*Por Vitor Antunes
Nascida em Nova Iguaçu e criada no bairro da Prata, em Belford Roxo, no Rio de Janeiro, a atriz Eli Ferreira viverá um de seus maiores desafios: o de ser Laura, cotada como uma das vilãs de “Mar do Sertão”, novela das 18h que vem tendo bons resultados desde sua estreia. Eli, que foi Miss Belford Roxo e por muito pouco não foi condecorada pelo Estado do Rio, tornou-se atriz por haver sido aprovada em primeiro lugar na seleção da Escola de Teatro Martins Pena – única escola pública de teatro da América Latina – e celebra a boa fase da carreira diante de dois trabalhos vitoriosos no streaming, as séries “Sentença” e “Santo”. Em entrevista exclusiva, a atriz também faz diversas reflexões sobre a questão do abandono parental, já que, como boa parte da população brasileira, ela não tem o nome do pai na certidão de nascimento.
Deus é meu pai. Eu faço parte daqueles brasileiros que não tiveram reconhecimento paterno. Foi Deus quem me impulsionou e me colocou onde estou. (…) Eu tenho um vídeo que viralizou no qual eu falava sobre o Dia dos Pais e comentava que o fato de ter assinalado “pai ausente” na certidão de nascimento não marca uma ausência, mas uma presença. Há pessoas que se assustam com o fato de eu só ter um sobrenome, de ser só “Elidiane Ferreira”– Eli Ferreira, atriz
UMA “VILÔ NA TV. UM FURACÃO NO STREAMING
“Mar do Sertão” tem alcançado bons resultados às 18h. A novela alcançou 20 pontos de audiência em São Paulo e 23 no Rio, a melhor marca de uma novela do mesmo horário desde a exibição de “Nos Tempos do Imperador” – a primeira novela inédita a ser exibida na TV após a pandemia. A novela de Mário Teixeira passará pelo primeiro plot-twist de sua narrativa em breve, quando um de seus protagonistas, Zé Paulino (Sérgio Guizé), será tido como morto. Quando este retornar à cidade de Canta Pedra, onde se passa a trama, voltará tendo junto a si a poderosa Laura, personagem de Eli Ferreira. Atribui-se a esta mulher um papel de vilania na trama de Teixeira e cogita-se que ela fará dupla com Tertulinho (Renato Góes) nas maldades que objetivarão separar o casal principal do folhetim.
Quando foi apresentada à personagem, ventilou-se a possibilidade de que ela seria uma vilã. Eli foi discreta quanto a esta característica de Laura: “O Mário [Teixeira] gosta de revelar os personagens no meio do caminho, a gente não tem muitas informações sobre eles e Laura é uma destas”, conta. A atriz segue dizendo sobre a forma com a qual Laura será apresentada aos espectadores. Segundo a artista, ela virá à cena, pois “trabalha com o Zé Paulino, e aos pouquinhos e a gente vai conhecendo-a. Inclusive, seu sotaque não é local, é meio sudestino, já que ela viveu neste eixo e ganhou o mundo. Laura é brasileira e foi para Nova York, onde estudou economia. Chega a Canta Pedra e estranha aquelas pessoas, embora não seja de família rica, abastada”.
Eli adianta um pouco alguns outros elementos de sua personagem, mantendo, contudo a discrição: “Se ela for uma vilã eu vou adorar, porque eu sempre quis interpretr uma. Reconheço que o antagonismo principal cabe ao personagem do Renato Góes, o Tertulinho, e se ela for um braço dessa vilania, eu vou adorar, já que, assim, poderei explorar um lado meu que não foi trabalhado”.
Ainda sobre a misteriosa mulher que irá aparecer na novela das 18h, Ferreira apresenta-a como sendo “uma executiva, empoderada, que trabalha numa multinacional e chega ao interior nordestino seduzida inicialmente por seu trabalho, convidada por Zé Paulino, por quem é apaixonada. A rejeição dele em não vê-la como mulher, mas como uma profissional, e diante do fato de ela haver ido para aquela cidade convencida de fazer um projeto enorme, por influência dele, a faz ver seus sonhos desmoronarem ao se deparar, não apenas com aquela realidade, mas com o homem pelo qual ela é apaixonada estar se deixando levar por uma paixão antiga [pode despertar essa ação de vilania]”.
Frustrada em seu desejo, talvez sua personagem deixe pesar seu lado de mulher de negócios para cumprir à risca as razões que a levaram para o Brasil, e é aí que terá origem o seu grande conflito e as alianças com as “serpentes venenosas” – nas palavras da atriz – entre quais o Tertulinho. Ou seja, a personagem de Eli, promete movimentar a trama das 18h!
Além da – talvez – malvada mulher na novela global, Eli Ferreira estará em “Santo“, série que estreará dia 16, na Netflix. Nesta, a atriz vive uma policial federal que, conta-nos ela, “super honesta”. “A série teve cenas de ação, perseguição, questões relacionadas ao narcotráfico e a preparação que eu tive que fazer foi muito intensa para dar corpo a ela, já que há o uso de armamentos pesados e ela tem uma vida intensa enquanto policial investigativa”. Em outra série, igualmente do streaming, “Sentença”, da Amazon Prime, a atriz vive uma advogada lésbica, incorruptível, que quer ser juíza e é assistente de um desembargador corrupto. Embora a série tenha feito muito sucesso nesta plataforma, Eli comentou que não haverá segunda temporada.
A série esteve um tempo no Top 3 da plataforma, e depois no Top 10. Achamos que teria segunda temporada, mas não terá – Eli Ferreira
A atriz nos conta que este projeto fora rodado no Uruguai em 2020 e montaram cidade cenográfica naquele país ainda durante a pandemia. Já “Santo” foi toda gravada em Salvador. Eli destaca um pedido que fizera ao Universo no Réveillon 2020/2021, que era de “voltar a Salvador e voltar trabalhando”. Pois bem, o Universo a ouviu e na capital baiana a atriz morou por dois meses e meio, a trabalho. Local onde sentiu “a ancestralidade presente em todos os cantos” e percebeu que, com o perdão do trocadilho, era “Tempo de Amar” e revelou-nos estar namorando um baiano.
DEUS É PAI
Eli nasceu em Nova Iguaçu e foi criada em Belford Roxo, no bairro de Santo Antônio da Prata – costumeiramente reduzido para “Prata” pelos cidadãos daquele município. Belford Roxo, dentre as 92 cidades do Rio de Janeiro, figura na posição 71º quanto ao seu índice de Desenvolvimento Humano e junto a outras cidades da Região Metropolitana, como São João de Meriti, Duque de Caxias e São Gonçalo está entre as 20 piores cidades em saneamento básico no ano de 2020. Naquela cidade não há cinemas – assim como não o há em Mesquita, cidade vizinha. Em “Bel” não há teatro. Aliás, das 13 cidades da Baixada só há palco em três municípios – Meriti, Nova Iguaçu e Duque de Caxias.
Perguntamos à atriz como é olhar para aquele lugar que a fundamentou enquanto pessoa e ela diz: “Hoje eu moro em São Paulo, mas a Baixada Fluminense foi e é a minha realidade. Meus amigos e familiares são de lá, que é um lugar onde eu sempre visito. Eu faço parte da Baixada, ainda que eu vá para outro estado ou país. O meu umbigo está enterrado ali, em Nova Iguaçu e na Prata [em Belford Roxo]”.
De fato, a história da sua vida dialoga com os personagens e com aquele território. Ela lembra que o dono de uma banca de jornal de sua antiga casa guardava os recortes de jornal nos quais ela ganhava destaque e dispunha-os na banca que fica no Caminho do Manhoso, principal via da Prata. Seu Carlinhos a via sair de casa às 3h para pegar um ônibus que a permitisse chegar pontualmente nos compromissos ou na Barra da Tijuca ou na Zona Sul do Rio – Distante em mais de 40 Km do ponto de partida. Quando ainda assinava Elidiane Ferreira, a hoje atriz começou a vencer concursos de beleza. Foi coroada Miss Belford Roxo e quase credenciou-se a ser Miss Rio de Janeiro.
Segundo Eli, os concursos de miss fazem parte de “um recorte que, embora não seja de muitos anos atrás, é de uma época em que não havia uma grande diversidade de produtos para cabelos crespos, por exemplo. O último concurso que estive foi em 2011 e foi ótimo por que me abriu portas, já que eu não tinha nem acesso a cursos [de teatro]. Numa ocsião, fui convidada a fazer um casting e não tinha dinheiro. Quem me emprestou foi, justamente, o Seu Carlinhos da banca de jornal. Fui aprovada e fiz a minha primeira grande campanha”.
A propaganda, de um refrigerante, ficou exposta no principal shopping de Nova Iguaçu. Era comum que os amigos dissessem tê-la visto no centro comercial. Uma das fotos que mais a emociona, assim como a lembrança que mais a toca, é a de haver visto a si própria, junto com a mãe, no maior centro de compras da cidade iguaçuana. Enquanto Eli via naquela foto a possibilidade de ganhar o mundo, sua mãe era mais conservadora: “A perspectiva da minha mãe talvez fosse de que eu terminasse o Ensino Médio, me inscrevesse para ser caixa de supermercado ali na Prata e morasse perto de casa”.
Minha mãe sempre torceu muito por mim, mas sempre teve os pés no chão, como toda mãe preta, que teme que estejamos sonhando alto demais. Ela ficava feliz, porém temerosa – Eli Ferreira
A atriz segue dizendo: “É claro que isso está ligado à nossa auto estima, de que a gente não vai conseguir especialmente diante do fato de não haver ninguém (…) que conhecêssemos que fosse desse lugar do teatro. Foi uma luta muito grande e tenho a certeza que Deus esteve nesse lugar para me ajudar acreditar nas minhas virtudes, já que não havia nada que me fizesse acreditar que era possível”.
Ela lembra que voltar à sua cidade tem importância também por conta de fazê-la ver que “o que eu posso levar de lá e o que posso deixar lá. E, nesse momento, o que eu posso deixar lá é o medo que eu sentia de não dar certo. E o acreditar em mim deve-se muito a ter Deus na minha vida”. No caso da atriz, a expressão “Deus é pai” não é figura de linguagem. Ela faz parte das tantas pessoas que nasceram sem ser registradas no nome do pai. Segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), em 2021 53,9 mil crianças não tiveram o pai reconhecido na certidão de nascimento.
Seguindo esta linha, Eli é grata a Deus, o Pai. “Foi muito Deus na minha vida. Eu não tinha muito em quem me espelhar. (…) Daí a importância de a gente se reconhecer e saber de onde a gente veio. É importante que saibamos que é possível haver alguém que pôde sair daqui [da Baixada]. Se eu tenho a oportunidade de falar das minhas raízes, eu vou falar para que as pessoas possam se olhar e reconhecer essa luta. Por mais que eu ainda queira muita coisa parece ainda haver muito a ser conquistado. Quando eu olho para trás identifico que já caminhei muito. A minha existência, inclusive, enquanto mulher preta, retinta e da Baixada interpassa por tudo isso. Gosto de falar de questões afirmativas, mas não quero ficar sempre restritas às chamadas raciais. Há tanto mais para falar, como haver sido aprovada em primeiro lugar na Escola de Teatro Martins Pena, falar de arte, do meu trabalho”, pondera.
TEMPO DE AMAR: A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE ‘LER’
A primeira novela inteira de Eli Ferreira na Globo foi “Tempo de Amar”, de Alcides Nogueira. Nesta, viveria uma personagem inicialmente inexpressiva, quando então o autor procurou pela atriz após uma cena. Numa conversa informal com o escritor, a moça confidenciou de que uma pessoa próxima a ela não era alfabetizada e que isso a constrangia. Diante da beleza do fato, Alcides inseriu o tema da alfabetização na trama. A personagem de Eli, Tiana, revelou-se também iletrada e passou a ter aulas de leitura com Emília, vivida por Françoise Fourton (1957-2022). Tiana cresceu em importância de modo que a sua intérprete foi convidada a participar pela primeira vez a ir ao “Encontro”. E não apenas ela. Sua mãe, Jerusa, também se fizera presente, pois, como a personagem, concluiu os estudos já adulta. Eli orgulha-se da personagem especialmente por ela dialogar muito consigo e ser uma de suas primeiras vitórias profissionais. Tanto que Tiana termina a novela como professora, justamente das Classes de Alfabetização.
A bela parceria com Alcides a fez desejar trabalhar de novo com o autor, a quem classifica como incrível. Já o autor disse-nos, numa fala exclusiva, que “Eli é uma grande atriz, a quem tenho grande admiração. Creio ser ela não apenas uma atriz talentosa, mas aplicada, dedicada ao trabalho. Trabalhar com ela foi um sonho”.
Para a atriz, o olhar para Belford Roxo tem um lugar de importância, pois ali reconhece as cores que ilustraram sua vida, embora saiba que há muito mais aquarelas para além do Caminho do Manhoso – principal via do bairro da Prata. E àqueles que perguntarem se é “só” Eli Ferreira ela pode dizer que não é “só isso”, mas que é “isso tudo”.
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