Vera Egito fala de seu primeiro longa, “Amores Urbanos”, e diz: “A gente tem que continuar fazendo filme sobre gay, aborto e liberdades individuais”


“Amores Urbanos” reflete a crise dos 30 de três amigos que moram no mesmo prédio em São Paulo. Diego (Thiago Pethit), Júlia (Maria Laura Nogueira) e Micaela (Renata Gaspar) cada um a sua maneira, cada um com seus problemas

A priori, o primeiro filme de Vera Egito como diretora de longa metragem seria “Rua Maria Antônia – A Incrível Batalha dos Estudantes”. O motivo da mudança de planos? “O roteiro de Maria Antônia está pronto desde 2010 e ganhou edital de desenvolvimento de roteiro da prefeitura de São Paulo. Mas não consegui captar. No final de 2013 eu estava aflita por não ter captado e por não ter o meu projeto de primeiro longa acontecendo. Lá em meados daquele ano, eu estava numa bebedeira com uma amiga, que também é diretora, a Rafaela Carvalho, e falei que queria escrever uma crônica sobre relacionamentos, que eu tinha várias histórias anotadas, coisas que meus amigos me contam, situações de relacionamento… Eu tinha vontade de escrever sobre a minha turma”.

Vera Egito (Foto: Reprodução)

Vera Egito (Foto: Reprodução)

A ideia surgiu, como se fosse um frame pronto, mas foi só no final de fevereiro de 2014, que, com um e-mail, “Amores Urbanos” começou a ganhar forma. “Mandei um e-mail para vários amigos copiados chamando para leitura do roteiro do ‘Amores’, que eu escrevi em dois meses. O roteiro ainda estava muito no início, mas a leitura foi forte. Passamos uma madrugada em casa, lendo, bebendo, conversando sobre a vida. Eu vi que tinha potência. Aí em julho eu fui com uma versão nova do roteiro. O (diretor e marido de Vera) Heitor Dhalia, que até então não tinha se pronunciado, leu o roteiro, gostou e disse que a produtora dele, a Paranoid, ia entrar. Resolvemos filmar logo em setembro. Muitas pessoas nem receberam cachê. Quando receberam, foram abaixo do mercado. O ‘Amores Urbanos’ foi uma febre de todo mundo”.

Daí foi ladeira acima. Cerca de 40 cópias do filme serão distribuídas a partir dessa semana com o apoio da Europa Filmes. “Vamos estrear em salas comerciais no Rio, em São Paulo, Brasília e em Belo Horizonte. Vamos também para o Nordeste  daqui um mês. Distribuições gratuitas devem acontecer no SESC. Está ótimo porque eu nem esperava nem conseguir uma distribuidora”, comemora.

Os dramas e suas repercussões

“Amores Urbanos” reflete a crise dos 30 de três amigos que moram no mesmo prédio em São Paulo. Diego (Thiago Pethit), Júlia (Maria Laura Nogueira) e Micaela (Renata Gaspar) cada um a sua maneira, cada um com seus problemas. Micaela é lésbica, mas sua namorada não está preparada para assumir a sexualidade. Júlia foi abandonado pelo futuro marido e se encontra no limbo profissional. Diego tem de lidar com um impasse com seu namorado: um preza pelo conceito de amores livres no relacionamento, enquanto o outro abomina a ideia.

(Foto: Gianfranco Briceño Arévalo)

Maria Laura Nogueira, Thiago Pethit e Renata Gaspar (Foto: Gianfranco Briceño Arévalo)

Corta. Cenário: a exibição de “Amores Urbanos”, em Paris, na França. “Depois de passar o filme lá na Europa, um homem, de uns 60 anos, me disse que, quando mais novo, se afastou de um amigo – ele usou esse termo, mas parecia estar falando de um antigo namorado. O amigo, quando soube da morte do pai, não foi ao enterro e preferiu ir para uma boate comemorar. Ele ficou chocado e acabou com a amizade por achar inadmissível a história”.

Um adendo: a situação é parecida com a que acontece com Diego, personagem de Thiago Pethit no longa. Com o pai em estágio terminal, a mãe do pede ao ele para que apare as arestas de um relacionamento conturbado enquanto há tempo. “A gente tem que pensar que a história que eu ouvi em Paris aconteceu nos anos 70. O homem, quando assistiu a cena do Diego no filme, chorou e entendeu porque não poderia ter julgado aquele amigo. Ele não sabia o que aquele pai tinha feito o amigo passar. E é isso que o Diego pede a Júlia: ‘Não me dá lição de moral, não me julga’. Ninguém sabe o que o Diego passou, sozinho, em São Paulo, aos 16 anos”, reflete Vera. A diretora, aliás, admite que a inspiração para essas tramas veio do vê ao seu redor, o que sente e o que viveu. “Têm cenas que saíram da vida de amigos próximos, mas nenhum personagem existe realmente. Só que têm falas, inclusive, que são praticamente literais, que aconteceram. Tenho três amigos que eu avisei: ‘Coloquei tal cena no meu filme. Não da para saber que é você,  mas é para não tomar um susto quando vir o filme”, conta.

Atuais até dizer chega, as amarrações do enredo de “Amores Urbanos” são fáceis de se explicar. “Tem a classe média paulistana, representada pela Júlia. Essa classe média que criou pessoas perdidas,  que podem tudo. A pessoa faz 30 anos e não é nada. Essa pessoa é super legal, mas faz o que exatamente? Vive de ser legal? Tem os pais mimando, né”, começa Vera, que emenda: “E tem a classe média mais baixa, que esta dividindo aluguel, se ferrando, tentando se virar na cidade. São personagens que estão a minha volta, que são muito reais”. Tão reais quanto “o lance dos amores fora do padrão”. Vera explica: “Em Paris, me perguntaram porque eu escolhi uma temática gay. Respondi: ‘Olha, para mim não existe temática gay. Existe relacionamento, amor, tesão, medo, frustração. Independente se é um homem e uma mulher, se é a três. Não existe filme gay. As sensações são as mesmas. Não existe amor gay. Existe amor. Eu retratei a vida dos meus amigos como ela é”.

Parte da equipe de "Amores Urbanos)

Parte da equipe de “Amores Urbanos” (Foto: Gianfranco Briceño Arévalo)

Corta. Cenário: uma das sessões de “Amores Urbanos”, em um festival de cinema de Miami. “O público de lá é igual a público de shopping, não é aquele tradicional de festival. Eu percebi que metade deveria ter mais de 60 anos. Pensei: ‘Será que vai dar certo? Vamos ver o que rola’. Miami é uma cidade onde a cena LGBTT é muito forte, mas a recepção foi super boa. Ao final, uma senhorinha veio me falar: ‘Nossa, você me mostrou um outro mundo!’. Eu disse que não, que mostro um mundo só. Ela que não está olhando para esse mundo, que sempre esteve aqui. Essa transformação me fez muito feliz”, lembra Vera, em entrevista exclusiva ao HT, direto de Buenos Aires, na Argentina, onde acompanha mais uma exibição em festival de seu longa.

A diretora, no mesmo passo, tem ciência do preconceito da sociedade. “O Brasil é um país machista e homofóbico. Mas é um país, também, com muita resistência. São Paulo e o Rio de Janeiro, principalmente, têm uma resistência forte. E o amor – aquele andar de mão dada e beijar na rua – é um ato de resistência. É uma postura combativa que eu apoio total. Tem que chocar mesmo. Aliás, estão se chocando porque são loucos, porque têm problemas. A gente têm que continuar fazendo filme sobre gay, sobre aborto, sobre as liberdades individuais. Agora é o momento, mais que nunca. Meu filme é de amor”, destaca. Por esses pontos Vera, antes de levar a ideia de “Amores Urbanos” adiante, se questionou: “Será o momento de lançar um filme sobre amor? Me escreveram:  ‘Seu filme é de amor, mas é de resistência, que peita a família tradicional brasileira”.

Fatores sociais à parte, o primeiro longa metragem de Vera Egito enquanto diretora também chama atenção por um desenho de produção peculiar. “Só funcionou porque eu tomei partidos muito radicais de idealização e de realização. Não tivemos nem maquinária, nem elétrica, por exemplo, porque é um filme de luz natural. Não podíamos ter gerador, nem caminhão porque não tínhamos dinheiro para isso. A fotógrafa topou isso, fez um estudo da incidência das luzes de cada lugar. Era só a Camila Cornelsen e dois assistentes. Foi a mesmo história com o figurino. Algumas figurinistas produziram roupas especificas para alguns personagens, mas a maioria deles, os principais, não tem figurinistas. Eram provas que eu fazia em casa. A gente fez uma paleta de cores – preta, azul e cinza -. E teve muita roupa minha no figurino. Não tem maquiador também porque era mais gente, mais dinheiro e mais estrutura”. A explicação para o corte, Vera tem na ponta da língua: “As pessoas têm que estar com a cara que elas tem. Se a personagem vai para uma festa, ela mesmo faz a maquiagem dela, como faria na realidade. E, no final, isso deixou o  filme muito autêntico. Ficou mais real, foi uma lição, foi maravilhoso”.

Os próximos passos

As notícias boas estão vindo em carreata: a Globo Filmes entrou com aporte em “Rua Maria Antônia – A Incrível Batalha dos Estudantes” e Europa Filmes na distribuição. “Estamos esperando a liberação do dinheiro, pela conta da Agência Nacional do Cinema (Ancine), para filmar no começo do ano que vem”, adianta ao HT. A Globo Filmes, segundo Vera, está investindo em cineastas novos, independentes, e participando de filmes fora do mainstream. “Acho que é uma nova postura deles e o longa vai se ruma produção da Paranoid também. ‘Maria Antônia’ se faz, mais que nunca, forte e necessária. Uma história que precisa ser relembrada, contada”, opina. Para os que não lembram,  foi esse o nome do confronto entre estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em outubro de 1968. O tumulto começou por conta de um pedágio que os alunos da USP cobravam na rua Maria Antônia. Há quem diga valor serviria para custear o congresso da União Nacional dos Estudantes.”Diante toda essa situação obscura e sinistra no país de hoje, foi um alento de felicidade ver o movimento da ocupação de escolas em São Paulo. Um movimento que também atingiu as escolas do Rio. Ver aqueles meninos tão inteligentes, tão cientes dos seus direitos e do que estão reivindicando me inspirou muito para o ‘Maria Antônia’ porque os militantes de 68 eram muito jovens”, recorda.

Por isso, Vera já teve uma ideia para o elenco de seu novo filme. “Teve muito militando preso com 16 anos. A própria Dilma Rousseff foi presa com 19. O cinema sempre retratou esses militantes por volta dos 40 anos. Eu quero um elenco muito novo. Cada vez mais eu quero trazer esses meninos das escolas ocupadas para trabalhar no filme, para fazer o que eles quiserem fazer. Assim que o dinheiro for liberado, eu vou começar essa pesquisa dentro do movimento de ocupação das escolas”, revela. Papo de quem tem ciência de, às vezes, tudo já está escrito nas estrelas. “O filme está orçado em R$ 6 milhões e também é complexo enquanto temática. É um evento histórico. E hoje eu entendo que era um evento muito pretensioso para um primeiro filme, no sentido da dificuldade de, não só para captar, mas para realizar o filme. E ter feito o ‘Amores Urbanos’ antes me fez enxergar isso. Aliás, que bom que foi assim por que agora me sinto mais à vontade para tocar o Maria Antonia”. Tudo escrito certo, por linhas tortas.