Por Flávio Di Cola*
Quem quiser começar o novo ano em clima de discussão-de-bar-após-sessão-no-cine-Paissandu-nos-anos-1960 não pode perder os lançamentos comerciais no Brasil (com o discreto atraso de um quarto de século) dos dois filmes que inauguraram a glória de Leos Carax como o queridinho da intelligentsia parisiense e de todos os cineastas candidatos a moderninhos a partir dos anos 1980: “Boy meets girl” (idem, 1984) e “Sangue ruim” (Mauvais sang, 1986). Ambos estão em cartaz em sessões alternadas no Estação Botafogo, Rio de Janeiro. Sobre o que esses filmes falam? Bem, imagine a mais completa feijoada de desgraças pós-modernas: deu tudo errado com a globalização, e o resultado é a megalópole (“sempre teremos Paris”) transformada num deserto existencial por onde vagam tristes e desesperadas criaturas em busca de uma razão para viver, apostando as suas últimas fichas num “amor louco”, em travessuras suicidas ou num trânsito cego entre fantasia e realidade. Tudo isso muito bem amarrado com os cânones mais rígidos e previsíveis da linguagem cinematográfica pós-moderna: descontinuidade narrativa, saltos abruptos no tempo e no espaço, planos desfocados, angulações desconcertantes, embaralhamento dos pontos de vista (afinal, quem está mexendo na câmera?), pitadas de metalinguagem, o tradicional quiz show consagrado pela nouvelle vague do tipo adivinhe-que-filme-estou-citando; longos silêncios e olhares que permitem ao público sair da sala de projeção para fumar, voltar e continuar o seu tricô, e um anti-herói de aparência neandertalesca (o ator Denis Lavant, onipresente alter ego de Carax numa versão miniaturizada de Humphrey Bogart).
Todavia, seria injusto não lembrar que “Sangue ruim” foi um dos primeiros filmes a metaforizar artisticamente a chegada da AIDS e que ele contém uma das cenas mais emblemáticas do cinema dos anos 1980: a câmera que dispara loucamente pelas ruas desertas de Paris acompanhando a corrida coreografada de Lavant embalada pela canção “Modern love” de David Bowie.
Outra deliciosa atração das obras de Carax é a sua confessada nostalgia pelo rosto feminino divinizado pela mais pura cintilância do cinema da era silenciosa. Em nenhum outro filme encontraremos Mireille Perrier, Juliette Binoche e Julie Delpy tão jovens e tão lindamente fotografadas como fez o precocemente falecido cinegrafista Jean-Yves Escoffier. O choque do horror com a beleza suprema – um dos temas favoritos de Carax – teria encontrado uma de suas melhores representações no abortado projeto de uma ambiciosa versão (pós-modernista, claro!) de “A bela e a fera” em que a top model Kate Moss seria arrastada até os esgotos de Paris pelo disforme Lavant. Aliás, a megalomania e a misantropia do diretor Leos Carax – tão ciosamente exaltadas pela parte mais blasê da crítica parisiense – atingiu o auge durante a produção do polêmico “Os amantes do Pont Neuf” (Les amants du Pont Neuf, 1991) que exigiu a reconstrução cenográfica absolutamente minuciosa de quase todo o distrito central de Paris em plena zona rural de Montpellier (a 750 quilômetros da capital francesa!). O resultado foi uma das produções mais caras e caóticas do cinema gaulês e um dos seus maiores fracassos de público.
Mas os dois títulos agora lançados no Brasil são de uma época muito mais modesta da carreira de Carax. Em “Sangue ruim”, por exemplo, ele rende um tributo (involuntário) ao mais consagrado “pior diretor do mundo” – Edward Wood, o “rei do trash”: quando o filme precisa encenar um retrofuturo apocalíptico, vemos um amontoado de maquetes ordinárias passando-se pelo quartier dos prédios corporativos de Paris, ou um aviãozinho do tipo Playmobil cruzando “ameaçadoramente” os céus da capital. “Plano 9 do Espaço Sideral” de Ed Wood perde!
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Amante judiado e teimoso da Sétima Arte, suporta todos os contrangimentos na sua fidelidade às salas de cinema.
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