Último filme de José Wilker, “O Duelo” brinca com os limites da mentira e cutuca as mazelas brazucas que assombram a política


Canto do cisne do ator, antes de ser fulminado por um infarto há quase um ano, o longa – adaptado da obra de Jorge Amado – esperou o advento dos efeitos especiais computadorizados para poder ser adaptado ao cinema e estrear nesta quinta-feira, dia 19

*Por Flávio Di Cola

“Efeito Roshomon” é aquele produzido pelo choque de versões acerca de um mesmo fato. Num mundo hipercomunicativo como o nosso, saturado de informação e contra-informação, esse “efeito” tornou-se um campo de estudo legítimo da psicologia social e do jornalismo. Seu nome deriva da película clássica do diretor Akira KurosawaRoshomon” que conquistou o Globo de Ouro de ‘Melhor Filme’ e o Oscar de ‘Melhor Filme Estrangeiro’ de 1951, e está na lista dos 100 maiores filmes da história do cinema. “Roshomon” apresenta quatro testemunhas oculares de um mesmo assassinato que o narram de quatro maneiras completamente conflitantes. Cada relato, aparentemente fiel aos acontecimentos, é logo desmentido pelo testemunho seguinte e assim sucessivamente, lançando o público num abismo de incertezas e desconfianças.

"Roshomon" (1950): o clássico de Kurosawa agora sefve de comparação com a mais recente obra de Jorge Amado nas telas (Foto: Reprodução)

“Roshomon” (1950): clássico de Kurosawa agora serve de comparação com a mais recente obra de Jorge Amado nas telas (Foto: Reprodução)

Pois bem, a novela de Jorge Amado “A completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão-de-Longo-Curso” – que integra a coletânea “Os velhos marinheiros”, lançado em 1961, no auge de sua popularidade e ainda surfando no espetacular sucesso de “Gabriela, cravo e canela” – é um “Roshomon à baiana”: na pacata vila de Periperi chega o capitão Vasco, jactancioso homem do mar que busca repouso após uma longa vida de peripécias pelo mundo. Enquanto o comandante vai seduzindo toda a população com as narrativas de suas rocambolescas aventuras, chega à vila Chico Pacheco, um exaltado burocrata aposentado, que está disposto a provar que Vasco não passa de um arrematado impostor. A partir daí, inicia-se o tal “duelo” (que dá título à adaptação para o cinema) de “verdades”, de “denúncias” e de “versões” entre essas duas figuras bizarras numa escalada de golpes e contragolpes, até um final que – não se alarmem, não tem “spoiler” – aposta na capacidade do público de tirar suas próprias conclusões.

Cartaz de "O Duelo" (Foto: Divulgação)

Cartaz de “O Duelo” (Foto: Divulgação)

A Warner Bros comprou os direitos de adaptação para o cinema logo após o lançamento da obra literária, mas guardou-os na gaveta por décadas até decidir-se pela produção. Mesmo assim, a concretização do projeto tomou ainda mais dez anos de negociações para alinhar todo o pool de produtores, entre os quais Walkíria Barbosa da Total Entertainment.  Mas todo esse tempo de espera ajudou O Duelo a se beneficiar de um arsenal impressionante de efeitos especiais e visuais computadorizados que garantem ao filme sua imprescindível qualidade feérica e fabuladora, ainda rara no cinema nacional, mas que sempre sobrou na imaginação febril e sensualista de Jorge Amado.


Trailer Oficial (Divulgação)

Pelo resultado obtido na tela, fica evidente que “O Duelo” foi desenhado desde o seu início pelos seus idealizadores brasileiros e internacionais como um produto audiovisual do “tipo exportação”, bem afinado com as fórmulas globais de entretenimento. Vejamos: junte uma história cômica retrô-pitoresca de autor ilustre e – ao mesmo tempo – de forte penetração popular (Jorge Amado), um nome internacional encabeçando o cast (Joaquim de Almeida, ator lisboeta que já trabalhou em dezenas de filmes mainstream ao lado de super astros como Michael Caine, Antonio Banderas e Harrison Ford), um elenco recrutado no olimpo televisivo brasileiro (José Wilker, Patrícia Pillar, Márcio Garcia, Milton Gonçalves, Tainá Müller, e Cláudia Raia), e um cineasta competente (Marcos Jorge, roteirista e diretor do celebrado “Estômago”, de 2007, com João Miguel e que arrebatou 36 prêmios no Brasil e exterior).

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Adicione ainda um diretor de fotografia do calibre de José Roberto Eliezer (o mesmo de A grande arte, 1991, de Walter Salles e Se eu fosse você, 2006, de Daniel Filho); um diretor de arte com o currículo de Marcos Flaksman que criou alguns prodígios cenográficos em “O xangô de Baker Street” (2001, de Miguel Faria Jr., por sinal estrelado pelo mesmo Joaquim de Almeida) e Budapest (2001, de Walter Carvalho), e é sempre chamado para integrar projetos hollywoodianos ambientados no Brasil. Complete a receita com Inês Salgado, figurinista de “Cidade de Deus” (2002, de Fernando Meirelles) e Quase dois irmãos (2003, de Lúcia Murat). Bata tudo, despeje numa travessa e ponha num bom forno de CGI (Computer-Generated Imagery) e você terá este palatável e crocante entretenimento chamado “O Duelo”.

Wilker e Almeida conferem ao lado do diretor xxx uma cena em "O duelo": embate nas telas marcado por companheirismo no set (Foto: Divulgação)

Wilker e Almeida conferem ao lado do diretor Marcos Jorge uma cena em “O duelo”: embate nas telas marcado por companheirismo no set (Foto: Divulgação)

Talvez exatamente por esse compromisso com um “padrão internacional”, tal produto de capitais americanos, portugueses, brasileiros e italianos possa irritar um tipo de crítica e público mais engajado ou algumas carpideiras do Cinema Novo. Entretanto, graças a essa reunião invejável de talentos, o filme mantém-se fiel ao projeto original de Jorge Amado que definiu os “Os velhos marinheiros” como “duas estórias do cais da Bahia”, leia-se, embebidas de muita picardia, malícia e cor, repassadas de uma crítica –sempre terna – aos piores desvios da vida pública brasileira e à sua relação promíscua com os interesses privados. Daí, o enredo recheado de situações grotescas motivadas por vícios tão nossos como o patrimonialismo, o nepotismo, o tráfico de influência, o elitismo bacharelesco, o beletrismo exibicionista e a credulidade obtusa que enredam cada uma das dezenas de personagens do filme, quase todos beirando a caricatura ou representando arquétipos de uma “realidade brasileira” que o próprio Jorge Amado ajudou a fabricar na literatura e que “O Duelo” atualiza cinematograficamente, no exato momento em que o nosso país parece estar ainda longe de se livrar de todo esse entulho histórico.

As escorregadias fronteiras entre verdade e mentira, fato e mito – assim como o fascínio que impostores e farsantes exercem sobre os crédulos – produziram algumas pérolas do cinema. Conheça algumas:

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Com estreia na telona aos 18 anos, em “A falecida” (1965), longa protagonizado por Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo, José Wilker formou uma galeria de tipos criados ao longo de 50 anos de ótimos serviços prestados à cinematografia nacional. Confira abaixo!

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“Dona Flor e seus dois maridos”, maior bilheteria da história do cinema nacional e detentor do derrière mais famoso da Sétima Arte brazuca, protagonizado por Wilker na cena final (Reprodução)

*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria