*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes
Uma das mais importantes contribuições dos festivais de cinema que pipocam mundo afora – além da principal que é descortinar para o mundo os novos horizontes da cinematografia – tem sido a de se voltar para o passado da história do cinema e lá buscar valores e símbolos determinantes de sua trajetória a fim de submetê-los à apreciação do olhar contemporâneo e – conforme o caso – prestar os devidos tributos às figuras mais admiradas e queridas.
Depois de Marcelo Mastroianni, no Festival de Cannes do ano passado, eis que chega a vez de Ingrid Bergman (1915-1982) ser relembrada como uma das atrizes mais influentes da sua época, não só pelo seu legado para o cinema e o teatro, mas também pelo impacto que causou em corações e mentes desde o momento em que desembarcou em Hollywood em 1939 – já casada e com uma filha – a convite do super produtor David O. Selznick de “E o vento levou…”, passando pelo seu banimento da Meca do Cinema, em 1950, na esteira do escândalo causado pelo seu romance “ilícito” (como adoravam tripudiaras revistas da época) com o sedutor diretor Roberto Rossellini, “pai” do neorrealismo italiano, até o seu “resgate moral” em 1956, quando volta a Hollywood premiada pela Academia e “perdoada” pela comunidade cinematográfica, que tinha (e ainda tem) o hábito de expiar suas injustiças e culpas distribuindo estatuetas do prêmio Oscar.
Ingrid Bergman, mulher inteligente, nunca se iludiu com esses humores da indústria do cinema e da mídia e foi a primeira a sentenciar com saudável senso de humor o resultado de todos esses percalços: “Cheguei a Hollywood para me tornar uma santa, saí de lá como puta, e retornei de novo como santa”.
Ernest Borgnine anuncia o prêmio Oscar de Melhor Atriz de 1957 para Ingrid Bergman que enviou Cary Grant
para representà-la: mesmo premiada, ela ainda receava a hostilidade do publico americano (Reprodução)
Frases como estas e inúmeras outras reflexões da atriz estão belamente inseridas no documentário “Ingrid Bergman – In her own words” (Jag Är Ingrid, 2015), do diretor, escritor e crítico Stig Björkman, especializado em livros biográficos de gente de cinema como Ingmar Bergman, Woody Allen e Lars Von Trier. Em 2011, ele aceitou o desafio que Isabella Rossellini lhe lançou de fazer “um filme sobre mamãe”, na linguagem franca e despretensiosa da inesquecível atriz do já clássico “Veludo azul” (Blue velvet, 1986), dirigido pelo seu companheiro – na época – David Lynch. Dito e feito: com a providencial colaboração das famílias Bergman e Rossellini, Björkman teve acesso a documentos inéditos da vida privada de Ingrid, como cartas, diários e – principalmente – ao material que acabou se transformando na melhor parte do documentário: centenas de fotografias e rolos de filmes escrupulosamente guardados desde a sua infância em Estocolmo, quando posava sistematicamente para o pai Justus Bergman, ele também um fotógrafo profissional.
A influência, digamos “artística”, do pai foi determinante na vida de Ingrid, até porque sua mãe morrera quando ela tinha apenas dois anos de idade. Alguns psicanalistas de plantão poderão arriscar a hipótese de que essa poderosa identificação que Ingrid desenvolvera em relação ao pai pode ter influenciado subterraneamente o ardente romance – também “ilícito” – com um dos mais célebres e destemidos fotojornalistas do século XX, o americano de origem húngara, Robert Capa, fundador da mitológica cooperativa de fotógrafos Magnum, cujos traços viris e nada nórdicos já antecipariam os do seu outro grande amor, Roberto Rosselini.
É importante ressaltar aqui os aspectos íntimos da vida da estrela, pois é justamente a viagem profunda ao seu universo privado que garante a originalidade do documentário de Stig Björkman. Talvez, por isso, o diretor procure de uma forma insistente mostrar as páginas e as linhas dos diários de Bergman e de destacar o trabalho que ela mesma tinha para organizar, guardar e transportar os registros de vida ao longo das inúmeras mudanças de domicílio e país que foi obrigada a enfrentar para dar curso aos seus projetos, mesmo que isso acarretasse certa instabilidade e longos períodos de ausência na formação dos seus quatro filhos, como fica bem claro nos depoimentos de Pia Lindström, Roberto, Isabella e Ingrid Rossellini – os três últimos presentes na seção de homenagem e exibição de “Ingrid Bergman-In her own words”, nesta noite de terça-feira (19/5) em Cannes, além de autoridades do governo sueco.
Todavia, aspectos fundamentais da persona cinematográfica da estrela não são esquecidos, bem como algumas doses de fofocas de bastidor. Assim, é possível perceber através de preciosos trechos de filmes reunidos por Björkman que Ingrid Bergman talvez tenha sido a única estrela da era de ouro de Hollywood que não foi artificialmente manufaturada pelas competentes legiões de maquiadores, figurinistas e cinegrafistas dos estúdios. No máximo, os técnicos tinham que disfarçar a sua altura de 1,80m diante de atores muito mais baixos do que ela com quem dividia a cena, como o sedutor Charles Boyer, seu parceiro no melodrama vitoriano “À meia luz” (Gaslight, 1944, de George Cukor) que lhe rendeu seu primeiro Oscar e a conduziu ao pináculo do seu star power, ainda que já houvesse sido incensada pelos publicistas como a sueca de plantão na Fábrica de Sonhos, substituindo sua conterrânea Greta Garbo, que na mesma época abandonava as telas para se permitir o isolamento público.
Confira abaixo a atriz recebendo seu primeiro Oscar por “À meia luz” (Gaslight, 1944), clássico da cinematografia mundial (Reprodução):
Essa fidelidade à vocação de Ingrid Bergman para o natural e o sadio tipicamente nórdicos deve ser creditada não só à resistência da própria atriz, mas também à astúcia do seu produtor e amigo David O. Selznick que logo percebeu que Bergman estava predestinada a trazer para o cinema um frescor e uma autenticidade estranhos ao conceito de “glamour” dos americanos. Essa maravilhosa particularidade de Bergman ficou muito mais clara para ele quando a presenteou com um mink, afirmando que essa era uma peça indispensável para toda estrela de Hollywood que se prezasse. A sueca recusou a luxuosa prenda, pois – sensatamente – achava desnecessário um casaco de peles para o clima da Califórnia. Selznick replicou: “Você não precisa vesti-lo. Só arraste-o por aí”. Diante dessa insólita sugestão, a Ingrid Bergman só restou sustentar delicadamente a recusa com o seu riso franco e o seu olhar que parecia iluminar tudo ao seu redor, como recordou o grande produtor.
Histórias como essas não são apenas pitorescas anedotas no quadro de uma vida tão rica e complexa como a dela, mas elas ilustram – de um jeito divertido – como Ingrid Bergman manteve-se coerente em relação às suas convicções e como corajosamente aguentou todas as consequênciasdos seus atos. Além disso, também combinam com o que ela escreveu na sua autobiografia: “Renunciar ao que você é, é mais terrível do que morrer, mais terrível do que morrer jovem”.
O mais longo beijo do cinema foi dado por Ingrid Bergman e Cary Grant num Rio de Janeiro recriado em estudio
no filme “Interlúdio” (Notorious, 1946), de Alfred Hitchcock (Reprodução)
Confira abaixo a galeria de imagens da atriz (Fotos: Reprodução):
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
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