Saúde mental, sexo e críticas em plena ditadura. Odiada em 1975 e adorada hoje, novela “O Grito” volta no Globoplay


A novela “O Grito”, exibida pela Globo em 1975, retorna ao Globoplay quase 50 anos após sua primeira exibição. Conhecida por sua abordagem crítica e existencialista, a trama contempla temas controversos como homossexualidade, distúrbio mental e conflito de classes, mas foi mal recebida na época e nunca foi reexibida. Inicialmente, a série teve problemas de audiência e crítica, levando à saída de seu autor, Jorge Andrade, da Globo. Em 19 de agosto, a Globoplay disponibilizará apenas três dos 125 capítulos existentes. Apesar do fracasso inicial, a novela se tornou cultuada e é estudada em teses acadêmicas, refletindo a complexidade e relevância de sua abordagem temática.

*por Vítor Antunes

Por anos tida como uma novela problemática, a novela O Grito, de quase 50 anos atrás, estará de volta ao Globoplay. Trazendo temas polêmicos até hoje, como a homossexualidade, o distúrbio mental e o conflito de classes, a trama apresenta um perfil denso, crítico e existencialista. O Grito foi levada ao ar em 1975, sucedendo Gabriela (1975), mas, ao contrário desta, não foi bem-sucedida. A trama de Jorge Andrade (1922-1984), sua segunda na Globo, foi considerada excessivamente intelectualizada e nunca foi reexibida. No dia 19, ela entrará no catálogo da Globoplay incompleta, com apenas 3 dos 125 capítulos. Apesar de ser a trilha internacional mais vendida entre as novelas das 22h até hoje e de ter sido duramente criticada na época de sua exibição, O Grito hoje é cultuada e já foi tema inclusive de tese de doutorado. Contudo, o insucesso resultou na saída de Jorge Andrade da Globo depois dessa segunda novela na emissora. A primeira foi Os Ossos do Barão. Após essas, ele escreveu uma novela na Tupi e quatro na Band, até falecer em 1984.

Engajado em uma obra que deveria escrever por vários meses, Jorge Andrade sentia-se injustiçado pela grande quantidade de críticas que recebeu, especialmente depois do sucesso de sua primeira novela, Os Ossos do Barão. Por volta da década de 2010, quando se discutia o que fazer com o Minhocão — Viaduto Elevado Presidente João Goulart, em São Paulo — a novela voltou a ser comentada. E agora, será a primeira vez que será vista dentro do que foi mantido. Não se sabe ao certo o que foi feito com os outros capítulos da trama: se foram perdidos no incêndio que a Globo sofreu em 1976 ou se os tapes foram deliberadamente apagados como forma de economia. O questionamento ainda permanece, pois a Globo costumava manter seis capítulos das novelas que gostaria de preservar minimamente. O Grito tem metade disso. Todavia, segundo a tese de doutoramento de Sabrina Reggiani Anzuategui para a USP, os capítulos escritos da novela estão preservados tanto na Globo quanto no patrimônio da família do autor.

O Grito, novela de Jorge Andrade está de volta no Globoplay (Foto: Reprodução/Globo)

NOVELA PESADA

A trama de O Grito se passa no Edifício Paraíso, em frente ao Minhocão, em São Paulo. Inicialmente um prédio moderno, ele foi transformado em um condomínio estratificado socialmente: apartamentos de quitinetes nos andares mais térreos, apartamentos de classe média nos andares intermediários e apartamentos luxuosos e espaçosos nos andares mais elevados. O nome da novela se justifica pelo fato de o personagem Paulinho (Marcos Andreas) conviver com um transtorno mental — que hoje seria atribuído ao autismo — e que o fazia gritar durante as madrugadas. Isso incomodava os vizinhos, que se mobilizaram para tirá-lo de lá. O personagem de Rubens de Falco (1931-2008), Agenor, era gay e fazia cross-dressing, mas a Censura não se agradou disso. Jorge Andrade acabou tendo que fazê-lo se aproximar de Kátia (Yoná Magalhães [1935-2015]), que era uma sobrevivente do incêndio do Edifício Joelma (1974).

Gloria Menezes e Isabel Ribeiro em “O Grito” (Foto: Divulgação/Globo)

O Grito provocou as mais diversas reações e foi alvo de críticas muito duras. No Rio de Janeiro, moradores do edifício São Joaquim, em Ipanema, tentaram expulsar um menino com transtorno mental, Rubens de Oliveira Paes Mastabi, que, assim como Paulinho da novela, sofria de surtos em que gritava e agia com violência. A crítica Maria Helena Dutra, do Jornal do Brasil, dizia que de O Grito há “pouquíssima coisa de aproveitável. E num momento em que os problemas do homem moderno brasileiro estão longe das telas dos cinemas e dos palcos dos teatros, é lamentável que a televisão os apresente de maneira tão esquemática e primária”. Também no Jornal do Brasil, outro crítico, Paulo Maia, fez comentários bastante intensos: “‘O Grito‘, como ‘Os Ossos do Barão‘, é simplesmente uma telenovela chata e chatice não dá status cultural a texto nenhum. Por não ter ritmo, por submeter atores […] a textos escabrosamente pretensiosos. Essa novela (…) chega a comprometer o autor, na sua dimensão de artista e autor num contexto de cultura brasileira”.

O Deputado Federal Aurélio Campos (MDB-SP) falou muito mal da novela na Câmara, dizendo que Jorge Andrade promovia uma imagem errada de São Paulo, o que gerou até pedidos formais para que a novela saísse do ar, conforme Anzuategui conta em sua tese. O radialista Sérgio Bittencourt, pai de uma criança excepcional, criticava o fato de uma criança com transtornos mentais ser personagem de novela. E os problemas da trama começaram até antes de ela ir ao ar. O site Heloisa Tolipan localizou, na coluna de Zózimo Barrozo do Amaral, no Jornal do Brasil, que o Sindicato das Aeromoças entrou com uma reivindicação contra a Globo por causa de uma personagem que era aeromoça, talvez Midori (Midori Tange), ser contrabandista.

Lídia Brondi em “O Grito” (Foto: Divulgação/Globo)

A tese de doutorado sobre a novela relata que a audiência de O Grito era instabilíssima. Ou era muito elevada ou muito baixa, o que tornava difícil estabelecer uma média. Mas Artur da Távola foi um pouco mais analítico e cauteloso ao falar da novela de Jorge Andrade: “Propostas mais sérias [como essa] jamais seriam colocadas numa novela de TV. Mesmo com alguns equívocos tanto na direção quanto do autor no tocante ao ritmo e aos tempos dramáticos”. As críticas eram tantas que até Érico Veríssimo ligou para Jorge Andrade para acalmá-lo, pois Andrade era cardíaco. No entanto, ironicamente, quem morreu foi o próprio Érico Veríssimo (1905-1975).

É de se lastimar que a novela não tenha sido mantida. Especialmente por não haver muita coisa sobre Jorge Andrade preservada na televisão. Na Globo mesmo, não há nada. Da Tupi, há alguma coisa de Gaivotas, mas não se sabe quantos capítulos existem no total. A Band, já procurada pelo site Heloisa Tolipan, não informa detalhes sobre seu acervo e desmarcou uma visita ao seu arquivo. Estima-se que Ninho da Serpente, sua última novela na emissora, esteja preservada. Uma curiosidade: na época da exibição de O Grito, havia apenas três canais de TV no Rio: a Globo (canal 4), a Tupi (canal 6) e a TV Rio (canal 13). Atualmente, dessas, só a Globo continua existindo.