*Por Vitor Antunes
O ator Vitor Britto é cria da tradicional escola de teatro carioca O Tablado, está no ar no sucesso ‘Poliana Moça’ e promete para breve o lançamento de uma peça baseada no livro “O Avesso da pele”, de Jeferson Tenório. Voz ativa da temática afro, o ator levanta temas importantes do “pretagonismo” nas artes. Na cena contemporânea tem se discutido muito a questão e, e especialmente, a participação e o espaço dado aos atores. Para vocês terem uma ideia, Milton Gonçalves, que morreu no dia 30 de maio, foi um dos diretores de dois dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira: as novelas “Escrava Isaura” (1976) e “Irmãos Coragem” (1970), pelas quais não fora creditado. Em “A Cabana do Pai Tomás”, novela da Globo de 1969, o ator Sérgio Cardoso (1925-1972), branco, viveu Pai Tomás à custa de blackface, hoje proibitiva. Chiquinha Gonzaga (1847-1935), igualmente negra, foi vivida pelas atrizes Regina e Gabriela Duarte na série biográfica exibida pela Globo. No entanto, gerou ruído o fato de a atriz Jodie Turner-Smith, negra, haver vivido a rainha Ana Bolena na série homônima. Conversamos com Vitor Britto a razão de o embranquecimento de personagens ser naturalizado e o empretecimento, polemizado. Segundo Vitor, as validações acabam passando pelos olhares. “Estamos habituados a, desde cedo, ver tudo sob um ponto de vista (eurocentrado) e isso acabará influenciando a leitura de que aquilo é o ideal ou real. Quando a gente começa a questionar, a mudar, a trazer de volta um Machado de Assis (1839-1908) preto, as universidades passam a reeditar os livros e prefácios partindo de um olhar (afrocentrado), ou quando se desromantiza o Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato (1882-1948) – que não era um lugar amoroso como retratado na TV, especialmente para a Tia Nastácia, que era chamada pela Emília como “essa preta macaca que trepava em árvore” – a gente começa a fazer diferença”, observa.
E Vitor acrescenta: “O Monteiro Lobato tem um livro chamado “O Presidente Negro”, que é profundamente eugenista, o que reflete a sua participação em grupos deste segmento em sua época. Se um personagem será empretecido ou embranquecido é preciso que isso seja discutido e que se sustente essa ideia e que seja retratada qual a real intenção desta escolha”. Quanto ao fato de o negro haver sido invisibilizado na cena artística, ou com brancos caracterizarem-se de negros à custa de blackface ele diz que hoje é “mais difícil de isso acontecer e de ser feita vista grossa para situações como essa”.
Sobre este tema, o ator prossegue: “É uma luta sobre a qual estamos falando há muito tempo. Se a gente pega o movimento americano dos Panteras Negras, já havia a discussão sobre a pauta negra. O Abdias Nascimento (1914-2011) já questionava o blackface, dava o protagonismo negro no TEN (Teatro Experimental do Negro), formou a própria imprensa a fim de dar espaço à negritude. De uns 10 anos pra cá que isso tomou efervescência e a gente está vendo as efetivas mudanças e há quem diga que há um excesso (na discussão desse tema), que está demais… Mas ficamos por muito tempo falando sem sermos ouvidos. É hora de ter um filme como “Medida Provisória”, do Lázaro Ramos. É hora de ter uma peça como “O Avesso da pele”. Outras histórias já foram contadas e, muitas vezes, sob a ótica eurocentrada. Se há uma equipe preta no teatro ou onde quer que seja e se é isso que me move, é lá onde vou investir. É esse o olhar que refletir o meu olhar naquele momento. Temos que ser honestos com o que a gente está a fim de falar e de fazer”.
O ator figura entre os personagens mais populares da trama infanto-juvenil de “Poliana Moça“. Por muitos anos houve uma dificuldade no encontro de referências pretas na televisão. Perguntamos a Vitor como se reconhece com o número expressivo de pessoas que interagem com ele nas redes sociais: “Eu acho que esta questão de referência e identidade algo muito forte. Eu tenho algumas boas e fortes, mas eu acho que isso se dá por uma trajetória de carreira, quando você olha para um artista e percebe as escolhas que ele fez, os trabalhos, como ele se posiciona sobre alguns assuntos. Se alguém olha o meu trabalho e se sente motivado, eu fico feliz”.
Projeto para os palcos e ação em longa-metragem
A montagem teatral de “O Avesso da Pele” é um projeto pessoal, cultivado desde o auge da pandemia, quando o ator leu o livro de Jeferson Tenório. “Já estava com vontade de fazer este trabalho, de falar esta história em voz alta, quando a Beatriz Barros, que é socióloga e antropóloga, me disse estar lendo um livro que tinha muito a ver comigo. Era “O Avesso…”. Eu já estava tão envolvido que estava falando com o autor. De lá pra cá a peça ganhou uma sorte muita grande. O autor bem como a Companhia da Letras, autorizaram. Daí demos seguimento ao projeto”.
Se há uma equipe preta no teatro ou onde quer que seja e se é isso que me move, é lá onde vou investir – Vitor Britto
Com efeito, o livro tonou-se um fenômeno literário. Venceu o Prêmio Jabuti em 2021, já foi traduzido em diversos idiomas e vai virar um filme com direção de Sílvio Guindane. “Lutando para captar recurso, correndo atrás de edital, lidando com a dificuldade de transpor a linguagem literária para dramaturgia teatral… Talvez este seja o nosso maior desafio”, considera Vitor Britto.
Ainda sobre a peça, o ator relata que o elenco fez um ensaio aberto em junho e teve uma boa recepção. Além dele o elenco, totalmente preto, é composto por Bruno Rocha, Alexandre Ammano e Marcos Oli. A questão afirmativa não se restringe apenas ao elenco. A equipe técnica também é majoritariamente negra. Composta por pessoas apaixonadas e voltadas em fazer o projeto acontecer.
Além da peça e da novela, há a previsão de, ainda neste semestre ser lançado o filme “Faixa Preta – A verdadeira história de Fernando Tererê”, no qual a questão negra também é pauta, e trata sobre um dos maiores nomes do jiu-jitsu mundial, vivido nas telas Raphael Logam. No elenco, de maioria negra, além de Vítor Britto, constam os atores Lui Mendes e Isabel Fillardis.
Quase dois anos de “Poliana”. Uma das maiores novelas da História
As novelas em “temporadas” talvez tenham sido iniciadas com o próprio SBT, diante da exibição da primeira geração de “Chiquititas”, em 1997. Foram 5 temporadas, que contabilizam, no total 807 capítulos. Considerando as novelas “de temporada”, donde entraria aí a saga “Mutantes”, da Record, “Poliana” figuraria no quarto lugar entre as mais extensas novelas da dramaturgia brasileira. Desconsiderando este formato e pondo à conta somente as novelas de exibição linear e ininterrupta, “As Aventuras de Poliana” sobe para a segunda posição, com 564 episódios, perdendo apenas para a quase imbatível “Redenção”, da extinta TV Excelsior, exibida entre 1966 e 1968, com 596 capítulos. A atual temporada da novela, “Poliana Moça”, promete mexer neste ranking. Segundo Vitor, o intérprete de Jefferson, “são quase 5 anos vivendo este personagem”.
A novela é um fenômeno infanto-juvenil. E o clima celebrativo se estende de igual maneira entre o elenco: “A novela é uma alegria. Tão logo terminamos a primeira temporada, a gente descobriu que haveria a segunda. Ficamos surpresos, animados, porém, fomos surpreendidos pela pandemia. Houve uma situação em que estávamos gravando e disseram que deveríamos parar por conta das restrições sanitárias. Queríamos muito terminar esta história e nos despedir dos personagens ao fim da, agora, segunda temporada”.
Inicialmente um personagem ligado ao núcleo de samba que havia na novela e um recepcionista de padaria, Jefferson, seu personagem, passou por uma grande transformação, que não afeta apenas a si, mas também a toda representação do negro na teledramaturgia. Hoje é retratado como um jovem estudioso, benquisto pelos chefes, inteligente e trabalha numa empresa de tecnologia. A mãe do personagem, Gleyce (Maria Gal) termina a primeira temporada dizendo querer entrar para a faculdade, e, na segunda, já está formada, organizando um comitê social dentro da trama.
Vitor diz perceber “uma mudança muito grande dramaturgicamente em cena”. Lembra que, no começo, o personagem tinha uma participação muito reduzida ao núcleo de samba que havia na novela. “Ele também não queria se envolver na questão de criminalidade que havia e manteve a sua retidão. Hoje, o personagem está na faculdade, trabalha no ramo tecnológico, numa firma onde foi efetivado, os chefes gostam dele e ele vive os dilemas de um jovem adulto de alguma forma semelhante ao que vivi quando fui morar em São Paulo”. O ator mudou-se para a capital paulistana em julho de 2017, já voltando-se à preparação da novela, na qual foi aprovado junto ao seu amigo e parceiro de cena Vincenzo Richy.
A mudança para São Paulo trouxe ao ator uma vivência plural. Dividia apartamento com Vincenzo, ator nascido na Itália e criado no eixo Nápoles-Rio-Goiânia, e com o também ator Lawrran Couto. “Foi uma loucura! Todo mundo trabalhava junto. Chegávamos em casa falando do trabalho e no trabalho falávamos sobre a rotina de casa. Houve uma ocasião em que Vincenzo e eu estávamos enquadrados, em cena e, sem querer, acabamos falando sobre uma conta doméstica. A gente tem muita intimidade e ele talvez seja a pessoa que mais me conhece ali dentro, as nossas famílias se conhecem”, exalta ele o amigo.
O fato de estar atuando em uma novela infanto-juvenil dialoga muito com o histórico de vida do próprio Vitor, que era uma criança muito ligada em televisão e apaixonado por teatro: “Eu ia ao teatro e ficava esperando o elenco para conversar no fim do espetáculo. De tanto ir ao Shopping da Gávea ver a Ingrid Guimarães e a Heloísa Perissé em “Cócegas”, elas passaram a me conhecer e hoje somos colegas”, aponta. E prossegue dizendo que o SBT tem grande força junto ao imaginário infantil e que as crianças, tal como ele fazia antigamente, o abordam calorosamente. “Houve uma vez em que eu fui a Salvador e uma criança ficou muito emocionada em me haver visto e isso mexeu muito comigo, por que elas têm uma abordagem muito verdadeira”.
O ator apresenta-nos também um grande cuidado que o SBT tem junto aos seus atores: “Como temos uma preparação muito intensa e trata-se de uma novela muito grande, a emissora é muita cuidadosa com a escola, com os estudos e horários do elenco infantil. A gente grava preferencialmente à tarde e à noite, porque de manhã as crianças precisam estar na escola. Há uma psicóloga que acompanha a gente e os menores de idade sempre estão acompanhados dos pais, que passam o dia na TV conosco. A gente conhece as famílias e acaba ficando um clima muito agradável”.
Diante de tanta história preta que foi construída nas artes para para tantas outras que ainda virão, Vitor Britto é algo como diz a música de MV Bill: “Não é o movimento negro, mas um negro em movimento”.
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