*Por Brunna Condini
Ele faz cinema como expressão de arte e resistência. E é neste espírito que Bukassa Kabengele protagoniza o filme “Atrás da Sombra”, que teve estreia nacional este mês nas plataformas digitais Net Now, Vivo Play, Oi Play e Looke, e no Canal Brasil. Se não fosse a pandemia do novo coronavírus, o filme estaria em mais de 20 salas de cinema nas principais capitais do país. O ator vem sendo um dos responsáveis por liderar o time representativo do protagonismo negro no audiovisual, já que ainda este ano também integra o elenco de “Pacified” (“Pacificado”), longa do norte-americano Paxton Winters, no qual Bukassa dá vida a um ex-presidiário que busca retomar o contato com a filha. Pelo filme, o ator recebeu o prêmio de Melhor Ator (2019) no Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha.
“Com esses dois protagonistas tive a liberdade de opinar como intérprete. Os prêmios também resultam disso. Quando fiz a série ‘Liberdade, Liberdade’ , na Globo em 2016, eu sugeri que meu personagem tivesse um sotaque angolano, o que agradou no resultado e ainda trouxe um novo olhar sobre o negro nas tramas”, ressalta o ator, que nasceu na Bélgica, mas tem nacionalidade congolesa e é naturalizado brasileiro.
Em papo com o site, Bukassa fala da importância da representatividade, da necessidade de ações para dar visibilidade e voz a artistas negros, esclarece pontos sobre posturas antirracistas e aponta caminhos de orientação. Além disso, o ator avalia sua trajetória.
Qual é a origem do seu nome? “A origem é Chiluba, uma das línguas faladas na República Democrática do Congo. É uma simbologia de poder. “Bukassa” seria um leopardo, que em situação de conflito ou guerra toma a frente para proteger a tribo. Já “Kabengele”, significa duro como uma rocha, ou seja, difícil de destruir. E ironicamente eu já descobri que sou Oxóssi no Brasil”.
Aos 50 anos, sendo 30 deles dedicados à vida profissional, ele avalia o avanço do protagonismo negro no audiovisual nos últimos anos. “Infelizmente estamos ainda um pouco longe da representatividade aceitável com protagonistas negros, sejam homens, mulheres ou crianças no mercado audiovisual. Caminhamos, mas mudou pouco, ao meu ver”, lamenta. “Tivemos alguns avanços por parte de novos cineastas homens e mulheres negros – muitos premiados, por sinal – que deram continuidade a antigas lutas de mestres como Abdias do Nascimento, Zózimo Bulbul, Antonio Pitanga, entre outros. Vemos uma nova geração trazendo narrativas e olhares que entendem e contemplam o negro na sociedade brasileira através da arte. Mas ainda assim é muito pouco perto das grandes produções, com grandes orçamentos e impacto de massa dentro da mídia. Falta uma reparação no sistema de funcionamento do setor criativo em seus lugares de poder para que sejam acessados de forma mais equânime pelos profissionais negros do ramo do audiovisual, sejam diretores, roteiristas, produtores executivos ou atores”.
Protagonistas em lados opostos
O ator celebra a possibilidade de viver dois personagens tão diversos em menos de um ano. No thriller policial dirigido pelo goiano Thiago Camargo, “Atrás da Sombra”, ele vive Jorge, um ex-policial, detetive de Goiânia que ganha a vida desvendando crimes que a polícia local não tem interesse ou capacidade de resolver. Bukassa conta que a preparação foi um verdadeiro mergulho de dois meses no personagem. “Trabalhei diariamente com todos os atores, de todos os núcleos, entre exercícios físicos, reflexivos e de pesquisas, e escrevi background da vida de Jorge. Foi um jeito de eu preencher e dar sentido e muitas passagens não explicadas no roteiro, que é misterioso e místico, tentando criar um passado e memórias atreladas a sua vida como detetive, e seus conflitos internos e pesadelos com o desconhecido durante o filme”.
E revela algumas curiosidades. “Esse personagem fuma muito, e eu não fumo. Um trabalho difícil, minha única exigência foi me trazerem um cigarro sem nicotina, próprio para cinema, com os quais passei a treinar e observar diariamente fumantes. Criei cacos de manuseio do isqueiro para dar naturalidade e personalidade ao personagem. Foi muito cansativo, porém valeu muito a pena, pois o filme tem muitos silêncios e precisamos, nessas horas, ter motivações internas e elementos para preencher a alma do personagem e mantê-lo vivo nas cenas”, detalha.
Ele também diz que tal qual o personagem gosta de observar a vida alheia. A preparação para ser um detetive aguçou esse hábito? “De alguma maneira um ator é sempre um investigador. Observamos e tentamos extrair o máximo possível dos comportamentos humanos para recriar e dar vida aos personagens. Sou curioso em relação a como as pessoas se comportam diante de diversas situações na vida. Imagine você comendo um sanduíche em um bar, e um estranho te olhando fixo do outro lado da rua, meio stalker (risos)? Só que antes de chamar a polícia, saiba que pode ser eu estudando (risos). Isso faz parte, temos que observar e ser meio “loucos”, no sentido de nos abrirmos para as emoções aflorarem”.
Bukassa foi o primeiro negro brasileiro premiado como Melhor Ator no Festival de Cinema de San Sebastian, pelo filme“Paciefed” (“Pacificado”). Na trama, Tati, uma introspectiva garota de 13 anos, tenta se conectar com seu pai, Jaca, depois que ele é libertado da prisão. Por que acha que esse personagem tocou tanto as pessoas? “Para viver o Jaca fui entender os olhares humanos de pessoas que sofrem por não terem paz de espírito. Investi em achar caminhos que humanizassem o personagem. Caminhos da simplicidade que são universais: alguém cansado da solidão, e de ser “super-herói” no sentido de responder pela vida de todos, menos a dele. O peso que a sociedade nos põe nas costas entre os encargos da vida nem sempre nos deixa ser livres. Trabalhei tudo isso profundamente, acredito muito ter afetado o público que se sensibiliza com esse cara cansado das cobranças da vida, mas não vê muita saída”.
Antirracismo
Todas as formas de discriminação limitam a realização da plena cidadania. Em sua trajetória, através da arte, Bukassa sempre foi um porta-voz da diversidade, do respeito e da liberdade. Ele fala do início da vida e mostra que consciência vem de berço. “Nasci em Bruxelas, na Bélgica, porque meu pai estava terminando seu mestrado em antropologia, mas nunca tive cidadania belga, porque as leis na época eram de sangue e meus pais (Sr Kabengele Munanga e Sra. Yombo Masanga) eram africanos – ou seja, mesmo nascendo lá, eu era do Congo. Com meus 2 anos, voltamos para a nossa terra, e depois de alguns anos, por conflitos políticos de um regime de ditadura, na época com presidente Mobuto Sese Seko, meu pai veio para o Brasil à convite de um amigo professor da USP para fazer seu Doutorado. Em 1980 viemos em definitivo, quando me tornei brasileiro por naturalização”.
Sempre quis ser ator? “Eu tenho impressão que minha alma sempre foi da arte, sempre foi tudo natural, não escolhi, não fiz faculdade, sempre trabalhei com entrega, seriedade, responsabilidade e apaixonado desde novo por desenho, dança, música, voz, instrumentos, atuação, palco, pelas artes. Tudo natural e não programado. Desejei a arte e ela me escolheu, simples assim. Esse caminho tem muitos desafios, mas nunca me vi de outra forma que não fosse na arte. Por mais desanimado que tenha ficado em alguns momentos, desistir nunca foi opção para mim. Não me vejo fazendo outra coisa”, afirma ele, que é proponente do Festival Pé na África há 10 anos, com o objetivo de dar visibilidade e ampliar vozes de artistas negros, e que precisa de apoiadores no momento.
Durante essa quarentena, e com os frequentes episódios de racismo e violência por aqui e no mundo, a luta antirracista ficou em destaque. Que reflexões e ações você acha que podem transformar de fato? “A pandemia não criou o racismo, esse foi produzido, reproduzido e atualizado por séculos desde os sistemas coloniais europeus com a chegada no Brasil dos negros africanos escravizados pelos brancos. A pandemia passa e fica o racismo. As mudanças devem ser feitas nos pilares públicos dos três poderes, visando mudança radical nas estruturas de educação e comunicação de massa, entre outras”, observa.
“Leva tempo e muito trabalho criar consciência e reparar danos morais, históricos e materiais de um povo vítima da violência branca. Trabalhos profundos e complexos devem ser feitos para redução do racismo nas instâncias culturais, institucionais e estruturais. Para transformar de fato, fora tudo que mencionei, o branco tem que entender que ao naturalizar seus privilégios com base no racismo ele naturaliza e valida o extermínio da população negra e indígena. Isso tem que parar. Ser antirracista é sair do discurso, entender a violência do mundo racista criado pelo branco e mudar radicalmente suas atitudes perante essa realidade, visando um mundo mais justo e igualitário para todos”.
Casado com a artista plástica Vera Rocha, e pai de Mwanza, de 13 anos, Bukassa comenta que sempre conversou com a filha sobre preconceito e empoderamento. “Nossa filha nasceu de um casamento interracial. Minha esposa é branca e portuguesa. Os assuntos racismo e feminismo sempre estiveram naturalmente em nossa casa. Ela tem consciência que é uma menina negra, e sabe que a negritude vai muito além da pigmentação da pele. Ela assume seu cabelo, às vezes, usando black power, tranças ou outras mil possibilidades afros, sempre como mulher negra. Costumo dizer que falar é importante, mas referências, exemplos e comportamentos dizem muito. Portanto, sempre procuramos ao máximo dar isso a ela. Minha esposa tem um trabalho autoral artístico de retratar mulheres negras. Acredito que a fala tem que acompanhar as ações e isso fazer parte da rotina, porque senão se tornam discursos vazios”.
Como lidar com esse sentimento de impotência diante do mundo e seus preconceitos, quando pensa na sua filha? “Acredito que ser realista e enfrentar seja o melhor caminho, mas sempre pelo olhar do afeto. Ela já vem lutando desde que nasceu, mesmo quando foi representada por mim ou pela mãe. Na maternidade, ao dar a saída do hospital, o médico quis registrá-la como branca, e eu não deixei. Ele ainda quis argumentar dizendo que era algo interno, que não constaria no RG. Mas argumentei: “O senhor é médico, deve conhecer a doença anemia falciforme, como pode omitir nos registros a origem étnica de uma criança? O senhor está sendo irresponsável e negligente ao fazer isso, não preciso de sua opinião pessoal, quero no registro quem ela é: uma menina negra”.
Desejando preservar a família, o ator prefere não publicar fotos da esposa e da filha. E nós respeitamos, Bukassa.
Na sua opinião, para quem deseja aprender sobre racismo estrutural, luta antirracista, deve ler e ouvir quem? “Aprendi muito em casa com a grande referência que tenho, sendo filho de um pai que é professor doutor e titular pela USP, entre outros vários títulos, prêmios e reconhecimentos, uma sumidade de quem muito me orgulho. Mas reforço que na história brasileira existem excelentes intelectuais negros, extremamente competentes na discussão da consciência negra e do antirracismo, e com eles aprendo e desenvolvo meus olhares reflexivos, permeados por algumas leituras e textos avulsos, mas dialogando muito e acompanhando debates. Mas não sou referência para ninguém, a consciência política é educação e escolha dentro de seu entendimento de mundo. Temos grandes portais da mídia virtual, como o Geledés, fundado pela filósofa Sueli Carneiro, um portal completo em conteúdo com informações no combate contra o racismo e a favor de lutas feministas, mas sempre englobando com muita competência as melhores fontes e tendências, bem como história e feitos da cultura negra. Além dela, temos intelectuais contemporâneos como a filosofa, professora e escritora Djamila Ribeiro, que possui livros dentre os mais vendidos. Vale também ressaltar a literatura do respeitadíssimo professor e jurista Silvio Luiz de Almeida, entre outros. É preciso ter coragem, procurar se informar e ler”.
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