*por Vítor Antunes
“Ela é fã da Emilinha, não sai do César de Alencar, e grita o nome do Cauby (Cauby! Cauby!)“, dizia a música do cantor e palhaço Carequinha. Para a atual geração, talvez a frase não faça muito sentido. Emilinha Borba (1923-2005), César de Alencar (1920-1990), Cauby Peixoto (1931-2016) e o próprio Carequinha (1915-2006) foram grandes nomes. Porém, Stella Maria Rodrigues segue em cena tentando trazer de volta esse momento de ouro do rádio brasileiro, dos anos 1940 e 1950, na peça “A Rainha do Rádio – Emilinha“, que estará em cartaz em apresentação única no Teatro Claro, no Rio, dia 31/08, como forma de celebrar o centenário da eterna “Favorita da Marinha”. “Ficou uma dor, porque eu vi poucas homenagens a ela. Inclusive, cantei numa feira no Lavradio, mas eu queria ter estreado o espetáculo, que foi feito com tanto carinho. Fiquei com essa angústia de não ter podido fazer, passei o ano inteiro tentando e não consegui. Há dois meses entrei em contato com a equipe do teatro pedindo um dia para celebrar a memória de Emilinha e consegui – e o espetáculo está quase com a lotação esgotada”. Nesta nova apresentação, Stella contará com a presença da mãe do ator Paulo Gustavo (1978-2021), Déa Lúcia.
Emilinha ficou famosa, além do seu talento e de suas músicas, por conta de sua rivalidade com a cantora Marlene (1922-2014). Uma rivalidade estimulada pela mídia e pelos fãs, que parecem estar a todo tempo tentando colocar uma mulher contra a outra. As escolhidas da vez foram as ginastas Simone Biles e Rebeca Andrade. Para Stella, não se trata apenas em colocar mulheres em oposição, mas sobre polarizar. E relembra como foi edificado esse confronto entre as cantoras. “Em 1949, no concurso das Rainhas do Rádio, Emilinha estava inscrita, e era um concurso popular. Ela estava na frente, mas uma cervejaria comprou votos para Marlene, que ainda era jovem e não tão conhecida. Isso não caiu bem para o fã-clube da Emilinha, que ficou revoltado. Emilinha também não achou legal e decidiu desistir. Foi uma situação de compra de votos mesmo. A cervejaria queria que a Rainha do Rádio fosse a garota-propaganda do Guaraná Caçula. Os fãs da Emilinha estavam certos de que ela seria coroada, e começaram uma briga que foi fomentada pela mídia, que começou a criar notícias falsas e fomentou essa rivalidade. Os fãs de Emilinha e Marlene brigavam de verdade, de pancadaria na porta da Rádio Nacional. Então, quando vemos Simone e Rebeca juntas, se confraternizando, é claro que elas estão jogando um jogo, mas isso não significa que têm que ser inimigas. Mesmo assim, essa rivalidade ainda é fomentada, ainda existe”.
COM JEITO VAI!
“Enquanto houver carnaval neste haverá Emilinha Borba”, disse a cantora. Sem dúvida, a cantora que deu voz à “Chiquita Bacana“, a “Tomara que Chova” e a “Com Jeito Vai“, permenecem na memória de qualquer um que seja minimante ligado em música. E é este o registro no qual Stella Maria Rodrigues quer tocar. “Emilinha e Marlene eram diferentes, mas também muito similares. Emilinha era mais delicada, cantava boleros, era a rainha, a princesa. Marlene era mais teatral, cantava músicas populares, tinha um corpo mais atlético. Na vida real, Emilinha era mais divertida, desbocada, enquanto Marlene era mais reservada. Marlene até escreveu no livro da Emilinha uma coisa linda: ‘Continue com sua força de cantar. Da sua amiga Marlene’. Elas brigavam, mas também tomavam café juntas, mas não podiam se apresentar em dupla porque dava confusão. O auditório chegava a ser dividido ao meio com um vidro, e os fãs de uma vaiavam a outra”
Quando a peça foi montada pela primeira vez, Emilinha já havia falecido e tanto Stella como Solange Badim (1964-2017), que vivia a cantora Marlene, na primeira montagem, não conheciam a homenageada viva. “Marlene foi nos ver de cadeira de rodas, bem fraquinha, assistir ao espetáculo e foi numa gravação no teatro. Eu lembro dela descobrindo o palco e me olhando, como se estivesse me sentindo. O teatro lotado. Ela olhou para mim e disse: ‘É igualzinha a ela.’ Eu vi no olho dela que estava, talvez, voltando no tempo, como se revivesse sua vida no palco”. Anteriormente, a montagem homenageava as duas cantoras que eram interpretadas por Stella e Badim. Porém, Solange morreu em 2017.
Stella salienta que fazer o espetáculo “vai ser bem emocionante, porque ele não fala só sobre a Emilinha, mas também sobre a história do rádio. Sobre essas cantoras, essas artistas, que eram estrelas pelo talento vocal. Demorou muito tempo para a televisão chegar, então era a voz dessas criaturas, dessas divas, que entrava na casa de cada um. Claro que havia os espetáculos e programas de auditório, eles viviam lotados. As pessoas chegavam na noite anterior para conseguir ingresso para o auditório. E nós estamos falando de uma época considerada a Era de Ouro do Rádio. Eu sinto falta de ver a memória dessas artistas sendo mais bem cuidada. Eu não vi nenhuma grande homenagem à Emilinha. As pessoas não sabem mais quem ela é”. Muito da memória de Emilinha é mantido num museu particular, no bairro da Penha, no Rio de Janeiro, que construiu dois cômodos grandes no fundo da casa, com armários cheios de faixas de rainha, roupas originais do rádio, capas de revistas, matérias… Tudo sobre Emilinha.
Exímia cantora que é, Stella avalia o atual momento da música brasileira, de grande pasteurização e pouca identidade. “Eu acho que é tudo cíclico. Se pegarmos os grandes movimentos da história, depois da Idade Média, que foi um período escuro, tudo na arte era sombrio, refletindo a sociedade da época. Depois veio o Renascimento, e a pintura ficou colorida, as artes acompanharam um período de luz. Se você olhar os movimentos musicais da Era de Ouro do rádio, por exemplo, tínhamos a geração que tocava os grandes clássicos da MPB e depois vieram os sucessos da Jovem Guarda. Muitos artistas hoje se voltaram para um mercado mais comercial, mas a boa música, aquela que marca gerações, sempre encontra um jeito de sobreviver”, pondera. Além da montagem de “Emilinha”, Stella pode ser vista na direção de “Rei do Rock”, sobre a vida do Elvis Presley, que deve ser reencenado ainda neste semestre.
NÃO SE REFESTELA, ZILÁ!
Uma das primeiras novelas em que Stella Maria Rodrigues teve destaque foi “Por Amor“, de 1997, na qual ela vivia a empregada Zilá, funcionária da indefectível Branca Letícia de Barros Motta (Susana Vieira). “Eu tinha um pouco de nervoso de ver aquela novela, porque a Zilá, tadinha, era muito desdenhada. Especialmente naquela época, empregada era praticamente uma figuração, elenco de apoio, então era preciso se esforçar muito. Era difícil estar presente em cena, em uma cena que não tinha nada de especial para o meu personagem. Os capítulos chegavam com muito pouca fala no começo, mas eu estava em muita ação. A marca era pautada na fala do outro ator. Daí eu comecei a fazer um exercício de estar presente. Se a cena fosse boa, e eu não sabia exatamente onde estava a câmera, eu passava a atuar a todo tempo [e a câmera me pegava]. Às vezes, o texto primoroso do Manoel Carlos, deixava apenas a minha personagem e a da Branca em cena. E a Susana dizia ‘Não é, Zilá?‘. Isso me trazia à cena. Generosidade da Susana”.
Ainda sobre o encontro com a diva Susana Vieira, Stella diz que ele foi fundamental para que a personagem ganhasse uma sobrevida na trama e tivesse direito, inclusive, a um final. “A primeira vez que a gente se encontrou para gravar, lembro como se fosse hoje, era uma festa. Me apresentaram à Susana e disseram: ‘Essa aqui é a que vai fazer a empregada, a Zilá’. Suzana olhou para mim e disse: ‘Zilá. Que nome bom, né? Aí, eu vou falar muito esse nome.’ E o que aconteceu foi que eu realmente tinha muita cena. Eu acho que hoje a Branca seria cancelada”, analisa.
Em um mundo em que o tempo parece escorrer pelas mãos com a urgência das notificações incessantes, Stella Maria Rodrigues nos faz pensar sobre a velocidade com que as relações humanas foram moldadas pela tecnologia. “Sei que é muito bom ter um celular, é maravilhoso poder falar com as pessoas a qualquer momento, isso é genial, é incrível. Não acho que temos que voltar atrás, não. Acho que a tecnologia veio para nos ajudar e para seguir em frente. Mas vivemos em um tempo em que se eu não responder em dois minutos, a pessoa já pensa que a outra está chateada com ela”. Nesse questionamento, a atriz nos convida a refletir sobre a dualidade de um avanço que tanto aproxima quanto impõe distâncias, revelando as complexidades de uma comunicação instantânea que, muitas vezes, perde sua profundidade.
No terreno da atuação, Stella compartilha suas percepções sobre a entrada de novas figuras, como os influenciadores, no universo do teatro. Ela reconhece a multiplicidade de formas de expressão artística, mas sublinha a importância do estudo e da preparação, lembrando que, embora o talento natural seja valioso, a arte requer lapidação e compromisso. “Quanto ao teatro, é uma profissão como qualquer outra, mas é uma profissão que anda com a arte. A televisão trabalha com naturalismo, o cinema com a expressividade… Não sou contra ninguém não fazer teatro, mas acho que, como artista, é preciso estudar. Tem artistas que não estudaram, mas cantam incrivelmente bem. Existem pessoas que abrem a boca e cantam do nada. Não estudaram uma nota sequer, então não podemos dizer que alguém não é cantor porque não estudou. Mas, se você tem um dom, por que não aprimorá-lo com estudo, com leitura, com formação? Se você é uma influência, então por que não se aprimorar?”, questiona.
O discurso de Stella também toca nas responsabilidades que artistas e figuras públicas carregam ao se posicionarem diante de seus públicos. Ela observa a educação, não apenas como um processo formal, mas como uma ação contínua, que se estende à observação e ao exemplo que se dá para as próximas gerações. “Eu vejo isso na nossa educação. Educamos nossos filhos através da observação. Colocamo-nos politicamente, socialmente, como pessoa de influência para seus fãs. Isso é importante, é vital. Como artista, você deve se colocar da melhor maneira, com integridade, com justiça. Como você se coloca, como se dá o exemplo para as pessoas. Isso é muito importante. Durante a pandemia, tivemos que entender o teatro de uma nova maneira. Não tínhamos o teatro tradicional, e fizemos coisas online. Eu vi e fiz coisas incríveis na internet, mas não era teatro, nem cinema, nem TV. Era outra coisa, era diferente, uma nova forma de expressão.”
Por fim, em um reconhecimento da inevitabilidade da mudança, Stella destaca a resiliência da arte em se reinventar. Em meio a novas tecnologias e plataformas, a essência artística persiste, adaptando-se às ferramentas do tempo presente sem perder sua alma. “Mas a arte nunca morrerá, porque somos o espelho da sociedade, o reflexo do que vivemos. A cada novo desafio, abraçamos porque é maravilhoso ter a tecnologia ao nosso lado. Não podemos afastá-la. Um dia você abre um texto e ajusta seu trabalho com a ajuda da tecnologia, e isso se torna uma nova forma de arte”. Assim, nas palavras de Stella Maria Rodrigues, encontramos um convite à reflexão sobre a interação entre tradição e inovação, sobre o papel do artista como guardião e inovador, e sobre a arte como um espelho fiel de nossa era de paradoxos, onde a conexão instantânea convive com a necessidade de presença e profundidade.
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