Vivendo vilão no cinema, Fernando Eiras revisita a trajetória e fala do cigarro que driblou a censura em novela


Após haver interpretado o Teodoro de “Um Lugar ao Sol”, ator fala sobre o filme “Cano Serrado”, no qual vive um policial federal corrupto e que foi lançado pouco após o falecimento de seu protagonista, o ator Rubens Caribé (1965-2022). O ator está gravando seu novo projeto cinematográfico, um filme cujo nome provisório é “Mauricio de Sousa – realizador de sonhos”, em homenagem ao grande grande criador da Turma da Mônica. Eiras relembra a famosa cena da novela “Água Viva”, exibida ainda durante a ditadura, na qual personagem fazia um “cigarro suspeito” em cena. Da mesma novela, comenta a polêmica que gerou o seu personagem relacionar-se com uma mulher mais madura

*Por Vítor Antunes

O primeiro trabalho artístico de Fernando Eiras foi como cantor, aos 10 anos, com uma música que dizia “Menino Sol, vem pintar com as tintas claras da vida”. Hoje, aos 65, o ator volta a um trabalho que se relaciona com a vida de alguém que também lançou mão das cores para viver. Eiras está na cinebiografia do quadrinista Maurício de Sousa, interpretando o jornalista e empresário Octávio Frias de Oliveira (1912-2007), que, nos anos 1960, inseriu Maurício no quadro de funcionários da Folha de S. Paulo. “Trata-se de um filme que aborda o desenhista em princípio de carreira, mas com um grande poder imagético. Na época em que Maurício chega a São Paulo, Octávio resolveu fazer um jornalzinho com histórias em quadrinhos”, conta o ator. Fernando exalta a figura do autor da série Turma da Mônica: “Ele alcançou um prestígio que nunca poderia imaginar, tanto que foi recebido por chefes de Estado e até pelo papa. Tem uma alma de menino”. No longa de Pedro Vasconcellos, cujo nome provisório é “Mauricio de Sousa – realizador de sonhos”, o desenhista será interpretado por seu filho, Mauro Sousa.

Para além da ludicidade das tirinhas infantis, Fernando também pode ser visto no filme “Cano Serrado”, que estreou em agosto. Neste longa, de Erik de Castro, Eiras interpreta um delegado de polícia do Distrito Federal. “Um homem furioso”, segundo o ator. Ele descreve seu personagem como sendo “um sujeito corrupto. No filme, há uma guerra de gangues, uma relação com os traficantes e a polícia. Para gravá-lo, eu passei três meses em Brasília”. O filme, de forte violência, marca, também, como sendo a última participação do ator Rubens Caribé (1965-2022) no cinema. O artista faleceu pouco antes do lançamento da fita.

Cada um de nós tem um traço violento, uns mais outros menos. Eu sempre quis fazer um homem furioso – Fernando Eiras

Em “Cano Serrado”, Fernando Eiras vive um delegado corrupto (Foto: Reprodução)

A SOLIDÃO DO SOL

Quando ainda assinava Fernando Antônio, Eiras despontou como artista. Não como ator, mas como cantor. Participou de uma das fases eliminatórias do II Festival Internacional da Canção da TV Globo, cantando a já citada canção “Menino Sol”, de Eduardo Souto Neto. Não apenas Fernando era muito jovem, mas o compositor também, que estava com 16 anos. A família de ambos é muito musical. O pai do ator é o compositor Haroldo Eiras (1919-1980). Já o compositor é hoje um dos mais importantes maestros brasileiros. Arranjador de grandes artistas e de trilhas sonoras icônicas, como o “Tema da Vitória”, que sonorizava os triunfos de Ayrton Senna (1960-1994) nas transmissões da Globo. Fernando relata que, além desta participação no festival, gravou três discos quando ainda era criança, e por volta dos 13 anos resolveu, por indicação do seu pai, entrar para o teatro. A porta de entrada deu-se através de um amigo dele, Ziembinski (1908-1978), que indicou-o para o Tablado:

Eu precisava ser ator para me relacionar com as pessoas. (…) Eu vivia num mundo muito meu (…). Papai preocupava-se com isso, porque eu precisava ganhar o mundo. Por causa dele, comecei a pensar em teatro. Eu era uma criança solitária, ainda sou e sempre fui. Prezo pela minha solidão, ela é afortunada – Fernando Eiras

Neide Maria e Fernando Eiras, com 10 anos, nos bastidores do II FIC, na Globo (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

Depois de haver começado sua experiência como ator no Tablado, Eiras foi para a TV em 1978, na novela “Sinal de Alerta” a convite de Walter Avancini (1935-2001) que o viu trabalhar na montagem de “A morte do Caixeiro Viajante”. Depois, trabalhou em “Pai Herói”, também sob a batuta do diretor. Todavia, esta reportagem localizou um trabalho ainda mais antigo do ator, uma figuração no Capítulo 23 de “Pecado Capital”, novela de 1975.

Fernando Eiras fazendo figuração no Capítulo 23 de “Pecado Capital”, de 1975 (Foto: Reprodução/TV Globo)

Em 1980, Fernando esteve no elenco de “Água Viva”, uma novela solar e contemporânea de Gilberto Braga (1945-2021), que retratava a Zona Sul carioca de então. Como era costumeiro naqueles idos, especialmente na juventude que frequentava o famoso Píer de Ipanema, o diretor da trama, Roberto Talma (1949-2015), ao receber uma cena do Capítulo 39 que não tinha nada de importante no núcleo “dos jovens”, acabou entrando pra história da teledramaturgia brasileira: “A novela tinha uma coisa de cotidiano naturalista. O meu personagem dividia apartamento com o do Fábio Júnior (Marcos), o da Glória Pires (Sandra), o da Lucélia Santos (Janete), da Ângela Leal (Suely) e o da Maria Padilha (Beth). No meio de um capítulo, Sandra, Alfredo e Beth estariam na sala ouvindo rádio. Talma não acreditou que eles estivessem ouvindo rádio ou lendo um livro, ou vendo televisão. Mandou então que o contrarregra trouxesse um pacote de Drum [tabaco holandês], picotou umas sedas de cigarro de palha e mandou que eu fizesse um cigarro”. Temendo a maledicência, o ator perguntou ao diretor o que diria se problematizassem a cena. E Talma respondeu: “É um cigarro de palha”.

Eiras prossegue: “Em cena, eu convidava Sandra para ir ver um filme da Jane Fonda. E era só isso”. E assim foi ao ar insólita cena de um baseado-fake sendo feito em plena novela das 20h, sob as barbas da Censura e da ditadura. Curiosamente, o que causou mais escândalo à época não foi esta transgressão, mas o preconceito. O público não viu com bons olhos o relacionamento entre o personagem de Eiras e aquele vivido por Beatriz Segall (1926-2018) em razão da diferença de idade entre eles.

 Eu tinha cenas de beijo com a Beatriz Segall e as pessoas ficavam escandalizadas. Se o Brasil é um país conservador, preconceituoso, racista e homofóbico hoje, imagina em 1981! Havia sempre um “Oh! Como pode isso?”. Eu nunca fiz parte desse Brasil careta – Fernando Eiras

Fernando Eiras e Beatriz Segall em “Água Viva”. O relacionamento de ambos escandalizou o público em 1980 (Foto: Reprodução)

Em mais de 40 anos de carreira talvez o desafio maior tenha sido o mais recente: ter de gravar uma novela em plena pandemia do coronavírus. “Um Lugar ao Sol” estava no início de suas gravações quando tudo precisou ser paralisado. “Eu e Ana Beatriz Nogueira fomos uns dos primeiros a iniciar as gravações. Éramos testados e ficávamos num hotel, além de não podermos ter contato com outras pessoas já que isso colocava em risco a produção inteira no caso de alguém contaminar-se (…). Nos estúdios todos pareciam astronautas. Mas tudo estava firme e foi um prazer este trabalho”.

Ainda que destaque o fato de haver gostado de todas as cenas que fizera na trama de Lícia Manzo, o personagem interpretado pelo ator, Teodoro, não pôde ter um aprofundamento de sua personalidade, já que os protocolos sanitários acabaram por encurtar a trama. A contrário da outra experiência de Eiras com Manzo, na novela “Sete Vidas”. Nesta última, seu personagem terminava tendo um envolvimento amoroso com Eriberto (Fábio Herford). Anteriormente a esta novela, o ator viveu um outro gay, em “Páginas da Vida”, chamado Rubinho. A homossexualidade sempre foi um tabu quando pautada nas novelas.

É muito difícil, nos horários populares, falar de qualquer questão voltada a questões erótico-afetivas. Pode gerar polêmica. O Brasil não tem maturidade para isso. A TV Globo tem um compromisso com o grande público e um alcance grande em todos o país e ela toma muito cuidadosa ao abordar – Fernando Eiras

Thiago Picchi e Fernando Eiras viviam um casal gay em “Páginas da Vida” (Foto: William Andrade/TV Globo)

RAPSÓDIA DE SAUDADE

Dentre os reflexos de uma carreira longeva consta o de ter podido estar com grandes nomes artísticos tanto da TV como do teatro. Do elenco de “Água Viva”, além de Segall – a quem o ator descreve como “Uma mulher deslumbrante, uma atriz incrível, uma mulher honesta, ainda que austera, difícil, de personalidade forte”, ele ainda esteve com Henriette Morineau (1908-1990) e reencontrou-se com Tônia Carrero (1922-2018), “que já era amiga de meu pai. Tônia apresentou-me no teatro. Num ensaio, entre os atores, ela disse ao elenco ‘Este é Fernando Eiras, um jovem ator, filho de um grande amigo meu’. E a mim comentou: ‘Falei a seu pai que iria te apresentar ao teatro. Então, Fernando, estou te apresentando a ele”.  Durante a entrevista, o ator relembrou, com alegria, momentos com Paulo Autran (1922-2007) e Dulcina de Moraes (1908-1996). E exaltou sua parceria com Walter Avancini. Este, famoso por ser irascível, tinha outro comportamento com Fernando. “Avancini não era mau comigo, pelo contrário. Ele tinha uma alma de seminarista – pois que fora um. Desistiu de sê-lo, mas seguiu por outro sacerdócio: o da profissão. Ele queria atenção, profissionalismo, perfeição, então exigia uma atitude quase bélica. Por vezes havia um ambiente de animosidade ou tensão, que também não é bom. O ator precisa de uma atmosfera afetuosa (…) para que possa usar seus recursos cênicos. Tudo vai pelo afeto”.

Fernando Eiras, Beatriz Segall e Henriette Morineau em cena de “Água Viva” (Foto: Reprodução/TV Globo)

Em duas passagens importantes pela extinta Manchete, Eiras destaca a sua participação em “Xica da Silva”, não apenas por conta de sua parceria com Walter Avancini, mas por tratar-se de um produto que tinha a assinatura de Walcyr Carrasco. “Eles eram uma dupla dinâmica. O autor é um amigo querido, assim como Avancini. Eu me divertia por que Walcyr e Avancini não paravam de inventar coisas. E era uma novela que todo mundo via, o país inteiro via, era uma coisa louca”. Há um destaque nesta história também. Foi a primeira novela do ator sem a sua pinta sobre a boca. “Walter me aconselhou: Todos os seus personagens vão ter esse sinal em cima da boca. Um personagem pode ter esse sinal mas um ator não. Um ator tem que ter a cara a cara lavada. E assim fiz”. A despeito da precariedade de uma TV à beira da falência, o ator relata que o elenco conseguia fazer “coisas inacreditáveis”. Diz que Xica não foi o canto do cisne da Manchete, mas “um canto mais que perfeito maior”.

Fernando Eiras em “Xica da Silva”. Parceria com Walter Avancini e Walcyr Carrasco (Foto: Reprodução/TV Manchete)

Tratando-se de afeto, o ator relembrou a experiência personalíssima que viveu em “Eu Prometo”, novela de Janete Clair (1925-1983). Esta foi a última trama escrita por ela, que faleceu ainda durante a produção “A nossa sorte era de que Dias Gomes (1922-1999) estava ali dando suporte e a Gloria Perez também estava exercitando a caneta, para que a novela não desabasse”. Para Fernando, não apenas partia a autora, mas uma amiga “Éramos próximos, não apenas eu e ela como aos filhos. Janete dava muitas festas gostava de casa cheia, chamava a mim para que tomássemos chá juntos. Foi uma barra pesada”, relembra.

Ainda nos anos 1960, o ator participou do antigo programa de Dercy Gonçalves (1907-2008) e muitos anos depois, gravou a série que homenageava a comediante, vivendo seu marido na série “Dercy de Verdade”. Em 2010 pôde colocar a sua voz como cantor, na série “Dalva e Hervielto”, vivendo o cantor Francisco Alves (1898-1952). Vários reencontros.

Nascido no Rio, o ator mora em São Paulo há oito anos. Ainda que se diga “ apaixonado pela cultura popular, pelo samba e poesia do Rio, não pretende voltar a morar na capital carioca:

A cidade onde eu nasci e cresci está submersa, tomada pela milícia, que assalta e oprime o povo carioca. É uma cidade perigosa de se viver. A cultura sempre foi maltratada no Brasil mas o Rio trata mal a sua cultura – Fernando Eiras

Em “A Dona do Pedaço”, fernando Eiras retomou a parceria com Walcyr Carrasco (Foto: João Miguel Junior/TV Globo)

Além do compositor Haroldo Eiras, o artista é bisneto do Dr. Eiras (1828-1889) famoso médico psiquiatra do século XIX que possuía um hospital com seu nome. Dizia-se que ele era médico da Princesa Isabel (1856-1921) e seu nome batizou uma parada de trem. Fernando, por sua vez, não intenciona ser estação. Quer ser locomotiva, e conduzir sua carreira enquanto houver estrada:

Eu resolvi fazer teatro para me comunicar como pessoa e para me respeitar como ator. Então, meu sonho é viver como Laura Cardoso, como Ary Fontoura, esses que são atores e bem velhinhos. Eu me sinto como um Highlander, já que comecei aos 10 anos. Quero não apenas fazer trabalhos bonitos, mas que sejam úteis para o mundo – Fernando Eiras

Ao falar de Walter Avancini o ator lembrou-se que ele era fã de Maria Callas (1923-1977). Uma das óperas cantadas pela falecida soprano, “Carmen”, diz que “o amor é um pássaro rebelde”. A arte também seria. Rebelde por ser contínua, interminável, indecifrável. É como se a própria arte olhasse para o ator e dissesse o mesmo que Eiras falou a Dulcina quando flagrou-se frente a ela: “É você, né?” E ela disse “É. Às vezes sou eu”. Tal como na ópera de Bizet (1838- 1875), e na fala de Dulcina, a arte é “O pássaro que julgavas surpreender mas que bateu asas e voou”.