Tânia Alves vive personagem não-binário no teatro, fala sobre vida sexual e diz que não quer voltar às novelas na TV


Aos 50 anos de carreira, atriz celebrou a data comemorativa com peça ousada, na qual colaborou com o roteiro. Discute com naturalidade o sexo e as relações afetivas – ou a falta delas, através de um personagem agênero e de um roteiro teatral transgressor. Artista também fala da sua própria vanguarda, em se assumir artista numa época profundamente reacionária na qual a carteirinha que identificava as atrizes era a mesma utilizada às prostitutas. E mais: estará na série “Olhar Indiscreto”, da Netflix

*Por Vítor Antunes

“É bom ter 50 anos de carreira por que começam a chamar você de grande dama do teatro, de monstro sagrado. Eu acho algo maravilhoso, eu só agradeço”. É assim, com esta leveza que Tânia Alves entende a sua carreira, longeva carreira que alcança o seu cinquentenário. A atriz, que viveu a revolução sexual dos Anos 1970, diverte-se ao dizer não ter “deixado de fazer nada o que quis e não me pergunte o quê”. Tânia Alves estará na série “Olhar Indiscreto”, da Netflix, e é uma das autoras da adaptação teatral do livro “Criogenia de D.”, projeto escrito pelo autor niteroiense Leandro Valente. Ela está às raias dos 70 anos e vive uma energia muito diferente daquela experienciada por sua personagem, D., uma pessoa que casou quatro vezes e é marcada pela amargura. “Eu passei a vida tendo que lidar com o perdão, tentando tirar da minha vida a raiva e poder me curar, D., a contrário, abre a caixa de Pandora donde saem esses sentimentos ruins. Tenho que tirar de mim todas essas emoções nas quais ele/ela se escora”. “D.” não tem gênero, ou seja, é não-binária/o. Encaixando-se assim no “+” da sigla LGBTQIAPN+.

Encenação e literatura experimentais encontram uma atriz ativa, de carreira longa e de posicionamentos ponderados, ainda que reconheça ter vivido uma vida livre e de experiências. Tânia também revisita a carreira, anuncia estar no elenco da série “Olhar Indiscreto”, da Netflix, e conta sua pior experiência em televisão, a novela “Brida”, da Manchete, na qual os funcionários da extinta TV, sem salários, pediam dinheiro aos atores para suprir a casa.

Tânia Alves vive personagem agênero no teatro (Foto: Fred Borba)

SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA AFETIVA

Relacionando o desafeto/desamor a uma patologia, Leandro Valente apresenta sua/seu protagonista em “Criogenia de D.”. Tânia, que é formada em Letras, apaixonou-se pelo livro, tão logo o lera. Segundo sua intérprete e adaptadora, o livro é de grande ousadia. “Ele tem uma sofisticação absurda, além de possuir um pacto de entendimento da alma humana de forma visceral, inteira. Quando eu li já o fiz com a proposta de adaptar aos palcos e pensei se teria como fazê-lo, já que no livro não há uma maiúscula, não há um parágrafo. rata-se de uma edição ousada e transgressora, tanto na forma quanto no conteúdo. Eu me deleitei como leitura. O primeiro desafio era fazer aquilo virar teatro. O texto ficou de uma beleza ímpar, pois traz o encanto do lado humano da alma humana que a gente não quer revelar”.

Além de tudo a peça tem um recorte profundamente metalinguístico. “Ela/ele diz estar escrevendo um livro, e o livro está acontecendo naquele momento. Para não perder a pungência da poesia do Leonardo eu lancei mão de vídeos e de multilinguagens. No fim, o romance de Valente recebeu alvíssaras: “Trata-se de um livro genial, premiadíssimo e traduzido para vários idiomas”. A peça foi ovacionada no Teatro Municipal de Niterói, que segundo a atriz, “é lindo demais”. Ela celebra a parceria de sua equipe, que, sob sua ótica, tem “grande sincronicidade em uma peça ousada em forma e conteúdo”. A atriz relata que sua intenção é de não deixar a montagem restrita àquela cidade, mas seguir pelo “Brasil todo, talvez até Portugal”.

Tânia Alves. Aos 50 anos de carreira, atriz vive os desafios de trazer a não-binariedade ao teatro (Foto: Fred Borba)

A história conta a relação que D. tem com seus quatro ex-maridos. “Há cenas que são de uma ousadia absurda o tempo inteiro essa/esse personagem fala com ódio, com rancor, desejando o mal às pessoas. É um exercício maravilhoso que só nós, atores, conseguimos dar conta”. Perguntamos à atriz quais cenas ousadas seriam estas. “Qualquer coisa que eu diga dessas cenas mais fortes podem rotular a peça e eu prefiro falar do processo. Aproveitei todo o lado cotidiano dela/dele falando mal dos maridos, pondo a mesa do café da manhã ou servindo um jantar a dois para um dos maridos que está ausente. Ela fala mal deles, seduz uma pessoa que não está presente, faz um lap-dance [dança sensual] em uma pessoa que não está ali. [Há, inclusive] uma cena de plateia na qual eu faço uma lista e me desculpo com as pessoas por conta de uma das cenas mais fortes”.

Quando eu era pequena eu queria ser todas as pessoas do mundo e eu ganhei esse presente. Impossível ser todas as pessoas do mundo quando se tem pudor. Não se pode ter pudor para ser ator – Tânia Alves

A atriz aborda temas tabu nesta montagem, ainda que use cenas do cotidiano: “As pessoas se identificam imediatamente. A peça teve vários tipos de público. Num dia, tivemos um público majoritariamente formado por jovens. Quando eu falava de algum tipo de sexualidade, ou na hora do lap-dance os adolescentes enlouqueceram. Talvez por conta de descobrirem ser possível falar sobre sexo de forma natural. Não é pecado falar de sexo! E na peça falamos de uma forma assumida e sem culpa. É saudável e é divertido. A sexualidade é nossa forma criativa é uma força da natureza é a libido e um dos grandes pontos que temos. O brasileiro é sexualizado”.

Tânia Alves: “O Brasil é sexualizado” (Foto: Fred Borba)

O POLITICAMENTE CORRETO E A CARETICE

Tania Alves viveu os anos de repressão, decorrentes da Ditadura Militar. Porém, vivenciou, de igual maneira, todas as liberdades que havia nos Anos 1970, período de revolução nos costumes e de grandes rupturas: “Eu vivi os anos da repressão todos e não deixei de fazer nada do que eu queria fazer. Sou um misto de Bob Marley (1945-1981) quando ele diz “Meu caso não é com a política é com o amor e a natureza”, com um tanto de John Lennon (1940-1980) quando afirma não ser “Nada pelo matar ou morrer” e uma porção de Michael Jackson (1958-2009) “Sou uma pessoa que ama, não uma pessoa que luta”.

Diante de um período de grande liberdade sexual dos 70’s, perguntamos à Tânia se ela vê a sociedade atual como mais careta que aquela que vivenciara na juventude. Segundo ela “o ser humano já foi pior. A humanidade é um projeto maravilhoso. Aliás, todo projeto da natureza é algo maravilhoso, complexo, sofisticado. Mas os grandes crimes contra a Humanidade, como a colonização, por exemplo, como o genocídio dos aborígenes, a destruição de culturas nativas, o nazismo o apartheid… Tudo aconteceu no passado e já foi muito pior o que acontece hoje”.

E ela prossegue: “Há pessoas caretas e outras não caretas e é isso. Obviamente hoje em dia estamos mais expostos a comentários em decorrência das redes sociais. O que me deixa triste é que ficou tudo muito fundamentalista, virou uma espécie de seita. As pessoas parecem haver ficado fanáticas e há o comprometimento do amor, da amizade e há quem agrida as pessoas que pensam diferente. O radicalismo é careta. Isso é preconceito, caretice, regressão. A evolução humana-humana passa pela compreensão, pela tolerância, pela democracia.

O que eu observo é que ninguém nunca deixou de fazer nada do que deve ser feito. Vivemos a oportunidade de ser, pensar e agir como quisermos, desde que isso não prejudique o próximo. Há leis amparando tanto a união estável gay como a Lei Maria da Penha, por exemplo. Nada vai deixar de fazer uma pessoa cometer uma violência mas existem mecanismos para combater. Eu vivi o tabu da virgindade. E o mundo de hoje é mais careta? – Tânia Alves

Suas opiniões, ainda que escritas, não são cristalizadas, mas mutantes: “Eu tenho desapego até com as minhas próprias opiniões e sou a favor da melhor opinião desde que não seja a minha. Quero ter a liberdade de mudar de opinião quando for possível. Se eu tenho novos dados irei mudar o meu ponto de vista, claro que eu não vou congelar em nada”.

Tânia, sobretudo, critica a obsessão por cliques e comentários que povoam as redes sociais: “Para essas mídias necessita-se de comentários. Comentar é julgar e isso vai totalmente ao contrário do meu processo de evolução pessoal”.

Tânia Alves compara o atual momento com o passado (Foto: Fred Borba)

A NORDESTINA DE COPACABANA

Ainda que profundamente identificada com o Nordeste, Tânia Alves não é nascida naquela região, mas em Copacabana. Filha de uma carioca de Paquetá e de um pai pernambucano. Mas a atriz relata que sua infância passou ao largo das questões nordestinas: “Meu pai era bem aculturado em relação ao Nordeste e sua conexão com a região dava-se apenas com a culinária.  anto que nosso programa de sábado era assistir à extinta TV Rio (1959-1972), na Avenida Atlântica, assistir tele catch e depois eu era levada para almoçar no Restaurante Fiorentina e ao Zicartola [Restaurante de Dona Zica e Cartola], no Centro do Rio. Conheci o Nordeste através do grupo do Luiz Mendonça (1931-1995), que me apresentou Moraes Moreira (1947-2020)”.

Lembra que seu primeiro grande papel foi em “Morte e vida Severina” de Zelito Vianna. Alguns anos depois, fez a adaptação da mesma obra pelas mãos do Walter Avancini. Ambas as montagens de “morte e vida” contou com a presença do ator José Dumont, recentemente preso por um suposto envolvimento com pedofilia. “Eu conheço a chegada dele nas capitais culturais, pra onde veio já pensando em ser ator. Foi pedreiro, carteiro, ajudante de pedreiro, estava se virando em São Paulo quando viu uma notinha num jornal, onde se estava recrutando atores. Ele fez o teste e foi aprovado, porque é gênio como ator. Eu vi o nascimento dele como artista ao vencer o prêmio de Melhor Ator por “O Homem que Virou Suco”. Lamento profundamente o que ocorreu com ele.

José Dumont foi um dos grandes parceiros de cena de Tânia Alves. Outro de destaque foi Nelson Xavier (1941-2017), com quem fizera a primeira minissérie da Globo, “Lampião e Maria Bonita”, em 1982. Ao falar deste último, o lamento é substituído por uma lágrima “[Xavier] é uma bênção, meu Deus (emociona-se). Eu só tenho a agradecer pelas parcerias”.

Tânia Alves e Nelson Xavier em “Lampião e Maria Bonita”, primeira minissérie da Globo (Foto: Acervo/Globo)

Outro parceiro recorrente é Walter Avancini (1935-2001). A contrário do lugar comum, que aponta as asperezas de Avancini e seu pulso forte na direção, Tânia apresenta uma outra faceta do diretor: “Ele era um gentleman comigo e me ensinou a fazer televisão. O Avancini me ensinou a trabalhar com câmeras tirando a máscara teatral. Não tinha paciência para quem aparentava não querer trabalhar e achava que elas podiam aprender pela dor e não tinha paciência para quem não tinha paciência para trabalhar. Não que eu esteja falando mal dele, pois que era um gênio, mas eu sei o que as pessoas sofreram na sua mão. Fui muito protegida e não vi nada, nunca o assisti fazendo nada contra ninguém, mas ele era da filosofia do tudo pela arte”.

A parceria entre eles era tamanha que na passagem do diretor pela Manchete, Tânia foi convocada a ajudar a apagar alguns incêndios. Das quatro novelas que Walter dirigira na extinta TV, Alves fez três. “Ele brincava comigo dizendo “precisamos subir a audiência, venha pra cá”.

A primeira experiência de Tânia na TV dos Bloch foi na abertura de “Tamanho Família”, série escrita por Geraldo Carneiro, Miguel Falabella e equipe e que tinha trilha sonora escrita por Moraes Moreira cantada por Tânia. A memória desse trabalho, tão específica, surpreendeu a própria atriz, que não lembrava havê-lo feito. Depois, voltaria já sob as asas de Avancini, em “Tocaia Grande”, na qual fora alçada a protagonista e, não apenas, era a mãe de sua filha legítima, Gabriela Alves, na trama. Além desta, tinha as então iniciantes Taís Araújo e Giovanna Antonelli como filhas. Em “Mandacaru”, coincidentemente, uma correlação entre o papel agênero de “Criogenia de D.” e o da novela. Na trama de 1998 ela vivia uma atriz que interpretava um homem. Metalinguagem pura.

Porém, nenhuma experiência na teledramaturgia fora mais dramática que “Brida”. A trama teve um final improvisado já que a TV não tinha mais recursos para sobreviver, os atores entraram em greve e o clima era de consternação: “Brida” é um vácuo. Nada é mais frustrante para um ator do que decorar um texto e não dizer. Aquele texto parece que está aqui até hoje”.

Tânia Alves em cena no “último capítulo” de Brida, da Manchete (Foto: Reprodução/TV Manchete)

A Manchete já não estava pagando e as pessoas passaram a roubar equipamentos para vender. Havia quem pedisse pelo amor de Deus para dar conta da família, pois que não estavam recebendo. Chegou um momento em que todo mundo era revistado antes de sair para que a emissora se certificasse de que ninguém estivesse levando nada. Havia falta de tudo: de comida a equipamentos, além de uma grande falta de confiança. As pessoas se agrediam. Era coisa de inferno na Terra” – Tânia Alves

Ainda que tenha vivido uma experiência muito pouco positiva, a atriz lamenta não ter podido “falar o texto que decorou” e pondera dizendo: “Não pensar tanto nisso. O saldo da maioria das minhas experiências profissionais foram positivas, cerca de 99%”. Após dizer algo tão preciso, corrigiu-se “ou melhor 95%. Passei por muita coisa com a minha filha pequena, tendo de deixa-la com a minha mãe para dar seguimento à carreira”.

Sua filha, Gabriela não tem mais interesse em voltar ao teatro. Ela é terapeuta holística, se sente melhor nesse ambiente. “Ela, realmente, está mais voltada à espiritualidade, ao sagrado feminino, ao xamanismo e trabalha com coisas maravilhosas. Ela não se identifica mais com o ambiente de teatro/TV”. Gabriela e Tânia estrearam juntas na TV. O primeiro trabalho de Tânia fora na TV Cultura, no teleteatro “Caixa Forte”, em 1976.

Tânia Alves em “Caixa Forte”, da TV Cultura. Estreia dela e de sua filha na TV (Foto: Reprodução/TV Cultura)

UM BOLERO DERRAMADO?

Tânia transformou-se atriz por acaso. Fez um teste para dubladora. De lá, foi convidada a fazer “O rapto das cebolinhas”, de Maria Clara Machado (1921-2001) sem nunca haver feito teatro na vida. Dali, foi convidada a fazer outra peça, quando substituiu uma atriz que faltara e nunca mais retornara à encenação. Ainda que tenha muitas músicas gravadas, não tem previsão de disco novo. Por mais que tenha muitas novelas, também não tem pretensão de retornar a elas. Ainda que, assumidamente, esteja mais preocupada com o porvir que com o passado, ela não deixa de lembrar que “meu pai ficara cinco anos sem falar comigo e minha mãe tinha vergonha de mim e não ia assistir minhas peças. Ela dizia que aquilo não era ambiente.

Sou da época em que a carteirinha que identificava as atrizes era a mesma que a das prostitutas – Tânia Alves

Tânia é da época em que, os censores cortavam uma cena em razão de ela, grávida, não poder ficar nua no palco. É do tempo que fugia da Faculdade de Letras preocupada com os reveses da ditadura. Seria esta vida um bolero derramado? Ela disse que não: “A música me define. Eu sou isso tudo. Raízes germânicas, raízes indígenas, raízes africanas – sou feita de candomblé e tenho Oxum Opará de cabeça, ainda que não tenha religião. Acho lindo não ter doutrinas. Eu me decepcionei com todas elas. Peço para ser a voz de Deus, honrar sua beleza, sua arte, seu amor. Reconhece-lo em todos ela é uma força que perpassa tudo e a todos.

Parafraseando a sua própria frase e a sua própria canção do álbum “Coração de bolero”, a  lembrança de Tânia para o passado não é muito boa por que o presente e o futuro a demandam em memória. Mas para que o sentimento exista, para que a mágica resista há de se cuidar. E de pouquinho em pouquinho, será como um Deus.

Tânia Alves e sua fé plural (Foto: Fred Borba)