*Por Flávio Di Cola
Acredita-se que em 2050, mais de 100 milhões de pessoas residentes nos países em desenvolvimento – como o Brasil – apresentarão essa enfermidade neuro-degenerativa que provoca a deterioração das atividades cerebrais, devastando a memória, a linguagem e a razão, tornando seus portadores incapazes de cuidarem de si próprios. De acordo com Annibal Truzzi, Doutor em Psiquiatria pela UFRJ e pela Universidade de Oslo e Especialista em Neuropsiquiatria Geriátrica pela UFRJ, em entrevista concedida ao HT, o aspecto mais perverso do Alzheimer é o fato de ser uma doença progressiva, irreversível e incurável, frustrando profundamente não só os parentes dos doentes, mas também médicos, cientistas e profissionais de saúde. Além disso, segundo ele, apesar dos avanços, as pesquisas para se alcançar a cura do Alzheimer esbarram numa dificuldade específica: sua causa é multifatorial na maioria dos casos, envolvendo não somente a genética, mas também outros fatores como os hábitos de vida e as condições físicas e psicológicas do doente.
Num país como os Estados Unidos, onde cinco milhões de pessoas já padecem desse mal, não é difícil entender por que o livro “Still Alice” de autoria de Lisa Genova, Doutora em Neurociência pela Universidade de Harvard, permaneceu na lista dos mais vendidos durante 40 semanas, em 2009, e depois foi traduzido para 20 idiomas em 30 países, inclusive o Brasil. Também é fácil compreender o impacto da história da personagem portadora da doença, Alice Howland, sobre o público em geral: afinal, ela é uma brilhante professora de linguística da Universidade de Harvard (trocada pela Universidade de Columbia, no filme) e que, aos 50 anos, está no apogeu da sua vida acadêmica, matrimonial e familiar. Aliás, seu amoroso marido também é um profissional de sucesso na área médico-científica. Mas todo esse poderoso círculo protetor não a poupa do destino reservado a qualquer pessoa que apresente um histórico familiar marcado pelo Mal de Alzheimer. E, então, a partir da confirmação definitiva desse diagnóstico, Alice é submetida a uma das piores experiências que podem se abater sobre um ser humano: o apagamento, dia após dia, das suas memórias e da consciência de si, numa espécie de morte em vida, que destrói junto toda a teia de afetos, conquistas e experiências acumulada durante uma vida brilhante, desconectando para sempre parentes e amigos que passam a ser meros e ameaçadores estranhos.
Fotos (Divulgação)
Os roteiristas e diretores Richard Glatzer e Wash Westmoreland – casados na vida real – procuraram ser bastante fiéis ao poderoso romance de origem, e nunca pensaram numa outra atriz que não fosse Julianne Moore para viver nas telas a crepuscular saga de Alice. Ela prontamente abraçou o projeto depois de ter encerrado as filmagens de “Mapas para as estrelas” (Maps to the stars, 2014), sob a direção de David Cronemberg cuja estreia no Brasil está prevista para a segunda quinzena de março.
Com uma filmografia pontuada por produções independentes, não seria problema para a dupla Glatzer-Westmoreland trabalhar com um orçamento de apenas cinco milhões de dólares. Além disso, eles contavam com co-produtores ligados a instituições filantrópicas de apoio aos portadores de Alzheimer que apostaram de uma forma muito pessoal nessa produção modesta que entrou na mira de interesse de um grande estúdio de Hollywood – a Sony Pictures. Foi assim que “Para sempre Alice” acabou entre os lançamentos repentinamente vazados para internet através dos hackers que atacaram os computadores da Sony em novembro do ano passado. Além disso, uma inesperada crise uniu ainda mais a equipe durante as filmagens: um dos diretores, Richard Glatzer, sofreu uma crise de esclerose lateral amiotrófica (ALS, na sigla em inglês) e precisou continuar co-dirigindo através de recursos computacionais de som, texto e imagem diretamente do hospital. Todo esse sacrifício valeu a pena: em setembro do ano passado, o filme foi ovacionado no Festival de Toronto e, desde então, já arrecadou quase três vezes o seu custo, apesar da pirataria.
É claro que o maior fator para o triunfo de “Para sempre Alice” deve ser creditado a Julianne Moore que – literalmente – está presente em todas as cenas, já que o filme está focado em como sua personagem recebe e lida com cada golpe que recebe durante o seu caminho inexorável rumo às trevas da desmemória e de uma vida vegetativa. Para manter essa vigilância permanente da câmera sobre Alice os diretores empregaram criativas técnicas na fotografia (foco-e-desfoco), na edição e no desenho de som.
Julianne Moore agarrando seu merecido Oscar por “Para sempre Alice” confessa: “Certa vez eu li que os vencedores do Oscar ganham mais 5 anos de vida. Só por isso, eu tenho que agradecer a Academia, até porque tenho um marido mais jovem do que eu!” (Reprodução)
Nesse percurso, o roteiro incorporou com milimétrico equilíbrio o papel de cada integrante da elegante e afluente família tipicamente nova-iorquina de Alice: o marido dedicado (um Alec Baldwin perfeito em sua contenção) que, mesmo assim, não renuncia aos seus projetos individuais; o filho amoroso, mas frágil (Hunter Parrish), e as filhas – Lydia (Kristen Stewart) e Anna (Kate Bosworth) – que representam as duas possibilidades opostas do arco afetivo e existencial de Alice neste momento crucial da sua vida. Se Anna é a bem casada, a bem empregada e a geradora dos futuros netinhos da família, por outro lado é o retrato do convencionalismo mais superficial e que – ao dar à luz aos seus gêmeos – precisa agora olhar para o futuro, e não para a mãe que se apaga. Se Lydia é a aspirante a atriz fracassada, emocionalmente turbulenta e que escolheu o tipo de vida errático da Califórnia, também é a única que se revelará – de fato – preparada para acompanhar a mãe até além do limiar da escuridão. As cenas em que Julianne Moore atua apenas ao lado de Kristen Stewart talvez estejam entre as mais belas e tocantes do cinema, em tempos recentes, na sua capacidade de nos fazer vislumbrar o grau de amor e compaixão que pode brotar entre uma mãe e uma filha, como na arrasadora sequência final.
Trailer ofiicial (Divulgação)
Hollywood e o Alzheimer: doença não escolhe vítimas e pode atingir desde meros mortais à fina flor do olimpo cinematográfico, da inesquecível Gilda (Rita Hayworth) ao herói que mais salvou a humanidade nas telas, Charlton Heston. Confira:
Aliás, antes de embarcar no projeto de “Para sempre Alice”, Kristen vinha de uma desafiadora experiência artística muito parecida com esta: enfrentou ombro a ombro outro “monstro sagrado” da interpretação, Juliette Binoche, no igualmente belo e poético “Acima das nuvens” (Clouds of Sils Maria, 2014, dirigido por Olivier Assayas) em que realizou a proeza de ser a primeira atriz não francesa a receber um Prêmio César de interpretação feminina.
Posto isto, ainda sobram alguns elogios para uma equipe afinadíssima no objetivo de construir um filme “que em nenhum momento resvala para o sentimentalismo fácil, mantendo-se sempre fiel à tarefa de narrar com comedimento uma história que poderia ser mais uma entre tantos melodramas médicos ao gosto do público médio norte-americano”, como observou o psiquiatra José Roberto Abbês, logo após a projeção do filme em seção especial. Desde a fotografia sutilmente luminosa de Denis Lenoir, passando pelo elegante desenho de produção de Tommaso Ortino, até as notas melancólicas todas em cordas da trilha assinada por Ilan Eshkeri, enfim, cada elemento componente do filmeestá ali para envolver e comprometer o público com emoção e inteligência. “Para sempre Alice” não é simplesmente um filme, mas um belo e essencial presente do cinema para todos nós, pois um dia inevitavelmente enfrentaremos a nossa própria extinção.
Trailer de “Longe dela” (Divulgação)
Saiba mais sobre Alzheimer: entrevistas com o Dr. Annibal Truzzi, membro do Comitê Científico da APAZ-Associação de Parentes e Amigos de Pessoas com Alzheimer ( http://www.apaz.org.br/ ), e de Maria Aparecida Albuquerque Guimarães, presidente da instituição, fundada em 1991, para a Rede Record:
* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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