Bel Kutner dirige peça sobre prazer: ‘Eu gosto muito de sexo e tenho a felicidade de praticar bastante’


Aos 51 anos, Bel Kutner, depois de atuar na novela “Nos Tempos do Imperador”, fala sobre novos projetos, como os espetáculos ‘O Prazer É Todo Nosso’ – convite para se libertar das hipocrisias sociais e se permitir a se autoconhecer e a explorar todas as possibilidades da vida – e ‘Lygia’, ambos nos quais assume a direção. Em conversa exclusiva, a atriz ainda refletiu sobre a cultura nos tempos atuais – ‘Liberdade nunca é a favor do poder. A liberdade é sempre revolucionária'” – e abriu o jogo sobre a sua relação com sexo

Bel Kutner dirige peça sobre prazer: 'Eu gosto muito de sexo e tenho felicidade de praticar bastante'

*Por Thaissa Barzellai

Com seus 30 anos de carreira, todo e qualquer projeto com o qual Bel Kutner se envolve ela traz o entusiasmo de uma novata e o prumo de uma veterana. Ao assumir a direção do monólogo ‘’O Prazer É Todo Nosso’’, o que despertou esse combo foi o despudor que permeia o texto da peça. Com Juliana Martins, amiga de longa data de Kutner, o espetáculo, baseado nas aventuras que Martins viveu após o fim do seu casamento de quase 20 anos, é uma ode à mulher 40+ que se delicia com os prazeres da liberdade e independência sexual.

‘’A Juliana é muito divertida e representa muito bem uma geração, que foi criada com a ideia do amor romântico. Ela não é uma mulher naturalmente livre, leve e solta, ela foi se transformando com expectativas mais realistas do que pode-se ter em uma relação’’, conta Bel que acredita que a peça consegue refletir as demandas da mulher contemporânea, agora muito mais empoderada. ‘’Percebo que as mulheres estão mais felizes à sua maneira, sem depender de ninguém e, principalmente, sem depender do amor romântico. Estou muito satisfeita com a peça que construímos juntos”.

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No auge dos seus 51 anos, comemorados em plena pandemia, Bel Kutner é uma dessas mulheres unificadas na personagem de Juliana. Pé no chão e confiante, a atriz vive a sua vida sexual plenamente, – não tem do que reclamar – e, para o delírio dos conservadores etaristas, essa confiança que Bel adquiriu no decorrer da vida não tem prazo de validade, mesmo que a sociedade insista nessa opressão datada. ”Eu gosto muito de sexo e tenho a felicidade de praticar bastante, de sempre ter parceiros disponíveis, então eu tenho uma auto estima boa. Eu gosto do meu corpo, por mais que o corpo vá mudando com esse passar do tempo”, ressalta. 

Com dois casamentos na bagagem, Bel, como boa geminiana, não tem pressa para formalizar qualquer relação e hoje, com a maturidade, só deseja que esta seja lasciva enquanto durar, sem mais nem menos. Afinal, tudo o que ela precisa ela já tem: uma rede de amigos insubstituível.  ‘’Eu tenho relações de amizade muito fortes na vida, o tempo passa, mas os meus amigos são para a vida toda. Meus amigos suprem muito o meu lado afetivo. Sou uma geminiana louca. Só espero um encontro divertido e que eu não me aborreça”, diz a atriz que não tem tempo para DR. 

‘’Meus amigos suprem muito o meu lado afetivo. Sou uma geminiana louca. Só espero um encontro divertido e que eu não me aborreça” (Foto: Divulgação)

De uma família de artistas, Bel Kutner desde sempre teve essa relação muito saudável e natural com as questões que envolvem a vida sexual pessoal e com outrem. Dado o pontapé inicial em sua educação sexual, Bel apenas teve que ir amadurecendo conforme a banda tocava, sem se preocupar com os estigmas. ‘’Eu tive a sorte de não ter esse problema, eu não demorei a descobrir nada. Eu fui criada em uma família de artistas, onde minha mãe, Dina Sfat (1938-1989), fazia questão de falar e explicar tudo, e muito livre e consciente da sua responsabilidade. Isso nunca foi um problema, graças à mamãe’’, conta Bel que afirmou em uma entrevista antiga que, inclusive, não descarta relacionamentos com mulheres. 

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Ainda que a relação seja naturalizada entre Bel e o ato, sexo é coisa séria e entender a existência desses tabus opressores não é uma discussão para meras frases. Ela carrega um teor filosófico, sociológico e teológico em si, mas a diretora não desvia de nenhuma discussão e quando questionada sobre a manutenção desses estigmas como tentativa de frear a liberdade individual foi direto ao ponto: ‘’Liberdade nunca é a favor do poder. A liberdade é sempre revolucionária, porque você não tem como domar as pessoas que são realmente livres. A repressão sexual vem junto de um pacote gigantesco criado pelos que são poderosos e controlam as massas. As culturas repressoras têm sempre uma figura de poder e a Igreja, por exemplo, durante muito tempo colocou a mulher nessa figura pecadora durante muito tempo’’, declara.  

‘’Liberdade nunca é a favor do poder. A liberdade é sempre revolucionária, porque você não tem como domar as pessoas que são realmente livres” (Foto: Edu Rodrigues)

À frente do monólogo, Bel gostaria que tabu fosse transformado em totém e que, mais do que um espetáculo de eventos envolvendo sexo sem orgasmo, tamanho de pênis, ejaculação precoce, menáge e tantas outras nuances de uma vida sexual ativa, a peça fosse, então, um espelho para incentivar todas as mulheres a seguirem a sua liberdade e se desprenderem dos tabus ainda enraizados, mesmo que inconscientemente. No fim, O Prazer É Todo Nosso’ é um convite para se libertar das hipocrisias sociais e se permitir a se autoconhecer e a explorar todas as possibilidades da vida, seja sozinha ou com alguém. ‘’Trata-se de momentos cotidianos, com os quais as pessoas se identificam porque muitos passaram pela mesma coisa. Não tem nada bizarro. Ela não foi em uma aventura sexual da deep web, não tem nada disso. É uma coisa saudável, sem julgamento, são aventuras possíveis’’, relata.

Apesar do tom proeminente ser o da comédia, o espetáculo não desvia de assuntos mais austeros nos momentos que precisa. Além de entrelaçar uma linha do tempo das conquistas feministas ao longo da história, o texto também ilumina o lado mais sombrio do sexo: o abuso e a violência. Em cena, Juliana Martins se desnuda ao compartilhar os abusos que sofreu na infância e no início da carreira, propondo ao público uma reflexão não apenas acerca desses traumas como também das soluções que devem ser feitas com garantia legislativa, como leis punitivas e educativas.

De uma família de artistas, Bel Kutner desde sempre teve essa relação muito saudável e natural com as questões que envolvem a vida sexual pessoal e com outrem (Foto: Edu Rodrigues)

Para ela, é urgente que essa discussão também englobe os homens, vítimas de abusos e que, diante da masculinidade tóxica, pouco é comentado. Em média, homens só revelam a violência sofrida entre 20 e 30 anos após o ocorrido, de modo que o número de denúncias ainda é muito pequeno, totalizando, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apenas 9% das denúncias de casos sofridos por garotos entre 12 e 17 anos. ‘’Muita gente sofre abuso, homens e mulheres. Homem então nem se fala, é mais tabu ainda. Isso para o homem é horrível, porque eles ficam prisioneiros, de terem que ser o garanhão, o alfa, o varão, é uma coisa horrorosa’’, completa a atriz que é mãe de Davi, de 16 anos. 

Tempo cíclico

A Bel Kutner de 2022 teria muito o que conversar com Celestina, fiel escudeira de Teresa Cristina na novela ‘Nos Tempos do Imperador’, que terminou semana passada. De uma forma ou de outra, Celestina, mesmo que na sua vida do século XIX, personificou alguns conceitos do feminismo, debatidos até hoje, entre eles o da sororidade, um dos motivos da receita do sucesso da personagem entre o público. Como confidente da Imperatriz, interpretada por Letícia Sabatella, ela se disponibilizou para ser uma rede de apoio para a imperatriz e não tinha receio em expor o que sentia e os seus pensamentos como uma forma de defender a amiga, que sofria calada com a traição de Dom Pedro II (Selton Mello) com a Condessa de Barral (Mariana Ximenes). Ao assumir essa posição completamente partidária, Celestina representou as opiniões do público, que, em grande maioria, não aceitava o adultério. Ali, em um tempo tão distante, ela foi a voz do povo em pleno século 21. ‘’Quando amamos uma pessoa, você veste a camisa e toma as dores. Isso cria muita identificação e simpatia. Ela era a voz do povo dentro da história”, reflete. 

Bel na pele de Celestina em “Nos tempos do imperador” (Foto: Divulgação)

A amizade entre a Imperatriz e Celestina não existia somente em cena e toda química entre as personagens já existia há muito tempo. Amigas há anos, Letícia e Bel sempre mantiveram uma relação de mútuo respeito e carinho, e a novela apenas consolidou o que existia nos encontros entre as duas nas dezenas de cursos e aulas teatrais que fizeram juntas. A novela não foi a primeira vez que Bel mergulhou na realidade do século XIX, mas, para ela, embora seja um período no qual tenha-se mais acesso às informações para fins educativos, ainda é uma fase histórica que se tem muito o que explorar. A seu ver, a novela, apesar de todas as críticas sobre a veracidade do texto e alguns problemáticas reproduzidas, como o caso do racismo reverso, injetou um olhar contemporâneo e diferenciado em algumas narrativas e trouxe luz ao fato de que sempre existiu o feminismo, mesmo que ainda fosse desconhecido por aquelas mulheres, a partir de personagens como Celestina, Imperatriz, Condessa de Barral e, principalmente, a Pilar (Gabriela Medvedovski), que sonhava em ser médica e colocou a carreira acima do amor romântico.

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Mão na Massa 

Entre a filosofia dos sérios livros na sua lista de leitura e a leviandade dos cômicos vídeos das redes sociais (‘’se eu com 20 anos tivesse um Tik Tok, eu e os meus amigos íamos quebrar a banca’’), Bel Kutner disponibiliza o seu tempo para os próximos projetos da sua carreira. Agora, a atriz está se preparando para levar uma peça baseada nos diários da artista plástica Lygia Clark (1920-1988), conhecida por difundir a desmistificação da arte e a desalienação do espectador a partir de uma relação sensorial entre a obra-indivíduo. ”‘Lygia’, com Carolyna Aguiar, é uma direção minha com a Maria Clara Mattos sobre essa artista plástica, mulher super power, sensacional, revolucionária, gênia, louca, tudo de bom, incrível’’, conta a atriz que também planeja levar ‘O Prazer É Todo Nosso’ para os palcos paulistas e está em busca de patrocínio. A possível dobradinha teatral na cidade da garoa é motivo de animação e uma oportunidade para a atriz e diretora – que morou na cidade nos anos 90 antes de vir de vez para o Rio ficar ao lado do seu pai, Paulo José (1937-2021) – matar as saudades da selva de pedra. ‘’Eu voltaria facilmente para SP. Eu amo o Rio, sou carioca, posso até falar mal porque é minha cidade, eu tenho raízes profundas aqui, mas não me prende. O que me prendia no Rio era o meu pai, agora nada me prende aqui, sinceramente’’, diz. 

”Lygia” é uma direção minha com a Maria Clara Mattos sobre essa artista plástica, mulher super power, sensacional, revolucionária, gênia, louca, tudo de bom, incrível!” Foto: Divulgação

Ávida por desafios, a atriz encontrou um lugar instigante por trás das cortinas e há alguns anos vem investindo na sua trajetória enquanto diretora, um papel que permite que ela cresça enquanto profissional e possa observar a arte de criar sob um outro ângulo. ‘’Para mim não importa a posição, eu quero estar no jogo. O teatro é um lugar onde as pessoas aprendem a trabalhar em conjunto, mais artesanal, então, para mim, é até difícil estar em um set de filmagem e não reparar nos outros trabalhos. Eu já fiz de tudo em teatro, só não escrevi texto, porque isso eu não me sinto capaz. Mas a mesma coisa que me faz estar em cena, é o que me atrai na direção: a vontade de contar uma história. Eu gosto de dirigir, porque me ajuda como atriz, porque, quando você está do lado de fora, as coisas ficam muito mais simples de enxergar’’, diz Bel, que ainda sonha em atuar em um monólogo, interpretar uma vilã e estudar dublagem. 

Essa curiosidade pelo outro e essa ideia de de coletividade, de realmente botar a mão, foi um incentivo que faz parte da infância da Bel como um ensinamento passado adiante por Dina Sfat e Paulo José, expoentes culturais que fizeram história em obras marcantes da teledramaturgia, dramaturgia e cinematografia brasileira, às filhas. ‘’Éramos uma família circense e esse espírito de estar fazendo de tudo era o nosso. Meu pai sempre dirigiu e era cenógrafo. Minha mãe produzia e trabalhava por trás dos bastidores, Não é apenas uma ação matriz, de ir ali brilhar. Não tem nada a ver, é uma ralação mesmo para conseguir fazer’, conta a atriz. Um dos últimos desafios da atriz foi à frente da Cidade das Artes como diretora artística, trabalho que desempenhou durante três anos, onde teve a oportunidade de conhecer um outro lado da arte que escolheu como carreira, e pelo qual levou o Prêmio Cesgranrio de Teatro. Hoje, com o desenrolar da atual conjuntura política, potencializada pela pandemia, Bel, que adquiriu outras perspectivas ao ver de perto todas as idiossincrasias burocráticas da administração, enxerga o setor cultural como um dos mais afetados e, possivelmente, um dos últimos a conseguir retomar plenamente as atividades, um reflexo dos tempos desérticos que assolam a cultura brasileira.

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Para ela, além da retomada plena das atividades, nos próximos governos será preciso estabelecer projetos com tempo vitalício mais prolongado e com objetivos mais bem delineados. ‘’O problema é que os projetos são todos muito curtos, porque há mudanças de governo de 4 em 4 anos. Projeto bom é de 10 a 20 anos com um objetivo. Aumentar o acesso para população? Desenvolver núcleos criativos para que artistas se desenvolvam na dança, na música? Qual o objetivo e como se constrói esse projeto?’’, indaga a atriz que, apesar das ressalvas, acredita que a administração de Eduardo Paes, que recentemente anunciou a reforma do Teatro João Gomes, no Centro, fez o que pode diante do cenário atípico. ‘’Fosse lá quem fosse o prefeito, estava ferrado. O mundo estava se acabando, então nem tem como comentar direito a atuação do governo. Eu votei no Eduardo, faço campanha para ele se ele quiser se reeleger – e acredito que vá -, mas realmente não tinha muito o que fazer. Só de manter as coisas funcionando, estou achando que está indo’’, declara.

Com um olho na política e outro na arte, Bel Kutner segue costurando os seus próximos passos sempre com um otimismo de dar inveja. Mesmo que o mundo esteja acabando, o que estará à sua frente é a perspectiva de que tudo um dia acaba para melhorar de novo e de que, no fim das contas, o teatro sempre vai estar ali, como ofício, ritual e paixão, revigorando tudo outra vez. Até porque é, ‘’no teatro, onde está o amor’’.