Videocast ‘Cultura Inclusiva’ analisa como incluir as pessoas com deficiência nas organizações para além das cotas


Marcelo Ramos, antropólogo e gerente de Desenvolvimento Estratégico e Sustentável do SENAI CETIQT recebe como convidados Flávia Cortinovis, consultora de Emprego Apoiado e e subsecretária  municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro, e Daniel Mattos, que trabalha com design e inovação tecnológica na empresa EBSE Engenharia de Soluções e é uma pessoa com deficiência (PcD). “Meu recado é para a pessoa com deficiência não ter medo. E para a mãe e o pai não terem medo. Se eu tivesse medo lá atrás de trabalhar por medo de cair num setor ao qual eu não ia me adequar eu não estaria trabalhando no que eu gosto”, diz Daniel

Em agosto de 2023, o IBGE estimou que a população com deficiência no Brasil era de 18,6 milhões de pessoas com dois anos ou mais. O estudo revelou que apenas uma em cada quatro pessoas com esta condição havia concluído o ensino básico. Já a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) mostrou que a participação de pessoas sem deficiência na força de trabalho era de 66,4%, enquanto entre as pessoas com deficiência essa taxa chegava a apenas 29,2%. No ensino superior, o cenário é semelhante: em 2022, menos de 15% dos jovens de 18 a 24 anos com deficiência estavam cursando uma graduação. O quarto videocast da série Cultura Inclusiva, iniciativa do SENAI CETIQT, nos proporciona uma imersão no tema “Para Além das Cotas: Como Incluir as Pessoas com Deficiência nas Organizações“, uma análise sobre os desafios e experiências sobre a adoção da acessibilidade, da equidade e da inclusão de pessoas com deficiência. Marcelo Ramos, antropólogo e gerente de Desenvolvimento Estratégico e Sustentável do SENAI CETIQT recebe como convidados Flávia Cortinovis, consultora de Emprego Apoiado e e subsecretária  municipal da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro, e Daniel Mattos, que trabalha com design e inovação tecnológica na empresa EBSE Engenharia de Soluções e é uma pessoa com deficiência (PcD).

A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) tem como objetivo assegurar direitos e promover igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência no país. Ela determina que o Estado deve implementar ações que permitam a participação ativa desse público na sociedade, proibindo todas as formas de discriminação. No entanto, ainda há um longo caminho para o cumprimento dessas diretrizes. “Segundo a definição adotada pela ONU e pelo governo brasileiro, pessoas com deficiência são aquelas com impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo. Esses impedimentos, ao se confrontarem com as diversas barreiras de um mundo planejado por e para pessoas sem deficiência, dificultam a participação plena e efetiva na sociedade em condições de igualdade”, afirma Marcelo Ramos.

Flávia Cortinovis conta que, até o nascimento de Rafael (ela tem dois filhos), diagnosticado com Síndrome de Down há 13 anos, não conhecia ninguém com deficiência: “Isso me chocou profundamente, porque percebi que vivia no mundo da Barbie. Era como se eu tivesse visão, mas não enxergasse a amplitude da diversidade humana. O nascimento do meu segundo filho me impulsionou a contribuir, pois a diversidade é enorme, inclusive dentro do grupo de pessoas com deficiência, que não formam um bloco homogêneo. Foi essa experiência que me levou a atuar na área de diversidade e inclusão”.

O mundo foi planejado pela maioria e para a maioria. Frequentemente, pessoas de grupos minoritários não participam da criação de produtos ou serviços, porque sequer são vistas como um nicho de mercado. Hoje devem ser 20 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. A quantidade de pessoas com deficiência supera a população de muitos países – Flávia Cortinovis

As barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência podem impactar profundamente suas vidas. E isso vai além da falta de acessibilidade visível no Brasil. Daniel Mattos compartilha sua experiência: “Como autista de grau leve, sofri muito por não ser compreendido e até mesmo dentro de casa. Minhas dificuldades eram consideradas bobas, mas, para mim, eram algo sério. Por muito tempo, isso foi complicado. Você tenta explicar que é diferente, que não se encaixa nos padrões sociais, mas é difícil ser compreendido. Um exemplo disso: quando eu era criança, minha mãe prometeu que iríamos a um lugar que eu queria muito conhecer. Quando ela disse que não iríamos mais, sem dar explicação, isso me desorganizou completamente. Não foi só uma ‘crisezinha’, foi muito grave. Mas foi interpretado como birra, ela disse apenas que não tinha dado tempo e que eu precisava entender”.

O jovem dá outro exemplo de como sua interação com o mundo precisa ser compreendida por quem está ao seu redor: “Sempre gostei de sair com a minha mãe, mesmo para lugares movimentados. Mas tenho dificuldade com ruídos. Eu ficava empolgado, mas, na hora, me desorganizava. Ficava irritado e queria ir embora e insistia nisso. As pessoas me julgavam. Um dos maiores problemas da falta de inclusão e compreensão é essa mania de categorizar a dificuldade do outro. Vejo isso como um problema. Existe um padrão: as pessoas geralmente têm uma ideia fixa do que é ou não é uma dificuldade. Por exemplo, se alguém move uma caneca de um lugar para outro, isso não é problema para a maioria, mas, para mim, pode ser muito difícil. E isso gera julgamento. Evito pedir ajuda por medo desse julgamento, o que vira uma bola de neve que gera outros problemas”.

Pedir ajuda, no caso de Daniel, pode criar desconfiança em relação às suas competências, pois ele precisa de auxílio para tarefas que outros consideram simples, o que levantaria dúvidas sobre suas capacidades. “Daniel trabalha em uma empresa de inovação. É interessante observar como o olhar de uma pessoa com deficiência contribui em um ambiente voltado à criação e inovação. Sua percepção, aliada à diversidade dos demais, faz toda a diferença. Isso é positivo para ele e para todos. É um convite para perceber a riqueza que é incluir pessoas com deficiência nesse papel de criadores”.

A contratação de Daniel serve como um exemplo de como empresas que buscam inclusão podem agir. “A empresa era uma metalúrgica, e eu imaginei que iria trabalhar na produção, o que me deixou apavorado. Durante a entrevista, chamaram o chefe de TI para me conhecer, e depois tive a chance de conversar com o gestor, algo raro de acontecer. Ele perguntou onde eu gostaria de trabalhar. Em nenhum momento insinuaram que eu não poderia estar ali. Ele me entrevistou e me deixou escolher onde queria atuar”, conta o rapaz.

Quando fui entrevistado, o foco não estava na minha deficiência. Eu estava ali como um candidato, ponto, e isso me deu confiança – Daniel Mattos

O gerente de Desenvolvimento Estratégico e Sustentável do SENAI CETIQT chama atenção para um ponto na fala de Daniel, o fato de ele ter sido considerado um candidato como outro qualquer. “Estamos discutindo cultura inclusiva e é justamente essa visão que é importante se ter. Você deve ser considerado um candidato querendo trabalho. E, claro, fazer perguntas sobre questões de acessibilidade que são importantes para você é importante também. Mas você não deve ser julgado previamente pelas suas competências ou não, não a partir da sua deficiência”, ressalta Marcelo Ramos. Daniel Mattos responde: “Já ouvi muito que não pareço autista. As pessoas imaginam que o autismo seja sempre muito visível. Nunca me vitimizo, procuro sempre enfrentar. Meu chefe, meu supervisor e o presidente da empresa nunca me excluíram de nada porque sou deficiente. Eles elogiam e gostam muito do trabalho. Respeitam a maneira como eu faço, que é diferente. É essa diferença que pode contribuir para o rendimento da empresa”.

A recente atualização do DSM5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que aborda questões psicossociais, introduziu a ideia do espectro autista. Anteriormente, utilizava-se o termo Síndrome de Asperger, mas agora ele foi substituído pelo termo transtorno do espectro autista. É como um velocímetro, que varia de zero a 180, representando a amplitude das características do espectro. “Temos diferentes níveis de suporte, que indicam o grau de apoio necessário para cada pessoa. Por exemplo, alguém como o Daniel pode precisar de um abafador de ruídos em ambientes barulhentos. O nível 1 de suporte indica uma necessidade menor de assistência, o nível 2 um pouco mais, e o nível 3 requer um apoio muito mais intenso. A diversidade é enorme: há pessoas com autismo nível 3, não verbais, com crises convulsivas, ou aquelas com autismo associado a superdotação e altas habilidades. Pela classificação, todas são consideradas pessoas com transtorno do espectro autista (TEA)”, explica Flávia Cortinovis.

Ela lembra que, recentemente, foi incorporado à Lei Brasileira de Inclusão o uso do colar com imagens de girassol para identificar pessoas com deficiências não visíveis, como indivíduos surdos. O cordão de quebra-cabeça, por outro lado, é o símbolo internacional para identificar pessoas com Transtorno do Espectro Autista, e é o que Daniel Mattos utiliza. No entanto, isso não impede que ele passe por situações desconfortáveis: “Eu tenho direito ao assento preferencial no transporte público, mas nem todos sabem disso. Quando é uma pessoa idosa, a necessidade dela é evidente. Mas, e quando é um autista? Está se identificando, tentando mostrar que tem uma condição, mas as pessoas não reconhecem. Eu não gosto de pedir o lugar, as pessoas precisam ter consciência. Elas enxergam só o que é visível, como alguém sem membros ou sem visão, mas geralmente não reconhecem o autista. Eu passo por isso direto”.

 

Na vida profissional, Daniel utiliza a metodologia do emprego apoiado, voltada para a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal. A ideia é inserir esses profissionais em funções que correspondam às suas habilidades, promovendo seu potencial. “Geralmente, espera-se que as pessoas se adaptem ao modelo padrão. Com isso, perde-se o talento de muitos, que não conseguem desenvolver ao máximo suas capacidades por falta de um ambiente favorável. Daniel participa do Centro Municipal de Referência da Pessoa com Deficiência, em Santa Cruz, e integrou o programa de empregabilidade que implementamos no Rio de Janeiro. Assim, conseguimos preparar as empresas, conversar com elas e mostrar que nosso objetivo não é apenas preencher cotas. A diferença é que não apresentamos um currículo para cumprir uma cota, mas sim trazemos um candidato”, pontua Flávia Cortinovis.

A importância de realizar esse trabalho nas empresas está em desconstruir barreiras criadas por atitudes baseadas na falta de convivência com pessoas com deficiência: “O fato de o Daniel estar aqui compartilhando sua experiência, usando o transporte público e trabalhando em uma empresa, certamente oferece às pessoas a oportunidade de ver a enorme diversidade humana. É assim que desconstruímos rótulos e paradigmas ainda presentes na sociedade. Por exemplo, ao contratar alguém com deficiência intelectual que não lê com fluência, podemos ajustar o processo, com frases mais curtas, letras maiores, mais espaço entre as linhas e uso de cartazes. Daniel disse algo importante: ‘Se fosse para trabalhar na produção, com aquele barulho, eu não conseguiria’. Muitas vezes, as empresas oferecem cotas, mas não oportunidades de trabalho significativas, colocando esses profissionais na base da pirâmide, sem considerar suas aspirações, preferências e talentos”.

Uma das atitudes mais deploráveis que ainda acontecem no ambiente de trabalho é não chamar a pessoa com deficiência pelo nome, mas de PcD. A consultora de emprego assistido conta uma história terrível: “Visitei uma empresa do setor automobilístico onde os funcionários usavam uniformes com seus nomes bordados e, logo abaixo, em velcro, o departamento ao qual pertenciam. Um gerente apresentou os colaboradores: ‘Esse é o Marcelo, da Comunicação, esse é o Daniel, da Tecnologia, e essa é a Andrea, nossa PcD’. Olhei para a plaquinha dela, e estava escrito apenas ‘PcD’. Aquilo me chocou profundamente, pois Andrea nem sequer tinha um departamento, o uniforme dela apenas indicava sua condição. Ela não era o Marcelo da Comunicação, o Daniel da Tecnologia, ou a Flávia do RH. Era simplesmente a Andrea PcD. Desde então, nunca mais usei a sigla. Não uso, não falo e não escrevo”.

Marcelo Ramos pede a Daniel Mattos que compartilhe sobre sua trajetória profissional e suas conquistas: “Entrei como auxiliar de informática, mas meu foco sempre foi Inteligência Artificial. Certo dia, houve um incidente que precisava ser recriada a cena, e o diretor mencionou que seria ideal usar IA. Meu chefe me chamou e pediu ajuda. Dei algumas ideias, mas imaginei que a equipe de engenharia assumiria o projeto. No entanto, devido à alta demanda deles, o trabalho ficou comigo. Pensei em uma forma diferente de usar a IA, não apenas aproveitando o que já estava disponível, mas adaptando para fazer coisas além do que ela estava programada. O presidente gostou tanto que começou a investir em projetos de IA. Todo projeto que eu desenvolvia era aprovado. Depois da animação que fiz, ele passou a enxergar meu potencial. Com o tempo, as pessoas começaram a notar meu trabalho, e eu fui me desenvolvendo dentro da empresa”.

O que eu digo é para a pessoa não ter medo. Se você ficar preso a esse sentimento, acaba entrando em um ciclo que impede qualquer avanço – Daniel Mattos

Esse progresso de Daniel ocorreu em menos de um ano. No entanto, muitas famílias, mães e empresas ainda não têm familiaridade com pessoas com deficiência e, com frequência, não tentam entender essa realidade. Então, quais são as estratégias para incluí-las de forma efetiva no ambiente de trabalho? Para Flávia Cortinovis, o primeiro passo das empresas é buscar compreender melhor o outro. “Como fazer isso no mundo corporativo? Convidando essas pessoas para conversar, como o SENAI está fazendo aqui ao trazer o Daniel para compartilhar suas histórias. Quando vemos o mundo sob o ponto de vista das próprias pessoas com deficiência, temos uma compreensão diferente. É essencial que as firmas convivam com elas e as vejam além das limitações, com qualidades e múltiplas habilidades. Outra questão importante: a companhia está buscando candidatos ou apenas pessoas para cumprir cota, colocando todos na base, sem considerar as aspirações de cada um?”.

Quando deixamos de ver apenas a deficiência e passamos a enxergar a pessoa por trás dela, tudo muda naturalmente – Flávia Cortinovis

O trabalho realizado pela Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência, que envolve dialogar com empresas, sensibilizá-las, prepará-las, apresentar candidatos e fornecer apoios necessários previamente identificados, é oferecido gratuitamente pelo serviço público em sete endereços no município. Em outros estados e municípios, essa função é geralmente desempenhada por organizações sociais. A Associação Nacional do Emprego Apoiado serve como uma referência para identificar se há alguma organização, instituição ou órgão oferecendo esse serviço em outras regiões. “Quando incluímos uma pessoa em uma empresa, todos ganham: não apenas a pessoa e a empresa, mas também os familiares, os vizinhos, os funcionários, e a própria organização, que passa a experimentar uma série de soluções e ideias antes não exploradas”, comenta Flávia Cortinovis.

E ela acrescenta: “O que transforma realmente é a oportunidade de a gente se reconstruir todos os dias e mudar aquela nossa velha opinião formada sobre tudo. Se a gente acredita verdadeiramente que o que pensamos hoje pode não ser exatamente a mesma coisa amanhã, porque o que diferencia são as experiências que eu tenho no caminho. E quanto mais eu me abro para viver essas experiências de formas diferentes, com pessoas diferentes, buscando, inclusive, forçar a barra para viver com pessoas diferentes. Quando a gente deixa de enxergar a deficiência e passa a enxergar a pessoa que tem a deficiência, isso naturalmente muda tudo”.