*Por Elisa Torres
Foram cinco anos de idas e vindas e milhares de quilômetros de imersão, ao longo da BR 163, que liga Cuiabá a Santarém. Para filmar “Amazônia Sociedade Anônima”, seu último projeto cinematográfico, o diretor Estevão Ciavatta e sua pequena equipe encararam por água, terra e ar todos os contratempos típicos de uma produção no meio de uma floresta com dimensões continentais: umidade, calor e sol fortes, quedas de energia, instalações precárias e o grande desafio de conviver com o minúsculo micuim, “o mais temido dos carrapatos”, segundo o próprio Ciavatta.
O resultado são registros inéditos da natureza exuberante da região e cenas raras de conflitos e devastações ilegais, além de flagrantes da luta incansável dos índios Munduruku na defesa por sua terra da máfia de grileiros. O documentário, uma produção da Pindorama Filmes, Imazon, Canal Brasil e Coletivo Audiovisual Munduruku, tem como produtor associado o cineasta Walter Salles. A estreia será nessa sexta-feira, dia 21 de agosto, às 19h, no Canal Brasil, e o longa estará disponível no mesmo dia no Globoplay.
A ideia de produzir o documentário surgiu após a exibição da série homônima desenvolvida pelo diretor para o programa “Fantástico”, da TV Globo, entre 2014 e 2015, que teve um dos episódios dedicado à grilagem e ao comércio ilegal de madeira. A narrativa foi se desenvolvendo ao longo desse período à medida que os acontecimentos históricos se davam. A fotografia é um dos destaques de ‘Amazônia Sociedade Anônima’, que ora revela a harmonia dos povos indígenas com a floresta, ora surpreende com imagens desconcertantes de queimadas e do desmatamento ilegal. Segundo o diretor, casado com a atriz Regina Casé, ainda existe uma falta de conhecimento dos brasileiros a respeito da Amazônia e o filme serve para mostrar não só as paisagens maravilhosas, mas também uma triste realidade.
“Ninguém entende muito bem a importância da Amazônia, que fornece madeira, minério, carne, algodão. O Brasil tem uma dívida gigante com aquele território e é urgente que se faça algo como o etnoturismo e as iniciativas sustentáveis. Os brasileiros precisam conhecer de fato a Amazônia, se apropriar daquela natureza e entender, de uma vez por todas, que a floresta têm povos indígenas que precisam ser assistidos. A ideia antiga de que a floresta é inexplorada, sem pessoas, e que tem que ser ‘desenvolvida’ já era. É como se aquele ambiente único precisasse ser ‘superado’ para se transformar em outra coisa. Chega dessa história! O filme serve para mostrar que não é assim e a manutenção dos povos é fundamental para a sobrevivência da floresta”, diz Ciavatta.
Os episódios do longa têm temas que vão da retirada ilegal de madeira à ampla fronteira agrícola da região, passando pelos altos investimentos no setor de energia e minério até a discussão sobre o futuro da maior floresta do mundo. De 2014 a 2018, Estevão e sua equipe, que contava com seis pessoas, acompanharam ações de órgãos oficiais federais no combate ao roubo de terras públicas. Nesse período, eles presenciaram as duas maiores ações do Ibama junto ao Ministério Público e a Polícia Federal no Sudoeste do Pará: as operações Castanheira e Rios Voadores. Ignorando os limites da lei, organizações criminosas começaram a avançar sobre regiões de florestas intocadas, chegando cada vez mais perto das terras dos Munduruku. Com o passar dos anos, a produção notou que as ações do Ibama não estavam sendo suficientes para combater as máfias de extração ilegal de madeira e roubo de terras.
“Não tem comando, controle, exército. Nada e nem ninguém dá conta do tamanho daquela floresta. Registrar esses episódios foi muito importante. Mas o principal foi perceber a união inédita de indígenas e ribeirinhos na defesa de seu território. Eles têm plena consciência de que cabe a eles cuidar do que há de mais preciosos no planeta. São eles que, de fato, defendem a mata. Ela não existe sem os indígenas e ribeirinhos e a ajuda aos moradores é tão importante quanto a preservação da própria natureza”, defende o diretor.
“Os povos indígenas não são só o nosso passado, mas a nossa possibilidade de futuro”. Estevão Ciavatta cita a observação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, famoso por sua teoria do perspectivismo ameríndio, para falar sobre a importância do respeito à cultura dos povos originários, que vêm sofrendo com a devastação de suas terras desde a chegada de Cabral ao continente. A proximidade da equipe de Ciavatta com a comunidade indígena Munduruku surgiu junto com a auto-demarcação, e com as primeiras filmagens que fizeram com o grupo indígena, em 2014. Já em 2017, o diretor doou uma câmera, um tripé e um microfone ao Coletivo Audiovisual Munduruku, composto em sua maioria por mulheres, para que elas continuassem registrando seus desafios na defesa das terras. Quando a produção recebeu as filmagens e o acervo do coletivo passou a fazer parte do filme, o diretor decidiu colocar a entidade como coprodutora do documentário. Segundo Ciavatta, a câmera se tornou um poderoso instrumento de defesa da vida e da floresta.
“O audiovisual é uma forma delas contarem sua história. E elas são incríveis, verdadeiras guerreiras. Continuam registrando o dia a dia porque a todo momento há novas invasões de madeireiros e agora as mortes, incluindo as de líderes indígenas, por conta do coronavírus. Tudo o que acontece está sendo registrado, inclusive os momentos de monitoramento e vigilância do território”, pondera o diretor, acrescentando que promoveu uma campanha para levar a internet até a aldeia: “Ha várias ações de impacto que vão além do filme, e que surgem a partir da nossa interação com aquela sociedade. Uma delas é levar a comunicação para a aldeia. Já estamos com tudo pronto. O artista Vik Muniz doou um quadro para esse projeto, gerando renda e recursos com essa finalidade, mas a pandemia adiou tudo”.
Com o longa, que fez parte da Seleção Oficial do Festival do Rio 2019, do Festival International du Grand Reportage d’Actualité et du Documentaire de Société – França, de 2020, e do Cine Planeta 2020 (México), o Canal Brasil reforça seu papel como coprodutor de grandes documentários e o Globoplay reitera sua aposta no gênero como potência para refletir a nossa sociedade, promovendo discussões e entendimentos sobre as comunidades em que vivemos e nós mesmos. Ciavatta reforça a relevância do tema nos tempos atuais. “Filmar na Amazônia é uma experiência transformadora. Da primeira vez, em 2015, estava clara, para mim, a importância do tema para o futuro da Amazônia e do Brasil. Em 2017, quando me aprofundei no assunto, com entrevistas para o filme, percebi que as histórias das terras públicas desprotegidas ainda estavam invisíveis. Isso me deu ainda mais certeza de que estava no caminho certo. Hoje, apesar da triste realidade, vejo que fiz a escolha certa. Nós temos que conhecer a realidade amazônica e respeitar 14 mil anos de história dos povos indígenas na região”.
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