O Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar. A safra 2023/2024 foi de 713,2 milhões de toneladas, um novo recorde histórico com aumento de 16,8% em relação à safra anterior. E as biorrefinarias de cana-de-açúcar estão na vanguarda da sustentabilidade, transformando biomassa em produtos como etanol e bioenergia. Com novas tecnologias, é possível otimizar processos e melhorar tanto a eficiência quanto a sustentabilidade desse setor. A partir do caldo da cana é possível produzir etanol e açúcar; o bagaço pode ser usado como combustível para gerar vapor e eletricidade, o que permite a autossuficiência energética da indústria. E as biorrefinarias integradas permitem o aproveitamento máximo do bagaço da cana-de-açúcar, o que resulta em processos mais sustentáveis e em uma maior diversidade de bioprodutos.
Para discutir o papel crescente das biorrefinarias de cana-de-açúcar na economia brasileira e em prol da sustentabilidade, o podcast Café com Bioeconomia contou com Paulo Costa, CEO da House of Carbon, startup que estrutura, negocia e encontra soluções empresariais em créditos de carbono; o engenheiro químico Jaime Finguerut, diretor do Instituto de Tecnologia Canavieira; e o químico Luís Adriano Nascimento, que trabalha na área de biocombustíveis da Universidade Federal do Pará. A moderação foi realizada por Meire Ferreira, pesquisadora e consultora no Instituto SENAI de Inovação em Biossintéticos e Fibras. O Portal de Bioeconomia foi criado pelo SENAI CETIQT e com o objetivo de ser um ponto de encontro para a disseminação de conhecimento e realização de negócios de forma a catalisar o desenvolvimento em Bioeconomia no Brasil.
A cultura da cana-de-açúcar começou no Brasil em 1523, quando Martim Afonso de Souza (1500-1564) plantou as primeiras mudas na Capitania de São Vicente. “Quero destacar a trajetória de aprendizado do setor sucroenergético, que exige dedicação e tempo para seu desenvolvimento. O setor soube superar desafios e criar produtos de alto valor agregado. Um exemplo é a vinhaça, que era um passivo ambiental e se transformou em um biofertilizante aplicado nas plantações. Outro exemplo é a palha e o bagaço, que passaram a ser utilizados na cogeração de energia elétrica em caldeiras de alta eficiência, aumentando a receita do setor, representando de 10% a 15% do faturamento de uma biorrefinaria. O bagaço, especialmente, ganhou destaque com o avanço da cana-energia, gerando ainda mais eletricidade”, ressalta Paulo Costa, CEO da House of Carbon.
(Cana-energia é uma variedade híbrida da cana convencional desenvolvida especificamente para a produção de energia a partir da biomassa. Ela se caracteriza por ter maior quantidade de fibras e menor teor de açúcares em comparação à cana-de-açúcar tradicional)
Ele acrescenta: “Destaco o movimento de descarbonização global e a construção desse mercado, que está cada vez mais vinculado ao processo de mudanças estruturais nas matrizes energéticas. Duas importantes iniciativas do Governo, o RenovaBio, programa que incentiva a produção e o uso de biocombustíveis reduzindo as emissões de gases do efeito estufa, e o Programa Combustível do Futuro, que prevê que o país evite a emissão de 705 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) até 2037, estão impulsionando o desenvolvimento desse mercado. Estamos falando de novos produtos como o SAF, combustível sustentável para aviação, e da expansão da tecnologia do biogás. Além disso, há grandes oportunidades para produtos não energéticos, como o bioplástico. A partir do biogás, também é possível produzir biofertilizantes e uma série de outros produtos derivados dessa nova tecnologia”.
Eu vejo um mar azul para a gente navegar. Não vale mais a pena ser resistente a essas novas possibilidades do setor. O interessante do RenovaBio é que 80% das usinas são certificadas. E cada vez mais estão buscando notas melhores porque entendem que aquele processo é algo sem volta. É um processo de modernização – Paulo Costa, CEO da House of Carbon
O setor da cana-de-açúcar é fundamental para a economia, representando cerca de 2% do PIB brasileiro. “O setor sucroenergético é importantíssimo para a geração de empregos e para a modernização do interior do país. Além disso, a cana-de-açúcar é uma das principais fontes de financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o maior fundo de pesquisa brasileiro. Globalmente, são produzidas 1,9 bilhão de toneladas de cana por ano, e o Brasil é responsável por cerca de 600 milhões de toneladas. É, sem dúvida, uma das culturas mais importantes do mundo e extremamente eficiente. No Brasil, a cana-de-açúcar ocupa entre 1,2% e 1,5% do território nacional”, afirma Jaime Finguerut. Segundo o diretor do Instituto de Tecnologia Canavieira, mesmo que multiplicássemos por 10 a produção de etanol não ocuparíamos uma área comparável à de outras culturas agrícolas.
O professor Luís Adriano Nascimento compartilha:
Eu trabalho na Amazônia, sou amazônida. Enxergamos a possibilidade de desenvolver atividades econômicas mantendo a floresta de pé, utilizando seus recursos de forma sustentável. O papel da cana já está mais que consolidado. É natural pensarmos no fortalecimento da cadeia das biorrefinarias em torno do álcool, na produção de biofertilizantes a partir de resíduos com maior teor de umidade ou na utilização de resíduos lignocelulósicos com o foco na produção de etanol de segunda geração. Esse é o caminho que eu vejo pensando pura e simplesmente na cana-de-açúcar – Luís Adriano Nascimento, Universidade Federal do Pará
No entanto, o professor é mais cauteloso ao falar sobre o futuro do biodiesel, mencionando estudos que indicam uma estagnação desse combustível até 2050. Ele vê muito mais potencial no diesel verde e no combustível sustentável de aviação. “O álcool, por outro lado, tende a continuar crescendo, impulsionado pelos avanços científicos. É uma potência brasileira”, observa. “O futuro aponta para o aproveitamento total da biomassa, especialmente com a conversão de celulose em etanol, uma tecnologia já consolidada. Mas o que fazer com a hemicelulose e a lignina? É aí que entram mais estudos, mais pesquisas, desenvolvimento e inovação. É o que estamos discutindo aqui: como conciliar esses interesses para fortalecer ainda mais a cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Com o apoio de programas governamentais como o RenovaBio, o fortalecimento dessa cadeia é cada vez mais provável. Tudo isso cria um cenário muito favorável e otimista”.
Não é surpresa que, graças à sua eficácia fotossintética, a cana seja uma das culturas mais eficientes no uso da água, com apenas um terço da pegada hídrica de uma cultura convencional. Isso permite que a irrigação seja pouco utilizada. E, por ser extremamente produtiva, ocupa uma área relativamente pequena. Tudo isso significa uma pegada ambiental muito menor. Porém, quando comparados a um poço de petróleo, os biocombustíveis demandam uma área muito maior. O cientista canadense Vaclav Smil apresenta um conceito extremamente importante: a densidade de geração de energia (power density, em inglês).
“Se fizermos um furo em um terreno de 100 metros quadrados, podemos extrair uma enorme quantidade de energia. Já para produzir biocombustíveis a partir da cana, a área necessária é muito maior. Entre as diferentes formas de energia, como solar e eólica, a bioenergia exige uma área horizontal significativa. No entanto, a cana remove CO2 da atmosfera e gera um combustível que evita a extração de petróleo. O RenovaBio monetiza esse benefício, algo que o Brasil tem aproveitado desde 1976, quando o etanol começou a substituir a gasolina”, explica Jaime Finguerut.
O professor da UFPA, Luís Adriano Nascimento, não acredita que seja possível substituir completamente o petróleo. “Não da forma que se dizia, como ‘tem que acabar’ ou ‘não pode explorar’. Ainda somos muito dependentes. No entanto, todos os esforços para implementar alternativas que possam substituí-lo, mesmo que parcialmente, são válidos. Isso inclui um trabalho sério para fortalecer o mercado da cana-de-açúcar e desenvolver tecnologias que permitam o aproveitamento total de sua cadeia, expandindo essa ideia para outras culturas. O papel do RenovaBio e dos combustíveis do futuro é crucial para agregar mais opções ao petróleo, reduzindo nossa dependência. As perspectivas são positivas, mas é essencial que avancemos em sintonia com as políticas governamentais e com incentivos à produção e à pesquisa”.
A mediadora Meire Ferreira questiona o impacto real do RenovaBio no mercado de créditos de descarbonização (CBIOs) para as biorrefinarias de cana-de-açúcar. Ela também levanta uma questão ao lembrar que há discussões sobre a necessidade de revisar a política do RenovaBio. Um dos argumentos é que entidades ligadas às distribuidoras alegam que o programa não teria um viés ambiental claro. Além disso, ressalta que há debates sobre se o CBIO pode ser considerado um título de carbono, já que não atenderia a certos critérios essenciais para esse tipo de título, como adicionalidade e fungibilidade.
Para o CEO da House of Carbon, o maior benefício do RenovaBio é a mobilização do setor em torno da busca por maior eficiência por unidade de produção. Isso se reflete no processo de certificação energético-ambiental e nas melhorias de pontuação ao longo do tempo. As unidades de produção que inicialmente possuem determinadas notas implementam inovações tecnológicas para melhorar suas classificações, visando aumentar a rentabilidade com a emissão de mais CBIOs. “O crédito de descarbonização é fungível, ou seja, não há diferença entre o CBIO gerado no setor de etanol ou no de biodiesel, nem em relação ao tempo em que foi emitido, já que ele não tem vencimento. Um CBIO funciona como um ativo, uma commodity. O mais interessante é que ele é estruturado por diversos bancos e registrado na B3 para negociação”, explica Paulo Costa.
Destaca ainda que uma das vantagens do mercado de créditos de carbono é sua negociação em um mercado organizado, o que garante liquidez: “Todo mês, 3,5 bilhões de CBIOs são certificados e negociados na B3, assegurando o fornecimento desse ativo ambiental em cumprimento às metas obrigatórias dos distribuidores. No entanto, esses distribuidores enxergam isso de forma distorcida, como uma obrigação, quando deveriam ver como um benefício que estão proporcionando à sociedade. Eles têm a capacidade de incentivar o uso de biocombustíveis através de sua rede de distribuição, nos postos de combustíveis. Não são apenas passivos, ajustando-se aos preços”, explica.
Para o diretor do Instituto de Tecnologia Canavieira, Jaime Finguerut, “a beleza do RenovaBio é que se o valor do CBIO realmente refletisse seu impacto na descarbonização, muito superior aos R$ 70, atuais, o etanol se tornaria ainda mais atraente. A cana-de-açúcar é como um diamante bruto que o Brasil possui, sendo o principal produtor e gerador de valor com essa cultura. Outros 100 países que produzem cana adotam políticas públicas, enquanto aqui o foco é nos negócios. Na Índia, por exemplo, o segundo maior produtor mundial, o preço da cana depende inteiramente do governo, como ocorria no Brasil antes de 1979. Pior ainda, os milhões de produtores indianos frequentemente não recebem seus pagamentos porque o governo precisa cuidar de áreas como saúde, educação e geopolítica”, compara o diretor do Instituto de Tecnologia Canavieira.
Nosso objetivo é parar de usar gasolina e diesel. É uma obrigação frear o aquecimento global, limitando o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C. Os últimos anos deixaram bem claro que o mundo já está sentindo efeitos alarmantes da crise climática. Olha a loucura que temos: a pior seca nos últimos 90 anos, um estado inteiro debaixo d’água. Isso é uma obrigação, não é uma questão de mercado. Nós precisamos deixar embaixo da terra 30% do petróleo, 50% do gás e 80% do carvão. Ou a gente faz isso ou vamos ter, a cada ano, seca mais brava, enchentes e nevasca mais bravas. Tudo isso está interligado, é nossa obrigação, o CBIO é uma solução – Jaime Finguerut, diretor do Instituto de Tecnologia Canavieira
Apesar das vantagens e do bom desempenho do setor de cana-de-açúcar no Brasil, o químico Luís Adriano Nascimento aponta desafios que as biorrefinarias precisam enfrentar. “Um dos principais é aumentar a produtividade da cana para a produção de álcool, e a cana-energia é um bom caminho. Mas é fundamental reduzir os custos das enzimas envolvidas na transformação, já que a cana-energia tem mais celulose que açúcar”, explica. Outro ponto, segundo ele, é o aproveitamento integral da biomassa. “Quando pensamos em termos de biorrefinaria, o modelo da cana-de-açúcar está se aproximando muito do que acreditamos ser possível replicar em outras culturas, especialmente no que diz respeito ao aproveitamento de resíduos de acordo com suas potencialidades. Temos um longo caminho a percorrer e, principalmente, precisamos fortalecer a produtividade do etanol, seja a partir da cana-energia ou do etanol de segunda geração”.
O desafio básico, para Jaime Finguerut, é reduzir o preço de um produto através da diminuição de seus custos: “A única maneira de aprender é fazendo. Levamos 30 anos para conseguir que o etanol fosse mais barato do que a gasolina, considerando o custo por quilômetro rodado. Com as novas técnicas de monitoramento, controle e inteligência artificial, podemos acelerar esse processo. Hoje, contamos com agricultura digital, drones, satélites e espectroscopia de infravermelho próximo, entre outras tecnologias. O que realmente importa é que o produto da biorrefinaria seja mais barato que o combustível fóssil. E não adianta lamentar a falta de subsídios, é necessário encontrar uma maneira de produzir tudo isso de forma eficiente e em grande escala, em milhões de toneladas”.
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