*por Vítor Antunes
“Olha a garra dos componentes da comunidade”. Esta frase não é tão incomum àqueles que acompanham o carnaval e entrou para o anedotário popular como forma de traduzir a paixão do componente sobrepondo-o a qualquer dificuldade. Para o carnaval de 2023, a romantização da precariedade revela-se como inaceitável e escolas com grandes dificuldades talvez tenham exibidas na tela da Band, durante transmissão dos desfiles da Série Ouro, a evidenciação dos problemas decorrentes das chuvas torrenciais do início de fevereiro e da recorrente e ausência de verbas. Escolas como Inocentes de Belford Roxo lutam contra o tempo para recuperar seus projetos alegóricos que, tal como os barracões, ficaram imersos d’agua. No Arranco, Antônio Gonzaga, o carnavalesco, foi às redes sociais dizer que havia “uma cachoeira em cima de cada carro alegórico. Todas as equipes (de alegorias) estão paradas. Estamos lutando para passar com os carros ao menos forrados em tecidos, e com dignidade. Lutando para pôr um carnaval na rua”. Como se não bastassem as intempéries, o profissional ainda teve furtado o celular nas cercanias do barracão da escola, ficando incomunicável às raias do desfile.
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Enquanto há espaços de trabalho precarizados e perigosos, existe, ao menos desde 2011, um projeto da Prefeitura do Rio de construir a “Cidade do Samba 2”, que toma por base o projeto original que hoje abriga as 12 escolas do Grupo Especial, na Gamboa. Uma das pessoas que participou do projeto, o arquiteto e carnavalesco Alex de Oliveira, diz que a Prefeitura está estudando a viabilidade de um novo terreno para edificar o equipamento urbano – depois de três tentativas de ocupação de espaços. Já o jornalista e pesquisador carnavalesco Pedro Migão, pede “urgência na construção da Cidade do Samba 2 para que as escolas tenham uma melhor condição de trabalho”.
SEM FANTASIA
Enquanto as escolas de samba do Grupo Especial dispõem de uma estrutura mais robusta para a montagem dos seus carnavais, as agremiações da Série Ouro, segunda divisão, passam por penúrias. Algumas de ordem financeira, outras por problemas estruturais, e há quem viva as duas. As escolas que sobem da Série Prata – ou seja, da terceira divisão – passam por dificuldades ainda maiores. Caso do Arranco, escola do Engenho de Dentro. A precariedade do seu barracão trouxe avarias contundentes aos carros alegóricos da escola recém promovida àquela divisão. “Uma cachoeira em cima de cada carro. O trabalho parado, todas as equipes tiveram que parar trabalhar. Muito do trabalho pronto foi danificado, coisas que tem que ser feitas não podem ser estamos lutando para não passar (com as alegorias) no ferro e na madeira, mas com forração pelo menos, com dignidade. (…) O Arranco está lutando muito para botar um carnaval na rua”, lamentou Antônio Gonzaga, nas redes sociais.
O artista prossegue, em seu Instagram, fazendo suas reivindicações: “Além do retorno financeiro e do capital que gira a partir do espetáculo que a gente produz, há as raízes das nossas escolas, da nossa festa (que também merecem respeito). As escolas merecem estrutura digna. Não é seguro fazer carnaval assim. A Cidade do Samba 2 é mais que uma urgência. Se não tem como fazer, que nos deem ao menos tetos e paredes e condições dignas para trabalhar”.
Um dos projetos mais antigos para construção da Cidade do Samba 2, datado de 2011, seria edificado na Avenida Brasil, na antiga Fábrica Rheem Química, em São Cristóvão e remonta a um projeto de campanha do prefeito Eduardo Paes ainda em seu primeiro mandato. Alex de Oliveira, ex-Rei Momo e um dos participantes do projeto da Cidade do Samba 2 diz que “depois disto, cogitou-se de construir na sede do antigo Sabão Português, na Avenida Brasil, e a ideia também não vingou. A antiga construção deu vez a um hipermercado. A terceira possibilidade era num terreno próximo à Quinta da Boa Vista que, supostamente, serve ao Exército Brasileiro e que já foi inviabilizado. A Cidade de Samba encontra-se em estudo de viabilidade técnica e econômica por conta da escolha de um terreno”, diz. Procurada, a Prefeitura do Rio ainda não se pronunciou.
Depois da construída a Cidade do Samba pioneira, em 2006, observou-se a necessidade de criar um espaço para abrigar as então escolas dos Grupos de Acesso A e B, que ocupavam antigos armazéns do Cais do Porto. De tão perigosos e insalubres, eram apelidados de “Carandiru”, uma referência ao antigo presídio paulistano. Ao falar dos antigos espaços, o jornalista e historiador carnavalesco Pedro Migão diz que “o Carandiru era um espaço horrível, porém melhor que muitos barracões de hoje”. Segundo ele, algumas agremiações, depois da construção da Cidade do Samba passaram a ocupar os espaços que as escolas do Grupo Especial utilizavam e de lá foram despejadas, especialmente entre 2016 e 2017. Migão prossegue dizendo que “quem ainda está na região são 3 ou 4 escolas, que dividem barracões, mas que estão com ordem de despejo e em espaços improvisados. Outras retornaram aos espaços próprios, que ocupavam há 20 anos, caso da São Clemente”.
O carnavalesco da São Clemente, Jorge Silveira, há dez dias do desfile, publicou em suas redes sociais que os carros alegóricos da escola de Botafogo sofreram avarias e sua equipe criativa estava em apuros diante da bruta chuva. “Barracão da São Clemente alagado. Alegorias mergulhadas na água. A equipe ilhada no segundo andar sem poder descer”, disse, em seu Twitter. Outro espaço alagado foi o da Inocentes de Belford Roxo, que também sofre com problemas de infraestrutura, além de ter um pé direito baixo que impede a confecção de grandes alegorias. De acordo com Migão, é “fundamental haver a Cidade do Samba 2 para que as escolas possam ter melhores condições de trabalho. Hoje o problema nos barracões é maior que o financeiro”, alega.
O jornalista vai além. Diz que “é muito complicado você cobrar dos artistas quando não há condições financeiras necessárias ou estruturas de barracão. Tem carnavalesco da Série Ouro que vai ter que montar seus carnavais na avenida, porque não tem pé direito suficiente. Há uma escola cuja inundação chegou a cerca de um metro de altura, e que havia fios energizados dentro da água. As agremiações das divisões o inferiores precisam de maior atenção em termos de condições e segurança de trabalho ”, alerta.
É um milagre que não tenham morrido profissionais no exercício de seus ofícios nessas escolas de grupos inferiores anualmente, já que as condições são ainda muito insalubres, com essas chuvas e fios energizados no chão sob risco de eletrocutarem-se – Pedro Migão, jornalista
Além da estrutura fragilíssima para montar seu carnaval, há outro vetor também complicado. A insegurança. O carnavalesco do Arranco foi furtado ao deixar seu telefone carregando no único lugar disponível: Um bar nas cercanias do barracão da escola. “Uma funcionária disse que colocaria meu celular para carregar e depois disse que não sabia onde ele estava e que possivelmente foi roubado por outro funcionário. (…) Tô incomunicável faltando 7 dias (para os desfiles)”, lamentou em seu Twitter.
Diante de um quadro tão desfavorável, quando a escola pegou a terceira chuva na semana do desfile, o artista da agremiação do Engenho de Dentro desabafou. “Não romantizem a luta dos trabalhadores da Série Ouro. Não achem bonito nos sacrificar por isso. Não é motivo de orgulho, é motivo de tristeza profunda. (…) Fica aqui o apelo, para que além do capital financeiro que gira muito dinheiro através do espetáculo que a gente produz, mas pela questão cultural e pelas raízes que fazem parte da nossa festa (…) as escolas merecem estrutura melhor. A cidade do Samba 2 é uma urgência”, reivindica.
São 15 as escolas da Série Ouro. Muitas delas terão de enfrentar ainda mais que os quesitos técnicos para fazer um bom carnaval. Mas também a dificuldade que a cidade tem em gerir sua mais importante manifestação cultural e a que mais reverte verba para a capital carioca. A contrário do que diz o samba da União da Ilha, de 1982, espera-se que na sexta e no sábado, dias dos desfiles das escolas, seja “o dia do choro sorrir”.
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