*por Vítor Antunes
Desde o seu lançamento, o documentário “Pra Sempre Paquitas” segue repercutindo pelas histórias graves e sérias vividas pelas meninas. Uma delas, a da última geração de Paquitas, era Stephanie Lourenço, que se descobriu LGBT ainda durante sua passagem como assistente de palco da Xuxa, bem como sendo parte da geração que viveu a fase final do cargo. A atriz relata que este retorno àquela fase da vida “está sendo muito gostoso porque as pessoas estão mergulhando nessa nostalgia. É uma coisa muito gostosa e gratificante e que me faz muito feliz saber que eu fiz parte da história dessas pessoas”. Ela, porém, destaca toda a situação problemática na qual as assistentes de palco viviam. “O documentário aborda questões muito importantes como abuso moral de meninas muito novas, a fetichização e objetificação delas que viraram um personagem objetificado. Umas das questões mais sérias para mim, e abordada de maneira muito sensível no documentário, foi a questão da falta de representatividade que nosso grupo teve e que causou dor a muitas crianças e adolescentes racializadas que nunca se viram ali representadas. Era um padrão estético racista”.
Stephanie também apresenta uma outra faceta da diretora Marlene Mattos. Ainda que duramente criticada tanto no documentário da Xuxa, como no das Paquitas, Lourenço destacou um momento de acolhimento da “general”, quando ela soube do fato de a Paquita ser uma pessoa LGBT. “Lembro de uma conversa que tive com ela em razão de eu não me identificar mais com a profissão, com as danças e com os lugares de feminilidade que ser paquita exigia – e o documentário revela que a idealização da Marlene era de que as Paquitas eram umas bonecas. Eu fui me transformando, pintei o cabelo de preto – enquanto as meninas ficavam todas platinadas – cortei mais o meu cabelo também, e isso tudo por volta dos 15 anos. Me sentei com ela e pedi desculpas por não estar sendo a pessoa que ela esperava e que meus problemas pessoas [como a aceitação da bissexualidade] estavam interferindo na minha vida profissional. E ela foi muito compreensiva comigo, disse entender o que eu estava passando. E que esperava que eu soubesse lidar com isso. Já havia chegado aos seus ouvidos sobre a minha sexualidade e de uma maneira pejorativa. Marlene então destacou: ‘Se você gosta de meninos ou de meninas, se preserve e só se abra com quem você realmente confia. Ou seja, ela demostrou uma preocupação comigo, sim”
A empatia de Marlene Mattos com a menina é um dos poucos relatos que tratam sobre esse lado mais humano da diretora. Marlene nunca falou abertamente sobre sua sexualidade.
Eu vejo fotos desse último períodocomo Paquita e vejo como meu olhar está triste, como eu não estivesse ali [em razão dos conflitos sobre sexualidade] – Stephanie Lourenço
MAIS ALÉM DO DOCE MEL
No documentário “Para Sempre Paquitas“, do Globoplay, Stephanie contou de um caso que ocorreu consigo, no qual um diretor teria sido abusivo. Contudo, a atriz explica, agora com aprofundamento, que na realidade foi uma situação ainda mais complexa, envolvendo um diretor e um produtor – pessoas das quais ela não revela o nome. E ela dá declarações inéditas: “Acho que [no doc] tudo se misturou, por causa da edição. São duas informações. Teve um homem, que foi preconceituoso comigo, sim, por saber que eu era uma pessoa LGBT, que criticava a minha maneira de ser. Ele foi abusivo moralmente durante todo o meu percurso ali, como paquita. E teve o caso do produtor que, quando eu fui chamada de sapatão por alguém no camarim, ele quis abafar aquilo porque não queria a palavra sapatão ligada à palavra paquita, o que seria um escândalo”.
E Stephanie prossegue dizendo: “Teve pessoas que falaram que as meninas tinham que tomar cuidado comigo, porque eu era sapatão, recebi telefonemas anônimos em casa, que minha mãe me contou, nos quais também se referiam à sexualidade. E o que é mais bonito, que eu conversei com a Gabriela Ferreira, paquita da minha geração, e uma das meninas que me apoiou, sobre o quanto fui acolhida por elas, ainda que tivessem tão pouca idade, ao passo que os adultos que estavam em volta foram tão preconceituosos”.
Stephanie Lourenço, ao ser questionada sobre se sua experiência como Paquita teria gerado algum tipo de resistência ou preconceito por parte de produtores de elenco, compartilhou seus sentimentos: “Eu não sei. Eu sei que tem muito preconceito em relação a isso, ou teve no passado, mas não é uma coisa que me mexa comigo, porque ao decorrer dos anos eu fui criando uma confiança no meu trabalho. Eu me dedico, sou muito apaixonada pelo que eu faço, eu sei do meu valor, então se essas pessoas me reduzem a um rótulo ou algo do tipo, eu não tenho o que dizer. Acredito que talvez sejam pessoas que não tenham a sensibilidade que deveriam ter. Provavelmente pode ter causado algum tipo de resistência, mas não é uma coisa que mexa comigo, não. Eu tenho muito orgulho de falar do meu passado por ter conquistado essa confiança com os anos. Eu acho que rotular uma pessoa por causa de uma imagem ou de alguma coisa é muito superficial. É de uma falta de sensibilidade muito grande.”
Sobre a questão de privilegiar uma geração ou outra no documentário, acho que as primeiras gerações, segundo Stephanie, “elas ficaram mais tempo que a gente, elas foram construindo esse caminho até chegar ao sucesso, como elas mesmas contam. No imaginário popular elas são muito fortes, então é natural que elas ocupem a maior parte do documentário. Eu gosto muito do episódio da nossa geração 2000. Creio ser um episódio que tratou a gente com muito respeito, mostrando o quanto nós nos esforçamos. Tem crianças que crianças que cresceram com a gente, então, eu fiquei muito feliz com o nosso episódio”.
Em relação ao seu depoimento sobre os abusos que sofreu, e a sua relação com a sexualidade, Stephanie diz estar se emocionando muito. “Tenho recebido mensagens tanto carinhosas, como mais duras, de pessoas que mesmo com mais de 30 anos ainda não conseguiram se assumir como pessoas LGBT. Mas também tenho recebido hate de gente LGBTfóbica. Porém, para mim, a relevância está em tocar algumas pessoas e fazer com que elas se sintam representadas”.
FUTURO
Stephanie, ao debater sobre questões afirmativas LGBT no Brasil, expressou sua preocupação com a violência e a falta de compreensão enfrentada por essas comunidades. Ela afirma: “A gente ainda é o país que mais mata pessoas LGBT’s no mundo. Existe uma onda conservadora, religiosa, que torna tudo mais assustador, e eu acho que a gente tem que dar uma atenção especial na sigla para a letra T, porque as pessoas trans são as pessoas que mais sofrem com isso tudo, na minha visão. Não que as outras letras da sigla não sofram, mas eu acho que as pessoas trans são as maiores vítimas disso tudo. O bissexual ainda é visto como indeciso sim, eu acho que muitas pessoas que são monossexuais, pessoas heterossexuais ou homossexuais que se atraem por um gênero, muitas vezes não compreendem pessoas que se atraem por todos os gêneros, como pessoas bissexuais. Porque o bissexual não é binário. Isso está só ali, na palavra, mas não é uma coisa binária. A gente se atrai por todos os gêneros. O bissexual é visto sim como indeciso, porque eu acho que é uma coisa que muita gente tem dificuldade para compreender, tanto dentro da sigla quanto fora da sigla. Então são assuntos aí que precisam ser abordados”. Ela destaca a gravidade da violência contra a comunidade trans e a incompreensão enfrentada pelos bissexuais, que ainda são vistos de forma estigmatizada por muitos.
Sobre seu documentário em produção, que retrata sobreviventes da Segunda Guerra, Stephanie compartilha detalhes importantes do projeto: “Além dos sobreviventes do holocausto, entrevistamos pessoas sobreviventes da bomba atômica. Então, a previsão de lançamento não tem, ele ainda está sendo produzido, porque cinema no Brasil é muito difícil de fazer, e o diretor vai fazer ainda uma visita em um campo de concentração. Ele tem uma ideia de colocar uma parte de ficção dentro do filme. Então, está nesse período ainda de produção. Então, ainda não tem previsão de lançamento, mas já foi produzido grande parte do filme. Todas as entrevistas com os sobreviventes, dois deles inclusive nos deixaram nos últimos anos. Um era sobrevivente do holocausto e outro, da bomba atômica e faleceram durante o processo de realização do filme. São pessoas que têm histórias muito tristes, mas que deixaram legado aí pra gente aprender”. Ela menciona as dificuldades de produzir cinema no Brasil e destaca a importância de preservar as memórias daqueles que sobreviveram a eventos históricos devastadores.
Quanto ao ativismo da causa animal e a seriedade do debate sobre veganismo, Stephanie traz uma visão profunda sobre o movimento: “Uma coisa é o movimento político, que é o veganismo. O veganismo luta por muitas coisas. O especismo, que é o preconceito contra espécies, é uma delas. Para você chegar a pedir uma igualdade entre as espécies, você tem que ser antirracista, você tem que lutar contra o machismo, você tem que ser pró-causa LGBT. Muitas pessoas confundem, acham que pessoas veganas não gostam de pessoas quando é o contrário. Inclusive, o veganismo aborda muitas questões. Desde como é produzida a alimentação, como é feito a agricultura. Ele fala muito sobre não ser uma coisa latifundiária, questiona muito a indústria farmacêutica, a indústria da moda, o consumo. Então, são muitas camadas para se chegar no veganismo que eu sigo de verdade. Então, eu acho que as pessoas que criticamou acham frescura ou algo do tipo, porque elas não entendem a profundidade que é esse movimento, que é o que me encanta nele, o que me faz eu me identificar. O veganismo, afinal, ele discute um movimento político”. Ela sublinha que o veganismo vai muito além da dieta, conectando-se a várias causas sociais e políticas, como antirracismo e o combate ao machismo, e que o movimento enfrenta resistência por ser incompreendido em sua profundidade.
A trajetória de Stephanie Lourenço se desdobra em camadas, como as várias facetas que ela traz à tona. Seja como Paquita em um momento de transição, enfrentando os estigmas e as barreiras da aceitação, ou como ativista em causas fundamentais como os direitos LGBT e o veganismo, Stephanie revela uma sensibilidade que transcende os papéis que o público um dia lhe impôs. Suas vivências denunciam as violências veladas – desde os abusos morais sofridos na juventude até o preconceito que ainda insiste em manchar seu caminho – e, ao mesmo tempo, sua força em resistir, em transformar dor em luta e em provocar o debate sobre aquilo que realmente importa.
O resgate nostálgico de “Pra Sempre Paquitas” é, para ela, mais que uma memória; é uma oportunidade de revisitar a história com um olhar crítico, de reconhecer as injustiças sofridas, mas também de celebrar a coragem de se manter fiel a si mesma. Nas entrelinhas, Stephanie revela não só suas feridas, mas sua capacidade de se reconectar com a menina que foi, à medida que constrói, com orgulho, a mulher e a artista que é hoje. Como o vento que carrega o passado em direção ao futuro, suas palavras fluem, tocando e desafiando, lembrando-nos que a resistência é tão vital quanto a própria arte de existir. Seja na representação da diversidade, na denúncia das opressões ou na busca por igualdade, Stephanie não é apenas uma voz do presente, mas uma força em transformação contínua, abrindo espaços e cicatrizando feridas, enquanto planta novas sementes de esperança e empatia.
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