*por Vítor Antunes
O teatro paulistano recente viu várias montagens de Zé Henrique de Paula. E, em todas elas, a chancela do seu talento. O diretor é uma das figuras de expressão da cena teatral contemporânea. Atualmente tem em “A Herança” o seu maior sucesso, com ingressos praticamente esgotados para toda a temporada, a despeito da duração do espetáculo. Além deste, Zé Henrique assina também a direção de “Brenda Lee e o Palácio das Princesas“, aclamada produção que traz uma atriz trans como protagonista, outra montagem é “Once – O Musical“. Somando-se a estas, o encenador se prepara para a estreia de “Codinome Daniel“, o novo trabalho do Núcleo Experimental, grupo de teatro que se propõe a explorar novos autores ou a prover releitura de clássicos. Nesta nova montagem, Zé Henrique intenciona dar protagonismo à biografia de Herbert Daniel (1946-1992), um dos mais importantes nomes da oposição à ditadura nos anos 1970, pioneiro da causa ambiental e porta-voz da luta contra o HIV numa época de grave perseguição às pessoas soropositivos. Ainda em plena repressão, Daniel tornou publica a sua homossexualidade. “Meus espetáculos falam de temas como o HIV/Aids, a comunidade LGBTQIAPN+ e eu acho que a plateia acaba sentindo empatia pelas personagens, por suas dores e por suas alegrias”.
O Brasil ainda é um país extremamente agressivo para com a comunidade LGBTQIAPN+, infelizmente somos o local que mais mata travestis no mundo. A homofobia é internalizada e os direitos alcançados estão sempre a um passo de serem revogados (como aconteceu recentemente nos EUA). A arte tem a obrigação de manter esse tema sempre em relevância, porque a luta não para, é diária – Zé Henrique de Paula
Uma das frases chave de Zé Henrique de Paula é: “Faço teatro diante daquilo que me indigna”. Perguntamos ao artista, esse doce rebelde, sobre qual a sua indignação que ainda não “virou” teatro. Ele diz que é a apatia sobre “o colapso climático. Não é comum que o teatro e a ciência se juntem para produzir material interessante, mas eu acho que é urgente que dramaturgos comecem a falar sobre isso: a apatia da população em relação a esses temas, sobre a cegueira proposital de grande parte dos políticos e das corporações, sobre a propaganda negacionista que visa mergulhar a opinião pública em confusão e falsas verdades. Eu sinto que essa indignação e revolta me movem em direção a esse assunto e que o teatro precisa voltar os olhos para isso”.
UM PENSADOR DE BRASIL
Para se fazer teatro no Brasil é, sobretudo, necessário pensar o Brasil. Quando a escola de samba Mangueira fez seu desfile em 2019 trazendo uma bandeira onde se lia “Pretos, índios e pobres“, objetivava falar, justamente, sobre povos minorizados. Zé Henrique de Paula traz em suas peças o Brasil que o país não quer ver, e por isso se torna urgente falar sobre eles. Mulheres, LGBT’s, soropositivos… Todos estes compõem a plataforma artística do encenador. Para este semestre, Zé tem duas estreias programadas em seu coletivo teatral, o Núcleo Experimental. “A primeira é um solo, ainda sem título, escrito e interpretado por Fernanda Maia, minha parceira artística no Núcleo há quase 30 anos. O solo trata de três gerações de mulheres da mesma família e as seus pontos de vista e relações a partir do recorte geracional, familiar e afetivo. A segunda é o musical original “Codinome Daniel“, com texto meu e músicas de Fernanda Maia, a respeito do revolucionário Herbert Daniel, que lutou contra a ditadura militar e morreu de AIDS em 1992. A peça é inspirada no livro escrito por James Green – “Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel“.
Herbert Daniel (1946-1992) foi militante da luta armada e um dos pioneiros a falar sobre preservação do meio ambiente no Brasil, nos Anos 1980. Foi um dos fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores) e formou um grupo dissidente dentro deste partido, acabando por ser um dos fundadores do PV (Partido Verde). O pioneirismo de Daniel – que não era seu nome de batismo, mas nome “de guerra”, usado quando participou dos grupos revolucionários opositores à ditadura – não é restrito a estas questões políticas. Ele também foi ativista da causa LGBT ainda nos anos 1980 e falou, destemidamente, sobre ser portador do HIV numa época em que ninguém abria o jogo sobre isso. Hoje o nome de Herbert Daniel é praticamente anônimo.
Para Zé Henrique, é fundamental falar sobre isso. “A ditadura militar ainda é um período da nossa História que precisa de muita atenção, embora haja pesquisadores que estejam se dedicando a trazer à luz sobre o que aconteceu realmente naquela época, como os historiadores James Green e Renan Quinalha, para citar os mais próximos. Muitos sobreviventes da repressão escreveram relatos biográficos muito importantes e sempre tocantes, quando não trágicos. Mas o apagamento de figuras importantes é um traço da cultura brasileira, especialmente no que diz respeito a figuras que pertencem a minorias, como era o caso de Herbert Daniel”, afirma.
O diretor destaca, também, a relevância histórica do ativista. “Daniel, ao se descobrir portador do vírus HIV, foi uma das primeiras pessoas a assumir-se soropositivo e falar abertamente sobre sua condição sorológica e orientação sexual, isso numa época em que o HIV ainda era praticamente uma sentença de morte e carregava um estigma ainda pior do que carrega nos dias de hoje. Ele foi o fundador de um dos grupos de apoio mais importantes do país, e ainda muito ativo hoje em dia, o Pela Vidda”.
Trazer a história de Daniel à luz, através do teatro, faz parte de um longo processo que ainda temos pela frente: o de resgate histórico dessas figuras importantes que ainda não receberam a devida atenção pelo trabalho extraordinário que fizeram – Zé Henrique de Paula
TODAS AS LETRAS
Quando do lançamento de “A Herança“, o Site Heloisa Tolipan fez uma longa cobertura da montagem, entrevistando quase todo o elenco. E todos eram unânimes quanto à ousadia da peça, especialmente no que tange à duração. A peça deu certo e é um sucesso. Perguntamos ao Zé Henrique a que atribui essa boa recepção ao espetáculo. “Em primeiro lugar, eu sinto que as pessoas estão ávidas por uma boa história. E a dramaturgia do Matthew Lopez é absolutamente brilhante! As pessoas realmente ficam vidradas nos seis atos que compõem “A Herança“. Além disso, a história tem um pouco de tudo – amor, arte, família, traição, morte, conquistas, lutas, superação. É absolutamente universal, embora se passe em Nova York e dentro da comunidade LGBTQIAPN+”.
E ele prossegue: “Eu sinto que o fato de ir exatamente na contramão do ritmo atual – rápido, desconexo, digital, fragmentado – foi um atrativo para a plateia. Em “A Herança“, é preciso dar tempo ao tempo, como se diz. Apreciar cada minuto, cada silêncio, cada monólogo, cada pausa. Obviamente, sem um time de excelentes atores isso não seria possível, então eu acredito que a segunda razão para o sucesso da peça é, sem dúvida, o elenco. Um dos melhores elencos com quem eu já trabalhei”.
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Outra peça igualmente transgressora foi “Brenda Lee e o Palácio das Princesas“. O espetáculo conta a história da travesti Caetana, também conhecida como Brenda Lee (1948-1996), que se tornou um marco na luta por direitos LGBTQIA+ por abrigar as travestis e trans, especialmente durante a epidemia de HIV, nos Anos 1980. A montagem foi muito premiada e o Grupo Experimental não cobrava ingresso se uma pessoa trans fosse assistir à peça. A importância da montagem não ficou restrita a este fato. A peça inovou ao trazer uma atriz trans, Veronica Valenttino, como protagonista. “O protagonismo trans era inédito no teatro e nos musicais, no Brasil. Com muito orgulho, digo que fomos pioneiros nisso e abrimos as portas para que mais atores e atrizes trans sejam incorporados no mercado de trabalho do teatro profissional. É uma reparação histórica importante e necessária. No caso de “Brenda”, a questão extrapolou a representatividade. Era um marco de proporcionalidade – como diz a atriz Verônica Valenttino. Num elenco de sete pessoas, seis eram trans e somente uma pessoa era cis. Isso quebrou paradigmas e ampliou a percepção da lacuna que existia”.
Ante a montagens que mesmo tratando sobre duras questões humanas, o que faz o artista olhar a vida com poesia e aplicá-la ao seu ofício é a própria condição de existir. “É das pessoas que eu extraio a poesia que tento colocar nos espetáculos. Há enorme capacidade de solidariedade, afeto, delicadeza, inventividade nas pessoas – e falo não só daquelas que produzem arte, falo de todo mundo. Mas como o teatro é sempre coletivo, feito do trabalho e da criação de muitos colaboradores em diferentes áreas, ali na sala de ensaio isso se revela de maneira sempre especial e imprevisível. Além disso, tenho um sentimento enorme de gratidão por poder e ter o privilégio de trabalhar com arte, especialmente num país em que tantas pessoas ainda passam pela vida com imensas dificuldades”, finaliza.
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