*por Vítor Antunes
Historicamente, lésbicas costumam sofrer com apagamentos nas novelas de televisão. Na última semana, a atriz Renata Gaspar, a intérprete de Mara, em ‘Terra e Paixão” relatou que a sua personagem, assim como o da atriz Camilla Damião (Menah), não serão desenvolvidas. Algo que o próprio Walcyr Carrasco confirmou. Renata, em seu perfil no X/Twitter fez uma declaração contundente: “Quando tudo acabar falaremos mais do que passamos. Mas é isso, viramos as tias, as que ficam de fundo na festa e ninguém pergunta sobre sua história, pois não quer saber. ‘É aquela tia que vive com a amiga dela'”. Fala muito diferente daquela que a própria atriz declarou ao Site HT, em junho deste ano, quando pontuava sua grande expectativa pelo casal Mara e Menah: “Espero que o beijo entre elas aconteça, senão vai ser muito esquisito. Até entendo que a novela está no começo e não queiram acelerar as coisas, mas acho que vai rolar. Vai ter muita revolta se não rolar, até minha. [É preciso] naturalizar duas pessoas que se gostam e querem ficar juntas”, relatou-nos.
Não faz muito tempo, a Globo polemizou por vetar cenas de beijos entre duas personagens que se reconheciam homossexuais, na novela “Vai na Fé” (2023). Ao menos três cenas foram cortadas, ainda que gravadas. Neste ano também, na série “Aruanas”, uma cena de sexo lésbico foi igualmente vetada na exibição para a TV aberta. Por acaso, está sendo exibida uma das primeiras novelas a trazer de forma mais aberta um relacionamento entre duas moças, “Mulheres Apaixonadas” (2003). Ou seja, o lesbianismo só parece de forma mais definitiva na TV de 20 anos para cá, e ainda assim com resistências. A “cura gay” de personagens lésbicas, todavia, não é recente. Antes de 2003, algumas novelas deixaram de investir em tramas desta natureza, e as razões são muitas.
Para a psicóloga Daniella Martins do Instituto Pride – órgão que objetiva promover a saúde mental de pessoas LGBT através de atendimento psicológico – “Primeiramente, é importante pontuar o contexto em que a gente está inserido. Vivemos numa cultura que é completamente cis heteronormativa e muito machista, patriarcal, na qual se aprende desde cedo de que a única possibilidade legítima de afeto e de existência, é cis e hétero. A gente vive num país que também é muito fundamentalista religioso, conservador. Então, as pessoas vão sendo subjetivadas e vão construindo ali noções do que é amor, do que é a construção de uma família, (…) de modo que essa invisibilização e esse silenciamento históricos, eles são estratégicos porque a lesbianidade vai diretamente contra o que prega o sistema patriarcal heteronormativo. Ela vai contra a dominação masculina e a reprodução dos estereótipos sexuais e de gênero”.
Daniella prossegue dizendo que “quando é percebida a existência dessas pessoas que têm narrativas diferentes daquelas construídas pela norma, vai haver a tentativa de um silenciamento, vão ser construídos e alimentados estigmas e, por consequência, serão alimentadas violências físicas e simbólicas. Essas pessoas reais existem, então não é porque são silenciadas as suas narrativas na mídia que elas vão deixar de existir. Apesar do que aconteceu com essa novela, torço que a cada dia mais a gente possa construir novas narrativas de amor e de afeto entre mulheres”.
[Trazer à leitura de que] é preciso acabar com as mulheres lésbicas, ou que elas vão sempre ser mortas, sofrer, ou compreender que a sua vida é só sofrimento, traz a mim o entendimento de que isso é como uma pedagogia [que perfila] as pessoas que consomem isso na TV. Elas vão aprendendo que ser lésbica é algo ruim, que se você for lésbica você vai sofrer violência, morrer, ou ser fetichizada. Percebo que representações estereotipadas acabam ensinando muitas coisas equivocadas sobre o que significa ser uma mulher lésbica – Daniella Martins, psicóloga
A fala de Daniella encontra eco na de Renata, e, por conseguinte, da sua personagem: “É preciso ver essas referências [lésbicas] no ar. Mulheres que ficavam com outras eram retratadas muitas vezes de uma forma repulsiva, no lugar pejorativo, do “cuidado que você vai virar isso aí”, como se não fosse algo bom. Esse tipo de atitude dificultava para quem estava se descobrindo”, ponderou.
“Terra e Paixão” não é a primeira, e talvez não seja a última novela a invisibilizar e/ou silenciar personagens lésbicas. Historicamente, em algumas outras novelas da Globo – quer na época da ditadura quer em tempos mais contemporâneos, histórias de amor entre mulheres foram abandonadas ou deixaram de existir. Veja!
Sete Vidas (2015)
Não é possível reduzir a pessoa a essa questão [homossexual]. Minha personagem tem outras características mais relevantes – Regina Duarte, em 2015
A Indomada (1997)
Em “A Indomada” havia um bordel chamado “Casa de Campo“, que era comandado por Zenilda (Renata Sorrah) e Vieira (Catarina Abdala), que fazia a contabilidade do lugar. A princípio, e com alguma sutileza, comprendia-se que ambas tinham uma relação amorosa. Mas, ao livro “Autores – Histórias da Teledramaturgia“, Aguinaldo Silva, um dos autores, diz que o público não comprou a história. “A Zenilda tinha um caso secreto com Vieira. Desde o começo, senti que não estava funcionando. Quando eu saía à rua, via que as pessoas não gostavam daquilo. Tranquilamente, fui jogando a personagem da Renata para cima do Cláudio Marzo [1940-2015], que interpretava o Pedro Afonso, e o público adorou”. Algo diferente do que disse o outro autor, Ricardo Linhares, em 1997, à Folha: “Há uma pesquisa mostrando que telespectadores querem que a Vieira se acerte com uma mulher. Fico contente de ter quebrado o preconceito sem explicitar a relação”. Ditas ou desditas à parte, o caso entre elas ficou “esquecido” até mesmo pela Globo, que as descreve no Site Memória Globo, como tendo “uma relação de amizade. Vieira é contadora do bordel e de vez em quando fica por lá, para dormir”.
Selva de Pedra (1986)
No remake de “Selva de Pedra”, havia uma sugestão de lesbianismo entre Fernanda, papel de Christiane Torloni, e Cíntia, vivida por Beth Goulart. Tanto que a canção “Perigo”, de Zizi Possi, foi escrita sob encomenda para as personagens. No primeiro capítulo, ambas tomavam um banho de piscina muito sugestivo e a canção ficava de fundo. Porém, o público torceu o nariz, assim como a Globo, que acabou demitindo o diretor, Walter Avancini (1935-2001). Em entrevista ao Site HT, no ano passado, Christiane Torloni reitera que o preconceito foi definitivo para que a personagem não ganhasse esse recorte. “A teledramaturgia do audiovisual é o espelho da sociedade, dos seus flagelos, riquezas e virtudes. Então, com toda a certeza, os personagens que eu fiz e tinham essa liberdade já absolutamente assumida são mulheres representativas”.
Torre de Babel (1998)
A novela de Sílvio de Abreu tornou-se icônica. Não por trazer um casal lésbico mas por tê-las matado explodidas. Como não foram aceitas pelo público, as personagens morreram quando o shopping, que era a principal locação da trama, explodiu. Em entrevista ao Site Heloia Tolipan, Sílvia Pfeifer que fazia par com Christiane Torloni, disse-nos que “[A novela] conseguiu colocar uma sementinha sobre esse assunto. Eu acho que isso deve continuar sendo feito, especificamente pela TV aberta (…). Isso tem que ser realmente colocado em discussão. É difícil levantar todas essas questões que a televisão, infelizmente, não consegue discutir com a profundidade que deveria haver.
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