*Por Simone Gondim
Seja na arte ou na vida pessoal, Caco Ciocler é do tipo que bota a mão na massa. Estreando nas plataformas de streaming o longa-metragem “Partida”, mistura de documentário e ficção do qual ele é diretor e produtor, o artista aproveita a quarentena para resgatar a relação de amor com o apartamento onde vive. Por conta da rotina intensa de trabalho, ele reconhece que o imóvel não estava recebendo os devidos cuidados. “Eu era quase um hóspede na minha própria casa. Havia muita coisa quebrada, então tive que aprender sobre encanamento, eletricidade e hidráulica, porque precisei trocar muito cano, muito fio e muita tomada”, confessa. “Virei faz-tudo nessa pandemia, só não quebrei chão e parede”, revela.
Além dos consertos, Caco aproveitou para montar uma pequena horta, onde plantou alface e rúcula. “Como criei um sistema de irrigação, tive que entender um pouco de mangueiras e descobrir uma forma de ligar isso no tanque. Foi necessário fazer uma bifurcação no encanamento”, explica. “Cuidar da casa é uma coisa muito simbólica, também, porque estamos cuidando de nós mesmos. Reconheço que sou um privilegiado por ter onde morar e poder ficar esse tempo cumprindo o isolamento social”, acrescenta.
A quarentena, aliás, foi responsável por algumas mudanças de planos. Se, por um lado, Caco pôde terminar o primeiro semestre da faculdade de biologia, cursado à distância, ele viu o musical “Língua brasileira”, dirigido por Felipe Hirsch e feito a partir das canções de Tom Zé, ficar para depois. “Uma semana antes da estreia a gente teve que interromper tudo por causa do isolamento. E não sabemos quando será possível retomar”, lamenta. O lançamento de “Partida” também sofreu adaptações: o longa deveria ter entrado em cartaz nos cinemas, mas acabou exibido no drive-in montado no Memorial da América Latina, em São Paulo, e contou com distribuição digital. “É um filme que foi sendo construído. Fizemos sem dinheiro, sem patrocínio, sem lei de incentivo, porque a ideia veio muito em cima. Pensamos nisso em setembro e precisávamos rodar em dezembro”, afirma o artista.
Embora “Partida” não seja sua primeira experiência como diretor, Caco Ciocler garante que o material visto na tela é diferente de tudo que ele já fez. Inicialmente, a ideia era que ele e a atriz Georgette Fadel, que falou em um ensaio de seu desejo de ser candidata à Presidência da República, fossem ao Uruguai tentar passar o réveillon com o ex-presidente Pepe Mujica, registrando tudo. Aos poucos, entretanto, o grupo foi aumentando, e o que seria uma viagem de dois amigos em um automóvel virou uma empreitada coletiva. “Começamos a achar que precisávamos de um cara bom de som, de uma câmera boa. Aí, as namoradas quiseram vir junto, a filha da operadora de câmera também, assim como o cara que conseguiu um dinheirinho para pagar a nossa alimentação. O time foi crescendo e não cabia mais dentro de um carro. Providenciamos um ônibus”, lembra Caco.
O artista conta que as pessoas trabalharam de graça na produção porque se entusiasmaram com o projeto, e foi essa conjuntura que deu a cara do longa-metragem. “Foi um filme feito todo na coletividade, em um momento muito específico do Brasil. Obviamente que conversei com as duas diretoras de fotografia para a gente estabelecer um certo gosto, mas as coisas aconteciam muito no improviso, então eu não tinha exatamente como controlar as câmeras”, afirma. Os imprevistos, inclusive, viraram quase um personagem à parte. “O limite da ficção e da realidade não é apenas um truque. Existia uma questão técnica. Não era um ‘Big brother’, onde as câmeras ficavam ligadas direto, prontas para registrar tudo”, observa. “A gente viajava o dia inteiro. Em 85% do tempo, não acontecia absolutamente nada de interessante. E, quando começava a acontecer, nem sempre as câmeras estavam ligadas e as pessoas com os microfones”, recorda.
Segundo Caco, durante as filmagens a equipe encarou todos os problemas técnicos possíveis, de microfone que não funcionava ao ônibus sacudindo, passando pelo barulho de veículos. “Acho que compramos umas cem pilhas. Algum problema deu, não sei se no equipamento ou nas pilhas, que elas acabavam em cinco minutos. Teve pilha acabando no meio de fala. Na cena em que eu digo que o cartão deu problema, é verdade, ele deu mesmo, perdemos uma das câmeras”, diz. “Não tínhamos equipamento de iluminação, era tudo com luz natural. Também não havia microfone para todo mundo, então a gente arriscava. Por exemplo, a briga no início do filme, entre a Georgette e o Léo (Steinbruch), foi filmada meia hora depois que começou. Tive que interromper a discussão, não porque eles estivessem exaltados, e sim porque as câmeras não haviam sido ligadas ainda. Esse jogo estava estabelecido desde o começo, não adiantava fazer algo que não fosse registrado”, descreve.
Para Caco, a polarização, tão presente no filme e na vida dos brasileiros, é parte do jogo democrático. “Algumas pessoas têm a ideia de que a democracia é quando todo mundo pensa igual. Isso não é verdade, a democracia é justamente o regime que pressupõe diferenças de pensamento. A grande questão é essa: não adianta você ter diferenças de pensamento se as pessoas não escutam, nem querem saber sua opinião se não for a mesma que a delas. Aí não é mais democracia, são várias ditaduras convivendo juntas”, pondera. “Chegamos a um ponto no qual as divergências não existem para construir algo em comum, mas apenas para reforçar as divergências. Fazendo um paralelo com o filme, estamos todos no mesmo ônibus. Temos um motorista, a classe política, que é quem guia, mas se a gente não for em direção ao mesmo lugar, esse ônibus vai bater”, alerta.
O artista considera que a pauta do brasileiro nos dias de hoje não inclui a autocrítica nem a escuta dos divergentes. “Sabe quando você briga e a desavença fica mais importante do que o motivo dela? Acho que, infelizmente, estamos vivendo um período assim, e o ônibus está desgovernado. Cada um quer puxar a direção para um lado e não existe acordo”, teoriza.
Em relação às questões com a Cultura no país, Caco prefere manter uma postura otimista. “A cultura é extremamente poderosa, democraticamente poderosa, ampliadora de pensamento, de entendimento e possibilidade de existência, de pluralidade. É um momento muito difícil para os profissionais de cultura, provavelmente será o último setor a voltar, porque pressupõe aglomeração. Por outro lado, historicamente, sempre que a cultura correu risco de ser ceifada, achatada ou eliminada, ela logo em seguida rompeu o dique e vieram os grandes movimentos de transformação da história da humanidade”, garante.
“Todos os meus colegas estão sofrendo, mas produzindo, buscando saídas e pensando esse momento, criando em cima do que está acontecendo. A arte nasce quando a gente começa a entrar em contato com as grandes questões humanas, a nossa finitude, nosso medo de morrer. Por causa do isolamento da pandemia, as pessoas sentem necessidade de repensar e questionar suas próprias existências. Acho que a arte vai voltar com muito poder”, acredita.
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