*Por Flávio Di Cola
Ela não é tão longa: são apenas oito curtos quarteirões. E nem antiga para os padrões romanos: foi aberta no século 19. Começa torta numa praça barroca do século 17, mas ao subir fica reta, acabando numa muralha romana. Sua arquitetura nada tem de peculiar: parece um típico bulevar novecentista de inspiração francesa com grandes hotéis e cafés. Mas nela encontramos uma placa sui generis, colocada pela prefeitura, cujos dizeres explicam por que ela entrou na história do mundanismo internacional: “A Federico Fellini, que fez da Via Veneto o teatro da Doce Vida”. Isso diz tudo da Via Vittorio Veneto: passarela do período mais fabuloso e controvertido da história moderna da Itália, os anos 1950 e 1960 – apogeu do chamado “miracolo italiano” e da transformação de Roma na Meca para onde se destinavam celebridades de todos os calibres, principalmente as cinematográficas, levadas pelo êxodo das superproduções norte-americanas para a Europa, a ponto de a capital italiana ser apelidada de “a Hollywood sobre o Tibre”.
A obra-prima de Federico Fellini escandalizou despudoradamente o mundo em 1960 ao arrancar o véu solar e risonho normalmente atribuído à vida ítalo-romana. Por isso, enfrentou campanhas ferozes e todo tipo de barreiras censórias pelo mundo afora, conquistando a tapas o respeito mundial, enquanto “A grande beleza” do diretor Paolo Sorrentino – com a qual a doce vida felliniana vem sendo exaustivamente comparada – chega serenamente à entrega do Oscar neste dia 2 como o favorito na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, após protagonizar um verdadeiro arrastão de prêmios importantes, como o Globo de Ouro e o BAFTA, cercado de unanimidade e reconhecimento. Se Roma ainda é a Cidade Eterna em ambos os filmes, os tempos são decididamente outros. Se o cinismo, o amargor, o vazio e o vulgar hedonismo precisaram ser corajosamente registrados por Fellini, eles já são aceitos como ingredientes normais da vida contemporânea, como sugere Sorrentino. Se na época retratada pela obra felliniana o mundo baila irresponsavelmente a poucos centímetros de um abismo, representado por uma guerra nuclear iminente e devastadora no apogeu da Guerra Fria, no filme de Sorrentino o espetáculo já acabou faz tempo e dele só sobraram ruínas, como atestam as sombras tenebrosas do Coliseu que se projetam permanentemente ao alcance de nosso olhar através da luxuosa cobertura do personagem principal.
As diferenças na forma de ambientar a Via Veneto nos dois filmes são um sintoma de como Roma e o mundo passaram do frenesi para a melancolia em poucas décadas. A Via Veneto de Fellini é caótica, é um formigueiro onde se encontram todos os tipos paridos no baixo ventre da prosperidade recém-adquirida: starlets, travestis, prostitutas, rufiões, turistas incautos, nobres decadentes, sultões, curiosos, desocupados, uma fauna em ininterrupto trânsito pronta para ser abatida pela voracidade das câmeras dos paparazzi. Reproduzir e encenar esse turbilhão feérico que só poderia acontecer na Via Veneto tornou-se uma obsessão tão grande para Federico Fellini que ele decidiu – para desespero dos produtores de “A doce vida” – recriar fielmente um trecho dela no estúdio 5 da Cinecittà, à época o maior do mundo. Só com a liberdade ilimitada proporcionada pela reconstrução cenográfica seria alcançado o projeto felliniano de registrar a explosão de vida desse novo mundo que finalmente se erguia cintilante dos escombros da Segunda Guerra e que se exibe na passarela mais famosa do planeta. Roma pode ser o cenário supremo da vulgaridade, dos novos-ricos, dos loucos e dos perdidos, mas – pelo menos – ainda está viva. Fellini diria: “Pus o termômetro num mundo doente que evidentemente tem febre. Mas se o mercúrio assinala 40 graus, no início do filme, continua a assinalar 40 no fim. Nada mudou. A doce vida continua. Os personagens do afresco continuam a mover-se, a despir-se, a agarrar-se, a dançar, a beber, como se esperassem algo”.
Já no filme de Paolo Sorrentino, percorremos uma Via Veneto obscura, quase deserta – aliás, como a cidade inteira – pontuada por inferninhos decadentes e casas de pasto com seus “menus executivos” sob medida para uma clientela de emergentes asiáticos. A vida social pública em Roma morreu, só restando a privada, confinada em coberturas, night clubs, apartamentos e palácios murados. Enquanto uma elite estúpida e brega se diverte nesses interiores sob uma penumbra de neon e uma vertigem fabricada por cocaína e sintetizadores bate-estaca, a cidade recolhe-se numa ausência quase sinistra. Essa Roma não é mais nem pagã nem papal, nem alegre ou misteriosa. Está simplesmente vazia. À espera de alguma revelação.
“A doce vida” e “A grande beleza”: dois soberbos filmes cujas estaturas não se originam apenas das suas respectivas qualidades cinematográficas, mas também da forma como se entregam incondicionalmente aos braços da cidade mais notável da história – ora metaforizada como uma grande mãe prostituta, na visão felliniana; ora como a materialização em pedra e mármore do próprio enigma da vida, representado pelo soturno jogo de luzes e sombras da fotografia de Sorrentino.
Mas temos que reconhecer que a Itália e a Roma dos anos 1960 de Fellini eram muito mais divertidos: o próprio Papa, João XXIII, era um bonachão; os novos e charmosos donos do mundo – Kennedy e Kruschev – cortejavam a nova potência mundial que emergia, o país crescia a uma taxa média de 7% ao ano, as Olimpíadas de Roma foram uma das mais agradáveis e bem organizadas da história, nas telas de cinema Troy Donahue e Suzanne Pleshette trocavam olhares lânguidos embalados pela canção “Al di là” em “O candelabro italiano”; na Cinecittà Charlton Heston salvava a civilização cristã numa corrida de bigas em “Ben-Hur”, enquanto Elizabeth Taylor reinava como uma Cleópatra moderna e interrompia o trânsito da cidade para fugir de revoadas de paparazzi em suas lambretas.
No falso documentário sobre a capital italiana que Fellini rodou em 1972 (“Roma de Fellini”), o escritor Gore Vidal – quando entrevistado – nos dá uma visão tão inusitada quanto debochada da Cidade Eterna: “Roma é a cidade das ilusões. Não por acaso temos aqui a igreja, o governo e o cinema. Todas as coisas que produzem ilusões. Como estamos próximos do fim do mundo, que cidade seria melhor do que Roma – que morreu e renasceu várias vezes – para esperar pelo fim?”. Certamente, sentado num café da Via Veneto.
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os contrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema
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