um dos maiores didáticos do método Stanislawski (1863-1938) no Brasil. Conta-nos ele que Kusnet tinha um código entre os atores da época quando ele próprio esquecia o texto. Quando lhe dava branco, o estrangeiro começava a falar russo no meio de peça. E fazia-o até que algum ator o fosse socorrer dando a deixa certa, para que ele prosseguisse. Mauro diz não ter vivido nenhum branco em cena, e quando ocorreu, conseguiu “sair pela tangente”.

Mauro Mendonça conviveu com grandes artistas brasileiros (Foto: Divulgação)

Aos profissionais mais novos, elogia Jackson Antunes por seu papel em “Todas as Flores”: “Esse papel eu não faria nem a troco de dólar”. E prossegue “Há uma coisa muito curiosa que existe e eu demorei a perceber: há uma energia diferente em cada um de nós. Quando começa a gravação e quando ela acaba você está com diferentes energias. Você sai carregado, influenciado. Não é fácil [fazer um personagem desse]”. Na novela da Globoplay, Antunes vive Galo, um explorador de menores.

Próximo de encerrar a conversa, Mendonça diz que “Para chegar ao nosso caminho a gente passa por muita provação e aprende muito”. É verdade. Tal como seu livro biográfico, Mauro é alguém em busca da perfeição.