*por Vitor Antunes
Nome incensado do teatro brasileiro, vencedor de três prêmios APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) – sendo dois como ator e um como diretor -, mas de presença bissexta na TV, Marco Antonio Pâmio, professor de teatro há mais de 20 anos, diz gostar desse seu veio didático e afirma que isto foi definitivo para fazê-lo diretor – e inclusive ter uma produção profícua neste segmento mais que no da atuação. Porém, observa que ainda que haja um público jovem com fome de conhecimento e amor pelo teatro, há outros que parecem estar procurando o gênero para outras finalidades que não a afinidade pela dramaturgia. “Há pessoas com olhares equivocados sobre a profissão. Que objetivam ter o nome na mídia, a fama e não projetam aquilo que o precede: o estudo, a formação técnica e cultural”.
Há (jovens) atores que conhecem cada vez menos sobre os seus pares, mesmo os que morreram recentemente. É assustadora a falta de formação. Especialmente no mundo atual, onde a informação é cada vez mais acessível, haja pessoas tão mal informadas. É uma grande dicotomia – Marco Antônio Pâmio
Marco é um dos protagonistas de “A Herança“, montagem que está em cartaz desde o último dia 9, em São Paulo. Na peça do porto-riquenho Mattew Lopez, a pauta LGBT é trazida à tona e discutida sob a perspectiva dos personagens, que são gays. Para Pâmio é um destaque o fato de a encenação se propor a debater esta pauta, já que, via de regra, as peças que discutem esta temática costumam ficar nos teatros mais alternativos, devido ao preconceito. Uma outra peça de Marco Antônio, montada em 2000, também se dispunha a falar de homossexualidade, transexualidade e HIV e encontrou forte resistência, inclusive de atores que negaram-se a fazê-la. “Precisei juntar um grupo de amigos que trabalhavam de maneira quase generosa, haja vista que não consegui dinheiro de patrocínio nem apoio que me cedesse ao menos uma calça jeans para aquela montagem. Eu a patrocinei com o meu cartão de crédito”.
ARTE/DISCIPLINA
Ainda que tenha uma presença forte no teatro, vertente na qual foi premiado além dos já citados APCA’s, indicado em outros lauréis como o Shell, em 2004 e o Mambembe, em 1998, Marco Antônio Pâmio fez muito poucas novelas. Ele diz que sua estreia nas novelas foi um tanto difícil. Na sua primeira, foi protagonista. “Eu era um jovem ator recém formado pelo CPT do Antunes Filho, havia feito os seus espetáculos de repertório – com o “Romeu e Julieta” (1984) – junto à Giulia Gam. Esta peça teve muita projeção (…). Depois que houve a debandada do elenco daquela montagem, a televisão foi atrás do jovem casal protagonista a fim de que protagonizassem a próxima novela das 18h, “De Quina pra Lua” (1985). Giulia estava na Europa e não pôde aceitar o convite. Acabei indo eu sozinho e o meu par na trama acabou sendo vivido pela Isabela Garcia. Era uma época muito diferente da atual e tendo que ajustar a linguagem do teatro para televisão de forma quase autodidata, ainda que tenha contado com a generosidade dos meus colegas de cena, como a Eva Wilma (1933-2021), a Tamara Taxman, o Hugo Carvana (1937-2014) e a Isabela Garcia, que me ajudaram muito”.
Sobre a malsucedida novela oitentista, o ator aponta que ela “teve muitos percalços e problemas. Não fez sucesso, em especial quando comparadas às suas contemporâneas, Tititi (1985) e Roque Santeiro (Idem). A trama de Alcides Nogueira acabou transformando-se no patinho feio da emissora”. Para Pâmio, o seu trabalho subsequente, os 15 primeiros capítulos de “Mandala” (1987), repercutiram muito mais. Quase imediatamente após a gravação da trama, o ator foi aprovado para uma pós-graduação em Londres, o que afastou-o ainda mais da teledramaturgia, ainda que não da arte dramática. Só voltaria à Globo anos depois, na série “JK” (2006). Outras novelas completas, apenas nas emissoras paulistas: Na Band, “Água na Boca” (2008) e no SBT, “Corações Feridos” (2012).
O artista nega, entretanto, a crença geral de que estar afastado da televisão implica em uma produção artística menos intensa. “Esse gap na TV não implica dizer que eu tenha abandonado a profissão. Eu estava realizado profissionalmente. Não estar nas telinhas não quer dizer que eu não estivesse sob os holofotes”, justifica.
Formado em Comunicação Social, Pâmio é pós graduado no Drama Studio London, da Inglaterra. Depois que retorna ao Brasil, no início dos anos 1990 e desenvolve alguns trabalhos como ator, passou a embarcar, em paralelo, ao magistério. O que, sob a ótica do ator, permitiu-o reconhecer outra verve de seu talento. “Gosto de ensinar, de dar aula. Eu acho que o meu trabalho como professor acabou estimulando meu lado diretor. Tanto que tenho, nos últimos anos, estado mais como diretor que como ator. Gosto da energia do jovem, da gana, do sangue no olho, ainda que me depare com pessoas que têm olhares equivocados sobre a profissão e que objetivam ter o nome na mídia, a fama e não projetam aquilo que o precede: o estudo, a formação técnica e cultural. Isso me faz sentir que estes artistas possuem pouca bagagem acerca da história do próprio teatro brasileiro”. Pâmio prossegue dizendo que “Tem atores que levam a profissão a ferro e fogo, e outros tratam-na da boca pra fora. O meu papel, como professor, é ajudar para que as pessoas amem o teatro, tanto como eu, que não consigo me imaginar fazendo outra coisa”, disse ele, que já compôs o corpo docente da famosa escola de interpretação que leva o nome do diretor Wolf Maya.
VIDAS VELADAS
Em “A Herança“, a homossexualidade e a pauta LGBT são um dos motes centrais. Para Pâmio, que vive um dos protagonistas, há ainda um outro elemento significativo. Seu personagem, assim como ele, presenciaram a epidemia do HIV nos Anos 1980. O ator diz ser “Angustiante voltar nesse registro temporal. É algo como olhar no retrovisor. A montagem me faz voltar num tempo em que perdi amigos, companheiros de trabalho e numa fase em que o vírus era desconhecido, amedrontador. Tenho uma pequena diferença de idade com a do meu personagem, de modo que represento essa geração. O que ele conta são coisas que eu contaria para gerações mais jovens que não viveram. Revisitar é sempre dolorido por que acabamos nos lembrando daquelas pessoas especificamente queridas e da nossa convivência”, relembra.
Além disto destaca a marginalização que não apenas os soropositivos eram alvo. “Vários foram os que tinham de esconder-se. E que sofriam mais de uma vez. Ou por tratar paliativamente de uma doença para a qual não tinha tratamento, ou pelo estigma das pessoas que não chegavam perto delas, não viviam no mesmo ambiente, e precisavam mentir pro mundo o que ela tinham. Havia os que morriam sem que a família permitisse dizer que faleceram em consequência do HIV. O mundo mudava para aquelas pessoas à medida em que se revelavam doentes”. De acordo com Marco, “há uma iluminação, uma bondade em meu personagem, que me toca muito”. Walter, seu papel n’A Herança é um homem que abre uma casa a fim de recolher pessoas portadores da Síndrome, ainda nos Anos 1980.
Toda vez que damos luz a esta questão da homossexualidade, e conforme o tempo vai passando, vemos estes temas sendo tratados com mais naturalidade e aceitação pelo público – Marco Antonio Pâmio
De acordo com as falas de Marco Antônio Pâmio, uma das primeiras peças que ele próprio produzira chamava “Pobre Super-Homem” e foi escrita por Brad Fraser, um autor canadense. “Nos Estados Unidos, a encenação estreou em 1994 e aqui no Brasil, só consegui leva-la aos palcos em 2000. Foram seis anos de batalha, de rejeição – inclusive de colegas atores – negativa de apoiadores… Era assustador para as pessoas que houvesse uma peça que tratasse sobre temáticas delicadas como HIV e a convivência com ele, bem como a homossexualidade. Transsexualidade então, era algo proibitivo. Como produtor, precisei juntar um grupo de amigos que trabalhavam de maneira quase generosa, haja vista que não consegui dinheiro de patrocínio nem apoio que me cedesse ao menos uma calça jeans para aquela montagem. Eu a patrocinei com o meu cartão de crédito”.
A previsão para “Pobre Super-Homem”, diante da trincheira que enfrentava era tão intensa que não ventilava-se um sucesso. Ficaria apenas seis semanas em cartaz, e num teatro que não cobrava aluguel, a Sala São Paulo. No entanto, houve uma surpresa aos seus realizadores. “Acabamos ficando dois anos em cartaz, a fazer festivais e correr pelas cidades. A peça ficou em cartaz por dois anos”. Para o projeto em que está inserido, “A Herança”, Pâmio celebra o fato de ele estar num contexto mainstream, fora do circuito alternativo. “Uma evolução, realmente. Um sinal positivo dos tempos, pois que estamos num grande teatro, com um grande patrocinador e uma empresa colocando seu nome numa peça de extrema qualidade, inteligência e sensibilidade. Outras montagens precisaram ficar marginalizadas para aos poucos irem trazendo a plateia, tal como aconteceu com “Super-Homem”.
Ele continua: “Essa questão, do preconceito, leva tempo (para ser combatido). Mas há de se propor uma reflexão. Trata-se de uma peça que não está ligada ao preconceito ou à caricatura. “A Herança” se propõe a conquistar o público pelo coração, pela humanidade, pela identificação. É uma conquista gigantesca podermos falar disso tudo à luz da contemporaneidade. As coisas se transforaram, evoluíram e num esquema mais estruturado de trabalho. Trata-se não de uma peça LGBT ou gay, mas de uma montagem que toca através da sensibilidade”.
Em 1987, Marco Antonio esteve na primeira fase de “Mandala” , novela que passou por toda a sorte de dissabores em razão da Censura. Um dos temas que a trama se dispunha a tratar era a bissexualidade. E no cerne dessa discussão, os personagens de Pâmio (Argemiro), Taumaturgo Ferreira (Laio) e Giulia Gam – cuja personagem, Jocasta, interpretada na segunda fase da trama por Vera Fischer – viveria uma relação incestuosa com o seu filho, Édipo (Felipe Camargo). Como a Censura Federal vigorou até 1988, foi difícil levar temas como estes à TV. “Tentávamos deixar nas entrelinhas a bissexualidade de Laio e Argemiro por que nada podia ser falado claramente. O diretor, Ricardo Waddington, pedia que deixássemos uma coisa muito velada mas um desejo claro (…). Não se podia falar disso. Era tudo muito sugerido”.
Em 2015, o casal que deu a vida a “Romeu e Julieta” reencontrou-se no palco, capitaneados pelo diretor inglês Ron Daniels num projeto de Thiago Lacerda, a montagem de duas peças de Shakespeare: “Hamlet” e “Medida por Medida”. Para o ator, uma das grandes transgressões da montagem de Daniels era misturar cenas das duas peças nos ensaios, como fazendo a cena 3 do ato 2 de “Medida” e a cena 1 do ato 3 de “Hamlet” na sequência. “Era algo muito divertido. Coincidentemente, uma das peças que vi na Inglaterra e quis montar no Brasil era a adaptação teatral do filme “Laranja Mecânica”. Eu nunca sonhei ser dirigido por ele e esta foi uma experiência bonita, uma vivência, pois que, nas primeiras semanas de ensaio o elenco ficou junto, ensaiando isolado como num retiro”. O teatro é mais que a arte do encontro. Talvez seja o espaço do reencontro. Era 2015 mas podia ser 1984, assim como poderia ser amanhã. Ao assistir a peça no estrangeiro e decidi montá-la no Brasil, Marco assemelha-se ao jovem Bruno Fagundes, co-produtor de “A Herança“. Mesmo com alguns anos de estrada, o ímpeto da arte segue modelando o artista. Teatro para quem tem algo a dizer. A melhor peça é sempre a vindoura, a que ainda vai ser escrita. E fazer no teatro no Brasil é, sobretudo, um ato de decisão.
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