*por Vítor Antunes
A tragédia que abala o Sul do Brasil é sem precedentes na História. Segundo a Defesa Civil gaúcha, quase 86% das cidades do Estado, que tem 497 municípios, foi afetada. Os números de mortos, desaparecidos e desabrigados não para de crescer e sobre o Rio Grande, a única certeza hoje, é a da dúvida. Luciano Mallmann, de “Elas por Elas” e “Justiça 2“, que mora no 11º andar de um edifício na capital gaúcha, estava sem luz há dois dias, e tentando alternativas para deixar o prédio no qual reside, no Centro Histórico, pegar a estrada e seguir para São Paulo.
Esperando pra embarcar depois de duas noites com uma vela. As escadas de dez andares que precisei descer, a equipe que me ajudou. (…) Coração partido e pedindo sol para minha gente – Luciano Mallmann
Conta-nos Luciano que o Centro Histórico foi um dos bairros mais atingidos pela enchente. “O meu prédio não foi alagado, por ficar numa parte mais alta, mas a uma quadra para baixo, na região onde ficam o Mercado Público, a Casa de Cultura Mario Quintana, a Praça da Alfândega, está tudo alagado. Porto Alegre só tem uma entrada e uma saída ativa, por enquanto, de modo que a saída da capital gaúcha estava totalmente engarrafada. Agora, eu estou em São Paulo, em segurança”.
A família do artista, contudo, está em outra cidade, no interior gaúcho, em Cachoeira do Sul, na região central do estado. Naquele município, cerca de 3.040 pessoas estão desabrigadas. “Como muitas outras cidades ali do Rio Grande do Sul, ela está ilhada, estão reconstruindo algumas estradas para pelo menos conseguir mantê-la abastecida. E está tendo uma mobilização muito grande para ajudar quem precisa. Muitos amigos meus estão sendo voluntários nos abrigos, se agilizando pela internet, fazendo o que dá alcance aí para ajudar quem pode”. O ator fixou no meu Instagram o post do SOS Rio Grande, que tem o QR Code para fazer a doação. E também tem o site paraquendoar.com.br. Eu não sei quanto tempo isso vai durar, mas eu tenho certeza que tudo vai melhorar”.
É muito triste de verdade o que está acontecendo, como todo mundo está vendo pela televisão, pela internet, aí o tempo todo. É muita gente desabrigada, bairros inteiros destruídos, muita gente que eu conheço perdeu tudo. O ponto positivo disso tudo, se é que tem um ponto positivo, é que o povo gaúcho é muito forte, muito unido, muito solidário – Luciano Mallmann
Entre os projetos para este ano, estava, justamente, voltar a morar em Porto Alegre – afinal ele passou uma temporada no Rio durante as gravações da novela “Elas por elas” da Globo – e continuar trabalhando numa empresa voltada a atender a diversidade e com foco na pessoa com deficiência no mercado de trabalho. Ele queria, também, voltar com sua peça, “Ícaro” naquela capital. O que precisará ser realocado para outro tempo, para outro momento, em que as questões de infraestrutura possam ser superadas.
Aliás, em se falando de superação, Luciano conta-nos, também, sobre como convive com o fato de, por ser PCD, ser geralmente utilizado como exemplo de bravura e resiliência. “Evidente que precisei ser resiliente. Claro que tenho muitos privilégios, passei por momentos difíceis, mas não sou reduzido a isso. Todo o desafio do meu corpo para atingir o padrão normal não são exclusivamente meus, mas frutos da superação coletiva. Se na minha esquina não tem uma rampa, não sou eu quem vai ter que ir construir uma. Todos temos que ser responsáveis por isso. Me colocar no espaço do exemplo é injusto já que nem todos temos os mesmos privilégios e condições. Uma pessoa da mesma idade e com a mesma lesão que eu, na mesma altura e que mora em uma comunidade e não tem plano de saúde, tem dificuldades maiores”.
PROJETO DE TEATRO SOBRE SER PCD
Um acidente fez com que Luciano passasse a ser PCD. Há 20 anos, ele trabalhava como professor de acrobacia aérea, ainda que já fosse ator. Ele morava no quarto andar de um prédio sem elevador, em São Paulo. Depois do acidente, voltou a morar em Porto Alegre e decidiu trabalhar como publicitário, abdicando assim da profissão. “Não queria voltar a trabalhar com arte. Era como se eu esfregasse minha cara no asfalto e visse a minha limitação”. Mas o tempo mudou tudo. “Tenho a deficiência muito bem resolvida na minha vida e ela me trouxe muita coisa positiva. Virei produtor e entendi que agora deveria produzir minhas histórias. Fiz dois espetáculos de teatro, e um monólogo sobre ser PCD”.
Há sobre nós PCD’s um olhar até um pouco preconceituoso de que não podemos ser felizes por conta disso. Não é uma coisa que me ofenda ou indigne. Sempre que peço carro por aplicativo, há quem pergunte o que aconteceu ou se vou voltar a caminhar, se vou ser curado. Dizem que vão rezar por mim, pressupondo que a gente quer ser curado e não é bem assim – Luciano Mallmann
O personagem de Luciano em “Elas Por Elas“, Carlinhos, era cadeirante, tal como ele, e razão pela qual foi escalado. “As questões do Carlinhos estavam contextualizadas. Ele não falava só sobre isso e seu ativismo era sobre a causa animal. Sua deficiência era naturalizada e isso já é um poder de alcance grande, impacta muita gente. Claro que houve um momento em que ele contou a sua deficiência e como ele foi levado a ficar assim, mas fez sua neuro habilitação, e a maneira como foi levantado o tema foi natural, não era uma forçação de barra. Ele vivia, se apaixonava, se envolvia com outras causas, fazia o corre dele. Em “Justiça 2“, já era algo diferente, meu personagem era revoltado, inconformado com aquela situação. A deficiência chega a ele tardiamente, é amargurado, foi vítima de homofobia. Eu como ator quero mostrar isso”.
Eu sou cadeirante, falo sobre a minha deficiência, mas tem coisas além, que as pessoas vão entender vivendo – Luciano Mallmann
A abordagem sobre a deficiência física foi mudando, historicamente. Mas, na quase totalidade dos casos, eram vividos por pessoas sem deficiência, que se acidentavam no meio da história, se tornavam cadeirante depois de um certo tempo ou sonhava estar andando. Ou ainda era por algo punitivo.” Ainda se acredita que a pessoa de cadeira de rodas não é capaz de ser feliz ou de viver. Hoje ainda há isso, mas já diminuíram a escalação de pessoas sem deficiência para fazer PCD’s – o chamado creepface – e mesmo a Globo não só tem o cuidado de nos escalar, mas de dar condições de acessibilidade. Os estúdios e os locais onde eram gravadas as cenas de “Elas por Elas” eram incríveis e mais adaptados que minha casa.
Não adianta falarmos de equidade se não há condições que abranjam a todos. Há 20 anos, quando me acidentei, não imaginei que fosse estar na Globo ou quebrando paradigmas. Me sinto feliz em fazer parte disso – Luciano Mallmann
Não é incomum sinalizar a invisibilidade do afeto às pessoas PCD. Para Luciano, “a pessoa com deficiência é olhada de antemão com curiosidade. As pessoas têm curiosidade sobre se relacionar conosco. No fim é tudo igual, é uma questão de prestar atenção, conversar. E nesses dois últimos trabalhos que fiz na televisão tive a oportunidade de fazer um cara gay e um hétero. Isso é ótimo”. Quando perguntamos para Luciano, o que hoje o emociona de maneira incisiva, ele foi definitivo: “As relações afetivas. O lado humano da vida”
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