Thiessa Woinbackk: no cinema, a youtuber e atriz trans dá visibilidade e levanta a voz contra o preconceito


Com quase 800 mil seguidores no canal Thiessita, a artista protagoniza o longa-metragem Valentina, que acaba de estrear na telona, focando no tema da exclusão de pessoas trans do ambiente escolar. “Gostaria de ter visto um filme como esse no começo da minha transição. Talvez não tivesse sido uma barra tão difícil na questão psicológica. O respeito é a base de tudo nessa vida”, pontua ela, que em sua primeira incursão na sétima arte já conquistou quatro prêmios em festivais de cinema nacionais e internacionais

Thiessa Woinbackk conquistou quatro prêmios por sua atuação no longa Valentina (Foto: Leonardo Feliciano)

Thiessa Woinbackk conquistou quatro prêmios por sua atuação no longa Valentina (Foto: Leonardo Feliciano)

* Por Carlos Lima Costa

Na busca para dar fim a preconceitos, curar feridas da sociedade, a arte é utilizada para transmitir mensagens, servindo como instrumento de mudança. E estreou nos cinemas o longa-metragem Valentina realizado para dar visibilidade ao tema da exclusão de pessoas trans do ambiente escolar, através da personagem título que busca um recomeço em uma nova cidade e com ajuda da mãe, interpretada por Guta Stresser, tenta se matricular em uma escola com seu nome social, mas tem dificuldade. No papel da protagonista, está a atriz trans Thiessa Woinbackk, uma digital influencer de destaque com seu canal no YouTube, batizado de  Thiessita, que aborda temas como direitos de pessoas trans, beleza e a importância da auto aceitação para adolescentes LGBTQIA+.

A atriz explica que seu trabalho de criação da personagem não foi facilitado por ambas serem trans. “A história da Valentina não é muito parecida com a minha. Psicologicamente e esteticamente falando, ela é muito diferente, então, foi um mergulho. Fiz uma preparação de quase um mês, morrendo de medo, achando que não ia dar conta de fazer. Agora, gostaria de ter visto um filme como esse no começo da minha transição, talvez não tivesse sido uma barra tão difícil na questão psicológica”, pontua.

Com serenidade, Thiessa aponta que um dos caminhos para cessar o preconceito seja a informação. “Quando uma pessoa não tem informação, ela vai ser ignorante de alguma forma. Agora, tem gente que recebe a informação e escolhe continuar sendo ignorante. Aí isso é um problema, mas o respeito é a base de qualquer coisa no universo. A gente convive em comunidade, se relaciona com pessoas. O mínimo para qualquer ser humano, seja cis, trans, é o respeito”, aponta.

Em seu primeiro papel no cinema, tendo como experiência anterior três anos integrando um grupo de teatro em sua cidade natal, Catalão, no estado de Goiás, Thiessa correspondeu as expectativas do diretor Cássio Pereira dos Santos. Por sua performance, ela conquistou os prêmios de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Seattle, no Outfest Los Angeles, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Mix Brasil, no mesmo estado. “A ficha ainda não caiu. São altas análises na terapia para entender tudo isso”, diz, ansiosa por uma nova oportunidade na sétima arte.

Thiessa Woinbackk e Guta Stresser, que interpreta sua mãe no filme Valentina (Foto: Leonardo Feliciano)

Thiessa Woinbackk e Guta Stresser, que interpreta sua mãe no filme Valentina (Foto: Leonardo Feliciano)

Ela já fez testes para outras produções, mas ainda não obteve respostas. “Não sei se pela pandemia ou pelo fato de eu ser trans. Não é todo dia que se vê papel de pessoas trans e a gente ainda tem que lidar com quem acha que pessoas trans só podem fazer papéis trans. Precisamos mudar isso”, enfatiza.

Atualmente morando em São Paulo, Thiessa dedica seu tempo ao Thiessita, onde o tema da transexualidade é o foco. Apesar do sucesso, ela também é vítima dos haters com seus comentários negativos. “Isso existe, mas eu não me importo porque são pessoas que eu não conheço. Nunca fui muito de me importar. Na minha cidade, quando comecei a transição foi um inferno, porque é um lugar pequeno e todo mundo ficou sabendo. Então, quando saía na rua, todos cochichavam. Sou quem eu sou. A opinião do outro não pode implicar no que eu sou, então, nunca fui de me importar. Na internet, menos ainda, porque não estou nem vendo essas pessoas, então, sigo a minha vida”, explica. E questiona o que leva alguém a perder tempo da própria vida para comentar besteiras sobre quem nem conhece. “Nunca entendi qual a lógica disso. Deve ser gente frustrada e preconceituosa, que está perdendo tempo, porque eu não estou nem aí”, afirma.

O canal criado por ela em 2016 foi um instrumento fundamental em sua vida. Foi através dele que tornou pública sua identidade de gênero. “Saí de um emprego e como sempre gostei muito de arte, eu comecei a fazer uns vídeos no YouTube. Aí fui tirar cartas no tarô e me disseram: ‘aceita quem você é ou vai pegar fogo’. Depois disso, chamei um amigo para fazer vídeos sobre transfobia. Por mais que na minha cidade o povo soubesse, isso nunca tinha saído da minha boca. Pensei que precisava me livrar disso. Quem não soubesse, ia ficar sabendo. Quem sabia, eu ia confirmar. Isso mudou minha vida em vários aspectos como o da autoaceitação”, explica. Aos 31 anos, aconselha aos que passam por todas as dúvidas que ela enfrentou: “Não se boicotem por conta de alguém, tenham força, porque a gente escuta e passa por muitas situações, mas não desistam de quem vocês são”, observa.

Thiessa, então, relembra um pouco de sua história. Ao contrário de Valentina, a personagem do filme, ela não enfrentou bullying nos primeiros anos escolares. “Eu não me sentia no lugar de ser um menino. Como não tinha muito entendimento de quem eu era, sempre fui muito fechada, na minha, então, na escola, não abri muito espaço para que as pessoas falassem. Chegava ouvindo música no MP3 e aí na hora do recreio ficava sozinha na escada, porque não queria me envolver e também porque não me sentia pertencente. Não sabia o que eu era e ficava pensando: ‘nossa, eu podia ter nascido uma menina’, tanto é que quando eu ia conversar ou fazer amizades era muito mais com menina do que com menino”, recorda, acrescentando: “Fora do ambiente escolar, escutava provocações como ‘ah, o gayzinho’. E minha transição foi tardia. Eu comecei com 19 para 20 anos. Eu tive muito problema na faculdade de Biologia. As pessoas cochichavam e tinham preconceitos”.

Thiessa Woinbackk tem quase 800 mil seguidores em Thiessita, seu canal do YouTube (Foto: Divulgação)

Thiessa Woinbackk tem quase 800 mil seguidores em Thiessita, seu canal do YouTube (Foto: Divulgação)

Quando ainda não tinha feito a redesignação sexual, com a cabeça cheia de dúvidas, chegou a namorar meninas. “Eu entendia que gostava de meninas e aí ficava com elas, mas quando beijei menino também foi legal. Foi aos 18 anos, tinha zero noção de quem eu era, não era ligada em ficar com as pessoas. Mas quando o rapaz me tacou na parede e começou a me beijar, eu falei: ‘meu Deus, que delícia’. Naquela época, ainda não se falava muito sobre transexualidade. Mas na faculdade, eu já entendia que tinha algo, fui pesquisar. Lembro que até achei uma cantora alemã trans, Kim Petras. Ali que eu entendi que dava para ser quem eu sou”, recorda.

Mas somente aos 24 anos, em 2014, Thiessa realizou a redesignação sexual. “Depois disso, mudou a sensação de confortabilidade com o meu próprio corpo, me senti muito mais sendo eu, confortável na cama, no sexo”, relata ela, que continua ficando com pessoas de ambos os gêneros. “Essas coisas não estão interligadas, porque identidade de gênero é totalmente diferente de orientação sexual. Identidade de gênero é aquilo que eu sou e orientação sexual é aquilo que eu gosto. Isso também nunca foi uma questão na minha cabeça. Engraçado que muita gente, na minha faculdade, quando me viu beijar uma menina, comentou: ‘Você virou mulher para pegar mulher?’ Eu respondia: ‘Não virei mulher, isso eu sempre fui’. Acho que desde criança. Por mais que não externalizasse isso. Eu não conseguia me ver como um homem e, sim, como mulher”, reforça.

E revela fatos da infância: “Lembro de uma senhora que sempre via no ônibus que me levava para a escola, quando tinha uns seis anos. Quando chegava em casa, eu ficava brincando que era a mulher que ficava cuidando do ônibus. Sozinha, sem ninguém ver, dançava É o Tchan e achava que era a Carla Perez, pegava roupas das minhas tias e vestia escondida”, recorda.

“Eu entendia que gostava de meninas e aí ficava com elas, mas quando beijei menino também foi legal", frisa Thiessa (Foto: Leonardo Feliciano)

“Eu entendia que gostava de meninas e aí ficava com elas, mas quando beijei menino também foi legal”, frisa Thiessa (Foto: Leonardo Feliciano)

No campo afetivo, a medida que foi amadurecendo, mudou a forma de conduzir a vida. “Antes, eu esperava até o momento que eu percebesse que o cara estava gostando de mim como eu sou, com a minha personalidade, aí eu contava. A maioria das vezes, o cara surtava e era horrível. Já me bloquearam várias vezes, depois de eu contar. Tipo o cara está morrendo de amores, eu contei e me bloqueou. Mas também já aconteceu de falar ‘eu gosto de você do jeito que você é e isso não vai fazer uma diferença’. Mas no final, sempre era uma diferença, sempre tinha a ver com o término do relacionamento. Hoje em dia, eu já chego falando que sou uma mulher trans. Se for para dar ruim na minha vida eu não quero. Um beijo, vai com Deus’, afirma.