Rafael Primot faz série sobre Síndrome de Down, atua em peça LGBT e lembra dificuldade de longa com Regina Duarte


Em peça que aborda a agenda LGBTQIAPN+, Rafael Primot é um dos nomes do elenco de “A Herança”, que se propõe a discutir esta pauta afirmativa. Intitulado como “diretor das minorias e excluídos”, o artista dedica-se, também a seu novo projeto no audiovisual, o “Chuva Negra”, no qual o protagonista é um rapaz com Síndrome de Down. Para Primot, é importante incluir a diversidade, contudo sem fazer disso oportunismo. Rafael também relembra um de seus primeiros projetos audiovisuais a repercutir de forma mais contundente, o longa “Gata Velha Ainda Mia”, protagonizado por Regina Duarte no papel de lésbica. Para o diretor do longa, o ocaso do filme 10 anos após a sua estreia, aclamada, pode ter influência na forte rejeição que sua protagonista vive junto ao público

*por Vítor Antunes

“A Herança” é uma peça que se propõe a discutir a homossexualidade sob vários matizes, dentre os quais, o cronológico. Partindo desta premissa, há a presença de Rafael Primot em um dos papéis protagonistas, junto com Bruno Fagundes, Reynaldo Gianecchini e Marco Antonio Pâmio. Para o ator, esta peça é “diferente de tudo que nós, atores, já fizemos. Acredito que nenhum colega passou por um trabalho de duração tão extensa”, falou, sobre a montagem de Zé Henrique de Paula, que possui 5h30min de duração. “A Herança“, traz com destaque a questão LGBT, tratando-a sob todas as suas multiplicidades e, também, sobre a questão do HIV, que assolou a comunidade gay nos anos 1980. Outra questão importante e trazida pelo artista é o seu filme “Gata Velha Ainda Mia“, que, em 2023, completa 10 anos. Além da efeméride, trata-se do último filme protagonizado por Regina Duarte antes de enveredar para a militância política. Ainda que respeite o posicionamento ideológico da atriz e exalte seu talento, Primot lamenta que o filme tenha entrando numa espécie de limbo, em face do cancelamento da atriz que o protagoniza. “Eu tenho carinho pelo filme que fizemos juntos e que fez sucesso. Mas, depois que Regina tomou decisões questionáveis, o filme acabou não tendo mais vida. Engavetou-se. Só quem quer, efetivamente, assisti-lo vai atrás. Isso atrapalhou a sua carreira, infelizmente”.

Primot antecipa sua mais nova produção, pois que também é roteirista e diretor. Trata-se de “Chuva Negra“, uma série que revela seu pioneirismo ao trazer um rapaz que convive com a Síndrome de Down em um papel protagonista. Algo que é incomum no audiovisual. A série, cuja estreia está prevista para dia 24, no Canal Brasil, sinaliza o mês da visibilidade Down e tem no ator João Simões, que é trissômico, o condutor da narrativa. Segundo Primot, ainda há muito a percorrer nas políticas inclusivas, especialmente no que tange à Síndrome de Down. Diz-nos que não se pode “incluir estas pessoas e não saber lidar com elas. Inclusão não é oportunismo”.

Rafael Primot é o co-protagonista de “A Herança”. Arista também está às voltas com espetáculo que dá protagonismo à pauta da Síndrome de Down (Foto: Divulgação)

HOMENS

Doze homens em cena a todo tempo em uma peça de seis atos e que se estende por cerca de cinco horas e meia, distribuída em 89 cenas. Uma das possibilidades de apresentar “A Herança” seria esta, diante de sua característica quase épica. Outra maneira de apresentá-la seria pelo seu arrojo temático. A peça, escrita pelo dramaturgo americano Matthew López traz à tona o debate sobre a questão LGBT, que geralmente chega ao palcos através do teatro alternativo, “off-Broadway”. Na super produção capitaneada por Bruno Fagundes, a epopeia gay chega a São Paulo em suas cores verdadeiras. Primot nos fala que “faz parte da história da peça falar sobre as diferenças geracionais dentro da comunidade LGBT. Tem sido enriquecedor ouvir pessoas falarem de histórias que a minha geração não viveu, especialmente quando aborda a questão da epidemia de HIV, nos anos 1980. A gente sabe, a gente ouviu falar, mas não vivemos como aqueles que estavam se relacionando com seus pares, perdendo amigos e pessoas próximas. Ver alguém que conhecemos relatando estas questões acaba nos tocando de maneira diferente. Assim como traz outra realidade quando observamos as gerações mais novas enxergando possibilidades de futuro”, analisa.

A epidemia da HIV/Aids foi um dos símbolos dos anos 1980/1990 no mundo. No Brasil, a doença chegou em 1982, e cercada de muitos preconceitos, foi chamada, naqueles idos de “câncer gay”. Uma das primeiras notícias relacionadas a este tema foi noticiado no Brasil no ano seguinte, 1983, quando ainda cria-se que fosse um adenovirus a causar a tal “misteriosa doença”, como consta em reportagem de Fritz Utzeri, para o Jornal do Brasil, em 21/06/1983. “Não se sabe se é o Adenovirus o causador da Aids. Dos 1.552 casos, 597 pacientes já morreram”.

Para o ator, o HIV descortinou a homossexualidade, que nos anos 1980 era ainda mais reprimida e invisibilizada. Um dos personagens da montagem, inclusive, o que é vivido pela atriz Miriam Mehler, única mulher no elenco e em participação especial, corrobora esta fala. “A personagem diz que, naquele momento, passaram a observar as pessoas gays e ver que elas faziam coisas que a sociedade sabia que elas faziam, mas fingiam não ver. E trouxe à tona os relacionamentos gays que aconteciam e eram velados”. Por esta razão, acredita ser tão importante apresentar às novas gerações o contexto no qual a homossexualidade estava inserida nos 80’s e nos 90’s.

Ele também relata que a troca de experiências com atores mais jovens é muito enriquecedora. Dessas discussões de ideias, perceberam que a falta de referências bem sucedidas de relacionamentos homoafetivos também implica que a atual geração de homossexuais descubra por si só uma forma de expressar seu afeto: “Não há um padrão de relacionamento dentro das relações LGBT. Não há tantos modelos felizes que possam servir de referência. Devemos repetir o padrão heteronormativo ou fazer de uma outra maneira? Parece que a atual geração está descobrindo uma forma de relacionar-se”. Com efeito, a fala do ator se justifica quando observado o comportamento social e antropológico moderno. Cada vez mais é possível ver casais HSH andando de mãos dadas nas ruas, casando-se ou em manifestações públicas de afeto, o que era impensável há – poucos – anos atrás.

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Outro avanço destacado pelo artista diz respeito à abordagem da  temática homossexual nas artes. Por regra, o teatro e o audiovisual refletem o ideário da época em que estão inseridos. Perguntamos ao ator se ele acredita que a arte, sob algum aspecto, colaborou à perpetuação do estereótipo do gay afetado para servir à comicidade. “A TV, principalmente, tende a por em seus projetos, pessoas estereotipadas ligando-as à comédia em razão de ser esta uma forma que a sociedade acostumou-se a ver o homossexual. Está na hora de quebrar esses padrões”, diz. Ainda que destaque que os homossexuais afeminados não podem ser invisibilizados. “Essas pessoas existem, são reais. Devem ser incluídas”.

Diante das várias possibilidades e formas de representação da homossexualidade, bem como em face da grande durabilidade da peça, Rafael acredita que o grande desafio dela é descobrir “formas com que esse espetáculo seja exposto de uma maneira simples, chegue nas pessoas e consiga contar uma história nesse espaço de tempo. O Zé Henrique de Paula, diretor, tem essa forma de conduzir com grande delicadeza e simplicidade, o que acaba tornando ainda mais gostoso o processo de criação”.

As camadas da homossexualidade e os desafios sociais. Questões de “A Herança” (Foto: Divulgação)

Ainda que tenha sido apontado por Rafael como um diretor afetuoso, o próprio Ze Henrique conta-nos “fazer teatro diante daquilo que me dá raiva, que me indigna”. Mas, mesmo diante da indignação pelas causas sociais, o encenador diz que esta peça “não se move por este sentimento, mas pelo de compaixão e empatia. Esses dois últimos ocorrem de maneira nunca vista numa peça”. De acordo com o diretor, a montagem revela-se urgente em razão de “haver  siglas LGBT’s que são mais marginalizadas que outras. Há aquelas que são assimiladas na comunidade gay, mas não na trans, por exemplo, além do preconceito intra-comunitário. Há uma pirâmide de opressão que começa com a cisgeneridade, com a branquitude, com o poder econômico, que cria uma força capaz de empurrar os vulneráveis para uma condição de ainda maior vulnerabilidade. Os homens gays de hoje em dia, em tese, estão mais absorvidos na sociedade . Mas é preciso que a nova geração saiba que, ainda que haja avanços, este lugar está longe de ser o ideal. Até 1967, ser gay na Inglaterra era um crime passível de prisão ou enforcamento. E isto não faz nem cem anos. É preciso lançar esse olhar para o passado”.

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Rafael Primot. Na montagem de Zé Henrique de Paula, a questão LGBT é a diretriz (Foto: Arthur Rossi)

O CORDÃO DOS EXCLUÍDOS 

O samba de 2023 da Beija-Flor pedia que abrissem alas para o “cordão dos excluídos”, aqueles que foram marginalizados. Na internet, um site ao referir-se a Primot disse que ele é “o artista das minorias e dos excluídos”. Perguntado se encaixa-se nisto, ele disse que, “de fato, tenho priorizado trabalhos sob este tema e nas escolhas que faço como diretor, escritor e produtor”.

Um dos próximos trabalhos que ele pretende levar aos palcos é o monólogo “Baby, Você precisa saber de Mim“, no qual fala sobre a perdas familiares e luto. “Emprestei isso para a peça. Apesar de ser sobre o luto, trata-se de uma montagem otimista e o meu trabalho mais pessoal, no qual mais me exponho. Senti necessidade de fazer logo depois da pandemia. Encenei em São Paulo e também fiz uma curta temporada no Rio. Quero voltar a fazer, tão logo encerre ‘A Herança‘”. Outro de seus trabalhos é a série “Chuva Negra“, que estreia no dia 24, no Canal Brasil. Nesta, o protagonista é Lucas (João Simões), uma pessoa que convive com a Síndrome de Down. Segundo o diretor, é a primeira vez que, numa série, há um protagonista em tal condição. “É ele quem conduz a narrativa. E esta é uma condição inédita nas séries. Tenho o interesse em incluir os que estão à margem da história. Tanto que na mesma série há um casal gay que quer adotar uma criança, um trans… Faço escolhas partindo desta premissa. Tanto à frente das câmeras como atrás delas, procuro promover a inclusão destas pessoas”.

É preciso ter vontade de trabalhar com pessoas minorizadas. Há, por exemplo, especificidades, como a de trabalhar com um ator idoso, para o qual não posso mandar textos pelo celular, mas imprimi-los. Não basta apenas incluir, mas saber lidar com isso, com a maior exigência de tempo e de esforço. Não se pode ser oportunista. Não se pode querer que um ator Down responda como a uma pessoa neurotípica, já que elas têm outras habilidades – Rafael Primot

Para falar do caso de “Chuva Negra“, o ator diz que há a necessidade de dar uma atenção maior ao protagonista em razão de ele não ser neurotípico. Para comparar, lança mão do ator Fernando Ramos da Silva (1967- 987), que viveu o Pixote, no filme homônimo. O jovem foi tirado de seu ambiente, a comunidade favelizada, transformado em astro de TV e cinema sem que houvesse preparo para isso e, por não adaptar-se, acabou migrando para o crime. Essas mudanças forçadas, artificiais, não são venturosas. “Não dá para tirá-los do seu universo e depois devolver”.

Tivemos o cuidado de preparar (João Simões) com antecedência. Ela precisa estar confortável no seu ambiente de trabalho. E mais, há, uma grande pluralidade de diferenças no Down, assim como o há na comunidade LGBT. É preciso entendê-los como pessoas plurais – Rafael Primot

Uma das primeiras atrizes trissômicas a desempenhar um papel importante na televisão foi Joana Mocarzel, co-protagonista de “Páginas da Vida“. Na trama escrita por Manoel Carlos em 2006, ela era rejeitada pela avó, Marta (Lília Cabral) e adotada pela médica obstetra Helena (Regina Duarte). Sete anos depois desta novela, Regina Duarte foi o nome que encabeçou o filme “Gata Velha Ainda Mia“, dirigido por Rafael Primot. O longa, reconhecido tanto por conta da atriz como do diretor, completa 10 anos de sua estreia neste ano. Momento em que Regina Duarte encontra-se afastada de sua profissão, rejeitada por seus colegas e sendo alvo de duras críticas, especialmente depois de haver sido nomeada Secretária de Cultura na gestão Bolsonaro. Segundo Rafael, as polêmicas nas quais envolveu-se Regina ofuscaram o filme, ainda que tenha tido boa repercussão junto ao público e crítica. “Eu tenho carinho pelo filme que fizemos juntos. Fez sucesso. Porém, Regina tomou decisões questionáveis (na vida), de modo que, por esta razão, o filme acabou não tendo mais vida. Ficou engavetado. Só quem quer vê-lo mesmo vai atrás de um modo de assistir. E isso atrapalhou sua carreira. Infelizmente, já que é bom um projeto, e tem atuações excelentes tanto de Regina como de Bárbara Paz“.

Respeito a liberdade de Regina, e de todo jeito. Ela é uma senhora, faz suas escolhas pessoais. Durante as gravações ela foi incrível, disponível, agradável e fez um trabalho excelente. Se propôs a fazer coisas incríveis, como viver uma escritora lésbica, louca e velha. – Rafael Primot

Regina Duarte, vivia uma escritora maldita e lésbica em “Gata Velha Ainda Mia”. Bárbara Paz, uma repórter (Foto: Reprodução)

Quando transforma sua vida em monólogo e nomeia-o como música de Caetano Veloso cantada por Gal, Rafael Primot traduz a alma-mater da arte. Ao mesmo tempo que diz estar tudo azul e que vai tudo em paz, preocupa-se com a piscina, a gasolina, a margarina, o cromossomo. Com a velha canção do Roberto, com a velha gata que insiste em miar. Observa o corpo que tentaram invisibilizar e coloca-o no palco, protagônico. Provando que ser artista é algo mais que ser. É gostar de gente. E reconhecer que gente é para brilhar e espantar-se a cada própria explosão.