*por Vítor Antunes
Série que ocupou o top10 da Netflix no início de janeiro, “Olhar Indiscreto” é protagonizada por Débora Nascimento e Nikolas Antunes e vem repercutindo não apenas por seu roteiro mais ousado, mas também pelas cenas mais sensuais, reflexo dos projetos bem sucedidos no segmento, como “Verdades Secretas II” (Globoplay). Depois de viver uma heroína romântica na Record e uma moça sonhadora na Globo, em “Bom Sucesso”, Gabriela Moreyra faz, pela primeira vez, um produto mais arrojado, que inclusive recaiu na necessidade da gravação de cenas de nudez. Em razão do maior volume de cenas com esse perfil, os produtores lançaram mão de uma Diretora de Intimidade, o que foi importantíssimo para tornar o set menos hostil, especialmente às moças. A violência sexual é elemento muito presente no audiovisual. Tanto que já há, inclusive, estudos que o tratam por “estupro como recurso narrativo”. Gabriela diz que é chegada a hora de questionar o uso indiscriminado do crime como forma de movimentar as tramas: “Muitas narrativas utilizam isso como forma de gancho para trazer uma reviravolta “boa”. Não tem nada de positivo num ato cruel como esse”.
Além de “Olhar Indiscreto“, “Gabi” estará no filme infanto-juvenil do fenômeno das redes sociais Luccas Neto. Em “Os Aventureiros – A Origem“, interpreta Catarina, guerreira de uma outra dimensão. O longa tem previsão de estreia para julho desse ano.
SENSUALIDADE LIVRE
São recorrentes as falas das atrizes que compuseram o elenco de “Olhar Indiscreto”, que esta é uma obra na qual a sensualidade feminina é respeitada, livre do “olhar masculino viciado em pornografia. (Trata-se de) um olhar feminino sobre o desejo”, como disse uma das protagonistas Emanuelle Araújo ao Estadão. Gabriela Moreyra reitera esta perspectiva quando diz que havia uma preocupação da equipe técnica, especialmente da diretora, Luciana Oliveira, em cuidar da exposição dos atores. “Tivemos ensaios em dias diferenciados para tais cenas. Sabíamos exatamente o que seria feito e conversávamos sobre o que nos deixava desconfortável, do que era ok, e aprendemos juntos com nossos parceiros de cena a desenvolver ainda mais a sensibilidade e a empatia com o outro naquele momento. Tudo em comum acordo com nossa diretora de intimidade e a diretora que estaria presente no set. O espaço também era super respeitoso com colegas de trabalho, que eram carinhosos, e sabiam o tamanho da exposição daquelas cenas”.
Foi a primeira vez que eu tive uma cena de nudez e estava apreensiva, por conta do ineditismo. O trabalho da Barbara Harrington, a diretora de intimidade, fez toda a diferença – Gabriela Moreyra
A prerrogativa do cuidado, especialmente no que tange ao corpo feminino, nem sempre aconteceu. Somente 41 anos depois do lançamento de “Último Tango em Paris”, Maria Schneider (1952-2011) sentiu-se fortalecida para relatar que fora violentada no set do longa, pelo ator Marlon Brando (1924-2004) com consentimento do diretor Bernardo Bertolucci (1948-2018). Foi de conhecimento público em algumas novelas brasileiras, situações semelhantes como de nudez forçada e/ou sem consentimento, bem como cenas de violência sexual avisadas na hora da gravação e outros assédios, inclusive morais. A existência de uma Diretora de Intimidade voltada exclusivamente para este fim, revela-se como um avanço nesse sentido.
Ainda na temática da violência sexual, há estudos acadêmicos recentes que apontam estar havendo um uso deste expediente como “recurso narrativo”, como forma de promover um turning point na história que está sendo contada. Segundo Moreyra, “está mais do que na hora de entendermos que o estupro é um ato de violência, que traumatiza pessoas ao longo de suas vidas, causando danos muitas vezes irreparáveis. Não dá mais para romantizar, simplesmente não dá. Muitas narrativas utilizam isso como forma de gancho para trazer uma reviravolta “boa”. Não tem nada de positivo num ato cruel como esse. E nunca terá”, dispara.
LIBERDADE PARA SORRIR
Ainda que seja uma mulher ciente de sua força e de seu posicionamento, Gabriela é a prova do velho dito popular que diz “quem sai aos seus não degenera”. A moça é bisneta de Eugênia Moreyra, pioneira do feminismo, uma das sufragistas e voz ativa da causa feminina no início do Século XX, além de ser uma das primeiras jornalistas no Brasil. O que a faz orgulhar e sentir vontade de voltar no tempo apenas para ter um contato mais aproximado com essa mulher icônica. “Gostaria de ter conversado com ela, quem sabe fumado umas cigarrilhas juntas”, diverte-se. E prossegue: “Minha mãe conta que ela usava roupas como calças de alfaiataria com cortes masculinos. Foi a primeira jornalista no Brasil, corajosa e à frente do seu tempo. Eu sou feminista há anos e sem saber. Foi quando comecei a ler mais, estudar, trocar com outras mulheres, e também me perceber na sociedade. E este é um caminho sem volta, o de reconhecer seus direitos, saber quando está sendo invadida e não querer mais passar por situações constrangedoras abaixando o rosto e saindo calada”.
“Quando era um pouco mais nova me diziam ‘você fala alto demais. Meninos não gostam de mulheres assim…’ Na época, eu caí nessa. Hoje, dou risada dessa história e, de preferência, uma risada bem alta de boca aberta virando a cabeça para trás, como ela naturalmente é – Gabriela Moreyra
Outro ponto de pioneirismo diz respeito às novelas. Moreyra foi a primeira negra a protagonizar um folhetim da RecordTV, especialmente quando observada a gestão Edir Macedo, entre 1989 e a atualidade. Perguntamos à atriz se em algum momento esse simbolismo assustou-a e a que atribui a demora da TV brasileira a trazer protagonistas pretas em suas novelas. Sob a ótica da artista, “foi muito importante haver protagonizado a trama. Até então, eu não me enxergava como mulher preta, e nem branca, não entendia lugares, e questionava sempre situações. Quando eu encontrei a Juliana, minha personagem, uma das primeiras entrevistas que fiz foi com meu pai, um homem negro que até então não tinha conversado comigo sobre isso. Foi daí que entendi: era a própria sociedade querendo apagar a própria História, a nossa História. Foi um dia muito especial de muitas revelações. Eu só me assustei depois que entendi a proporção da responsabilidade que aquela personagem estava tendo naquele momento pra mim e para tantas outras mulheres pretas. E ainda continuo aprendendo cada dia que passa e cada personagem que interpretei. Acho que essa demora é exatamente pelo reflexo da sociedade em querer anular a existência dessas mulheres, mas as coisas estão mudando. E mudando com força”, analisa.
LIBERDADE DAS PALAVRAS
Não apenas Eugênia Moreyra foi uma das importantes jornalistas a compor a família de Gabriela. Outro foi Álvaro Moreyra, um dos redatores da icônica Revista dos 20’s, a FonFon. Sandro Moreyra (1918-1987) cronista esportivo, é seu avô e ela é prima das jornalistas Eugênia e Sandra Moreyra (1954-2015). Esta última imprimiu uma linguagem bem carioca ao telejornalismo e seus textos tornaram-se famosos pela poesia com a qual eram redigidos. Além disso, afamou-se por ser uma entusiasta do carnaval carioca e ter uma voz marcante. “Gabi” fala sobre como foi estar intimamente ligada a esses jornalistas tão simbólicos. “Quem mais conviveu com a Sandra – carinhosamente chamada de tia, apesar de sermos primas – foi a minha mãe, Valeria Moreyra. Inclusive, elas são muito parecidas fisicamente. Uma vez na rua perguntaram se ela tinha algum parentesco com a Sandra. A semelhança era bem grande. Lembro muito também no centenário de falecimento da Eugênia Moreyra, minha bisa, produzido pela Escola de Dança Valeria Moreyra. Tia Sandra emprestou sua voz marcante a um dos textos em homenagem a ela”.
Criada em meio às palavras e diante de uma relação íntima com o feminismo, até mesmo os livros são em profusão. Gabriela Moreyra tem três livros de cabeceira: “Cara sei maschilista“, da Karen Ricci, “um presente das brasileiras que moram na Itália e criaram um podcast em italiano trazendo esse tema e muitos outros do universo feminino”; a biografia da Ingrid Silva – bailarina brasileira que se apresenta com o Dance Theatre of Harlem, de Nova York – “A sapatilha que mudou meu mundo“; e “um que já finalizei, e recomendo aos que amam livros de suspense como eu é o “Suicidas”, do Raphael Montes, que além de ser um carioca da gema trazendo à literatura todo esse suingue do Rio, tem uma escrita incrível que te amarra do início ao fim e te faz tremer dos pés à cabeça”. Oswald de Andrade (1890-1854) no poema que dedicou à Eugênia Moreyra, diz que “sentimento é tudo na vida”. Qual lugar melhor para abriga-los senão num livro? – e ela fala de três. Com todo som, na boca nas palavras. Na risada aberta, de cabeça pra trás, num outro tom e nas sílabas caladas. Para desnudar, derreter, descolar e para viver, Gabriela é, tal como a música de Nando Reis, uma Negra Livre.
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