Vilma Melo, de ‘Encantado’s’, confirma nova temporada de série e fará peça na África que desmistifica mães de santo


A atriz é vencedora de diversos prêmios e figura há muito no teatro. Somente agora começou a ganhar papéis de destaque na televisão. É, junto com Luís Miranda, é uma das protagonistas de “Encantado’s”, série da Globoplay que retrata com muita propriedade a vida no subúrbio e das escolas de samba que – tal como o Jóia do Encantado – desfilam na Intendente Magalhães. Vilma, que é professora do Município do Rio, sempre se engajou nas questões sociais. Nesta entrevista fala sobre os temas que margeiam seus trabalhos mais recentes. Tanto a questão do racismo, como a estereotipação de negros e indígenas, assim como falta de políticas públicas para menores infratores

*por Vítor Antunes

Protagonista de “Encantado’s” e com inúmeros projetos em cena. O público geral demorou a descobrir Vilma Melo. Ela já vinha de muitos trabalhos no teatro, no cinema e na televisão quando foi escalada para fazer a série do Globoplay –  que neste ano chegou à TV Globo. Vilma confirmou-nos a nova temporada da série, que vai estrear na plataforma digital antes de ir à televisão aberta, além de falar sobre alguns de seus trabalhos, e são muitos tanto neste ano como para o ano que vem. Atualmente em cartaz, a peça “Guasú” torna a trazer à cena o debate sobre a Guerra do Paraguai e o genocídio indígena que ele provocou no Cone Sul. A Guerra do Paraguai só tem esse nome aqui no Brasil. No principal cenário do conflito, ela é conhecida como “Grande Guerra“, em face do extermínio geral que acabou tendo no país. “Quando a gente fala dessa guerra, a gente fala de algo que estende até hoje. Esse lugar de extermínio até hoje é declarado. E pouco se faz a respeito”, diz a atriz, que é também professora de uma escola no município do Rio.

À frente do monólogo “Mãe de santo“, no qual as questões femininas e pretas são trazidas à cena, Vilma irá para a África apresentar a montagem, em Cabo Verde, sob a seguinte prerrogativa: “A peça é exatamente pra gente tirar essa capa que as pessoas pensam que vão encontrar essas mulheres sacerdotisas a todo tempo paramentadas com roupas de santo, com turbante, as vinte e quatro horas do dia e só falando sobre isso”. No audiovisual, estará também em “Casamento a distância“, filme dirigido por Sílvio Guindane e que conta com Dan Ferreira e Dandara Mariana nos papéis protagonistas. No teatro, Vilma dirige “Muito pelo Contrário“, monólogo de Emílio Orciollo Netto co-dirigida por Victor Garcia Peralta; a “Noite do Sorriso Negro“, que tem a co-direção de João Artigos, e que vai estar em cartaz no SESC Copacabana, e também em “Salvador, amanheceu é carnaval“. Esse ano ainda estreia  “Amar é Para os Fortes“, do Marcelo D2,  no Amazon Prime Video. Vilma também vai estar no filme especial de Natal da Globo.

Desde sempre engajada nas causas sociais, afinal é professora de uma escola do município do Rio, e como um dos eixos de “Encantado’s” trata justamente sobre o carnaval, Vilma diz que se ela fosse fazer um enredo, faria um, justamente sobre “as mazelas sociais do Brasil”.

Luís Miranda e Vilma Melo são os protagonistas de “Encantado’s”, do Globoplay (Foto:Victor Pollack/Globoplay)

“MÃE PRETA SOU A SUA DESCENDÊNCIA”

Lançamos mão do samba de 1983 do Império Serrano, em homenagem às baianas e às mulheres negras para falar sobre Vilma Melo, que está em cartaz com muitos projetos teatrais. Atualmente, “Mãe de Santo” e “Guasu” são os que ela participa de maneira mais efetiva. O primeiro, como atriz. O segundo, musical em cartaz no mezanino do SESC Copacabana, que ela dirige. “Mãe de Santo” é o primeiro da trilogia de espetáculos – dos quais ainda têm “Mãe Baiana” e “Mãe Preta” –  e será encenado em Cabo Verde agora nesse final de ano.

Ainda que o nome sugira tratar-se de algo sobre as sacerdotisas de orixá, a peça não trata exatamente sobre isso, mas sobre histórias que permeiam a existência delas. Ela explica: “Tudo é narrado por uma pessoa que é uma mãe de santo, mas na verdade a gente fala sobre a potencialidade da mulher preta e os lugares. A personagem dá palestras no mundo inteiro, e fala histórias de mulheres, inclusive algumas minhas”. A montagem tem roteiro assinado por Renata Mizrahi, responsável por fazer Vilma receber o Prêmio Shell de Melhor Atriz, por “Chica da Silva“. Foi a primeira vez que uma atriz negra recebe tal prêmio, em 29 edições: “Pra mim isso é uma alegria no ponto de vista individual, mas uma tristeza do ponto de vista coletivo que em vinte e nove edições, por vinte e nove anos a gente tem a primeira vez uma pessoa preta, e isso só aconteceu porque houve uma mudança no júri. Nós sempre chegamos lá. Atrizes como Iléa Ferraz, Léa Garcia, Rute de Souza, sempre fizeram teatro, mas não tinha um olhar do júri pra isso”.

Ainda que referencie personalidades pretas como Adélia Sampaio, primeira cineasta negra brasileira e que foi barrada num aeroporto, o ponto de apoio da montagem é Helena Theodoro, catedrática da UFRJ “é como se Helena fosse a nossa narradora. Helena é o nosso ponto de ligação da história, que também é inspirada em Mãe Celina de Xangô, uma ialorixá que eu conheci e que estava fazendo uma viagem para um país estranegiro para falar sobre ervas, sobre cura, e sobra ótica de uma de uma cultura ancestral, que não tinha nada a ver com a questão religiosa dentro do terreiro. Quando a conheci ela não estava paramentada como sacerdotisa. Ou seja, ela não deixou de ser mãe de santo por não estar paramentada naquele momento. Ela tem vida para além do terreiro”.

A peça é exatamente pra gente tirar essa capa que as pessoas pensam, de que vão encontrar essas mulheres a todo tempo paramentadas com roupas de santo e com turbante as vinte e quatro horas do dia e só falando sobre isso – Vilma Melo

Vilma Melo e a realidade da mulher preta em “Mãe de Santo” (Foto: Divulgação)

Por anos coube às atrizes pretas viver ou as empregadas ou as mães de santo na teledramaturgia. Reforço preconceituoso e estereotipado, que hoje parece ter mudado: “Durante muito tempo a gente ocupou só estes lugares. Onde tinha a ver com a religião, inclusive, ela sempre margeava como a demonização da fé, ou era como forma de oráculo, ou ainda como elemento para mudar a vida de alguém. Durante muito tempo teve essa abordagem na teledramaturgia e nós, pessoas negras, estivemos também em papéis de subalternidade. Hoje em dia a gente vê sim uma mudança. Há trinta anos as coisas eram muito diferentes. Na novela “Pátria Minha” (1994), o personagem de Tarcísio Meira (1935-2021) falou absurdos para o vivido pelo Alexandre Rosa Moreno. Hoje em dia essa cena seria enquadrada como crime. Estamos andando com passos de formiga, mas andando. E eu sou uma pessoa muito otimista”.

Hoje em dia nós somos médicos, artistas, enfermeiros, professores, já houve o Joaquim Barbosa no STF  e agora falta uma ministra preta para o Supremo – Vilma Melo

Ela prossegue: “Nós somos a maioria. Respondemos por 56% da população brasileira e a gente quer se ver na televisão. E só agora as pessoas descobriram que preto dá dinheiro. Que preto vende. Que a gente pode fazer, também, publicidade. Nós sempre estivemos na teledramaturgia e só podemos estar mais presentes agora. Ainda que a Taís Araújo e a Sheron Menezes estejam presentes na TV faltava mais gente. E essas pessoas estão chegando e estão chegando com força. Está aí o protagonismo preto que a gente teve nas três novelas da emissora mais importante do país, que é a Rede Globo”.

 

Vilma Melo e a pluralidade de espaços para os atores negros (Foto: Divulgação)

CAUSA SOCIAL

Em “Guasu”, peça escrita por Bruce de Araújo, trata sobre a Guerra do Paraguai, um dos maiores genocídios que aconteceram na América do Sul. Perguntamos à Vilma sobre como esse assunto, do extermínio de pessoas por sua origem, a atravessa. “Não há brasileiro que não seja atravessado por questões negras e indígenas. A gente pode tentar ignorar isso, mas não tem como não ser atravessado. Em 1492 chegam os espanhóis e em 1500 os portugueses, que nessa “nova terra” resolveram invadir e desbravar. O genocídio indígena acontece desde então. O que a gente tenta fazer com o “Guasu” não é um resgate, está longe disso, mas se propõe a falar de como essas questões atravessaram essas pessoas”.

Ainda sobre a peça, Vilma diz que “‘Guasu’ é uma história de cinco soldados e um casal paraguaio. “É a história de sete pessoas. E como essas individualidades conviveram e sobreviveram durante a guerra. Quando falamos dos voluntários da pátria é preciso que lembremos que, na verdade, foram os sequestrados da pátria. Os povos indígenas, os negros  eram colocados na linha de frente. Eram massacrados, não resistiam ao frio, à fome, à cólera, porque não chegava remédio, não chegava comida, não chegava nada. Na peça falamos de um lugar muito específico, que é a Retirada de Laguna”. Nesta fase da Guerra do Paraguai houve muitas baixas de soldados brasileiros.

O Brasil é construído em cima de um grande cemitério indígena. Enquanto eu pisco o olho, uma pessoa indígena ou uma criança preta foi morta e isso acontece diariamnte – Vilma Melo

Guasu traz questões étnicas e LGBT, que até hoje são um campo de disputa – e de invisibilização, especialmente narrativa. Para Vilma, isto acontece por “uma verdadeira caça às bruxas. O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+. É o país mais racista do mundo. Então essa disputa vem desde quando esse país foi invadido.  Há uma disputa territorial e econômico-social. Nós, pretos, servimos pra manter a sociedade, pra manter os privilégios brancos, pra manter as pessoas nos seus postos. É como se servíssemos como massa e como massa de manobra. E quando a gente fala de pessoas LGBTQIA+, ainda que eu não seja especialista no assunto ainda que empática à causa, creio que o preconceito a eles foi inventado pelos preconceituosos, assim como o racismo foi inventado pelos brancos. Então nós, pretos, lutamos pra sobreviver e fazemos o que podemos para que os brancos que resolvam isso, já que estão na escala do poder. Só assim é permitido resolver essa questão”

As pessoas nascem LGBT, pretas ou indígenas. Elas apenas são. E aí temos o problema de vermos o fascismo tomando conta da sociedade. E quando o fascismo toma conta da sociedade a gente tem uma questão de radicalização. – Vilma Melo

Vilma Melo: “As pessoas não se tornam LGBT ou negras. Apenas são” (Foto: Divulgação)

“Há um projeto de Lei que está para ser aprovado”, diz Vilma, que diz que os LGBT não podem casar. Só deve aceitar ou não o casamento as pessoas do mesmo sexo quem foi pedido em casamento. Essas pessoas são inviabilizadas porque são invisibilizadas”. Quando foi professora do Município do Rio, a atriz relata que “há pessoas que vinham até a sala procurar a professora.Não me reconheciam nesse lugar, pois não me queriam ver naquele lugar. Quantas vezes a gente vê pessoas que não querem ser atendidas por médicos LGBTQIA+, por exemplo. (…) Talvez “Guasu” peça não seja tão explicita nisso, mas com olhar mais atento, o público pode perceber que as músicas que a compõem são totalmente atuais. A gente traz para o atual, como forma de fazer uma ponte exatamente entre o que aconteceu naquele momento e  que continua acontecendo agora. A gente traz um casal LGBTQIA+ na peça como uma forma muito delicada de falar sobre o amor. Porque o amor, independente da forma como é externado, ele existe. O amor é o amor”

No atual momento da teledramaturgia, Vilma diz que o que a surpreende é a quantidade de pessoas pretas protagonistas e tendo “uma vida normal. Como eu tenho, como as autoras têm”. Em “Encantado’s” a série trata sobre os desfiles das escolas de samba dos grupos de base, que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, no subúrbio. Muito distantes da Avenida Marquês de Sapucaí. Ali, naquele local, a atriz teve sua educação formal. “Eu sou de Oswaldo Cruz, então, vejo na série pessoas normais, como a minha mãe, que saía todos os dias pro trabalho, pessoas que trabalham e que têm sua vida cotidiana, têm seus amores, têm suas alegrias, têm seus humores, retratando essa realidade com muito humor. O que tem dentro do Encantado’s, é muito afeto”. Outra observação que a atriz faz é sobre o figurino, que não estereotipa as personagens. “Não tem aquele exagero, de ter que colocar muitas cores [para traduzir o subúrbio]. Há pessoas que se vestem assim? Sim, mas não são todas. (…) Quando as pessoas veem essa série dizem sentir-se representadas. Sem dúvida nenhuma, isso se deve a todo o conjunto da obra. Não à toa a série ganhou o APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), porque é uma série que diz muito sobre a sociedade brasileira, que é construída em cima do nosso sangue, suor e lágrimas”.

Vilma Melo. Atriz é muito ligada aos movimentos sociais e às questões de pessoas minorizadas (Foto: Divulgação)

Outro trabalho que Vilma Melo fez e vem repercutindo é a serie “Segunda Chamada“. O projeto traz ao debate a realidade da periferia e seus problemas, sendo um deles os menores infratores. Na mesma série, a atriz vive a mãe de um menor infrator. Como ela vê a política de ressocialização dos menores? “Isso existe? Tudo é muito bonito no papel. Existem  pessoas interessadas em fazer essa política, mas infelizmente a gente não vê isso partindo das esferas de poder. Para as esferas públicas, cada vez mais, os marginalizados continuam sendo mais marginalizados. Não é dado a eles condições de estudo, de trabalho, ou dignidade de sobrevida. (…) É muito duro todo esse lugar onde a sociedade está imersa e sem um olhar dos governantes a respeito disso. Não há uma política preocupada com a mudança da realidade dessas pessoas e desse lugar. Quando passa o período eleitoral passa tudo”. E ela conclui dizendo que “Segunda chamada, para mim, é um outro marco. Ela está inserida num lugar que a arte cumpre muito bem, que é o lugar de botar uma lupa nas questões sociais”.

Em 2018, a Beija Flor de Nilópolis foi campeã do carnaval trazendo como enredo, justamente os problemas sociais do Brasil. Vilma diz que se fosse carnavalesca, faria um desfile tendo esse assunto como tema também. Num país que desvaloriza a cultura e que há, ainda, muitos analfabetos, não são poucos os que não sabem ler o livro “Brasil”. Tal como a escola nilopolitana, Vilma quer fazer, e ver brilhar, os meninos que o Brasil abandonou. Os que são alvo na mira do desprezo e da segregação. Afinal, monstros são aqueles que não sabem amar.