Sandra Bréa, atriz da versão original de ‘Elas por Elas’: restos mortais desprotegidos, jazigo desconhecido e doc.


Diva suprema e sexy dos Anos 1970 e 1980 e protagonista da primeira versão de “Elas Por Elas”, Sandra Bréa morreu há 23 anos e foi uma das primeiras atrizes a lutar contra o preconceito ao assumir publicamente em 1993 que tinha sido contaminada pelo vírus do HIV. A sua vida, plena de pioneirismos, será destacada em documentário. O pós-morte de Sandra, porém, é cercado de mistérios, que passam desde o desaparecimento do seu filho adotivo, dado como morto em 2019, à perda, ou diafanização, do seu acervo. Nem mesmo os restos mortais da atriz foram poupados. Retirados de um jazigo e dispostos em um ossário, tentou-se fazer um jazigo para a artista que seria inaugurado no último dia 20, mas até mesmo o cemitério desconhece tal iniciativa

*por Vítor Antunes

Uma das protagonistas da versão original de “Elas por Elas” (1982), Sandra Bréa (1952-2000) não teve seu nome lembrado quando das inúmeros reportagens que fizeram o link entre a trama que deu origem ao remake que está no ar, na Globo. A atriz, considerada sex-symbol dos anos 70/80 morreu vitimada por um câncer há 23 anos e foi uma das primeiras atrizes a lutar contra o preconceito ao assumir publicamente em 1993 que tinha sido contaminada pelo vírus do HIV. As memórias sobre a atriz são permeadas de atravessamentos e questões nebulosas. Pouco há de seu acervo em sua forma integral. Uma parte dele, disponibilizada ao Retiro dos Artistas, teria ido parar nas mãos de leiloeiros, segundo especialistas. Seu patrimônio foi dilapidado e nem mesmo seus restos mortais puderam descansar com dignidade. Foram retirados de um jazigo, passaram a ocupar um ossário. Uma vaquinha virtual foi feita para a construção de um jazigo em homenagem à atriz e, como dizia a página na web, seria inaugurado no dia 20 passado. No entanto, o autor da vaquinha, que se dizia “funcionário da Rio Pax”, concessionária administradora do Cemitério São João Batista, em Botafogo, nunca integrou o time de funcionários da RioPax, segundo a administração do cemitério.

Na estreia do “Fantástico”, lá estava Sandra Bréa em um quadro que referenciava os 11 anos da morte de Marilyn Monroe (1926-1962). Perdido num incêndio, o episódio de estreia do “Show da Vida” foi recriado neste ano e Sandra foi revisitada. Em tese, outra oportunidade haveria de falarem da atriz, ante o remake de “Elas por Elas“, mas isso não aconteceu.

Os documentaristas José Valili, Theodoro Castro e Diogo Nazaré estão realizando um longa documental biográfico sobre a atriz. Com o título provisório de “La Brea“, o longa já contou com depoimento de pessoas fundamentais da carreira de Sandra, como Mila Moreira (1946-2021) , Zezé Motta e Daniel Filho. O jornalístico pretende exaltar a figura de Sandra para além do estereótipo ao qual foi encaixada numa sociedade machista como a brasileira, ou seja, objetiva transcendê-la ao rótulo de mulher lasciva e promíscua. “A gente vai mostrar no documentário e apresentar às novas gerações uma Sandra que dialoga muito com a mulher atual, e enfocar a Sandra Bréa Brito, que a mídia nunca se pôs a mostrar. E será muito impactante. Muita coisa vai surpreender a opinião pública”, garante José Valili.

Fã de Sandra Bréa e entusiasta da cultura pop brasileira, o DJ Zé Pedro diz que “Sandra  trabalhava com duas matérias-primas pouco utilizadas nos dias de hoje: talento nato e sensualidade à flor da pele. Tudo na dose certa. A femme fatale não desafinava da grande atriz e vice-versa. Apesar de vender uma imagem de mulher sexualizada, na vida real, Sandra era uma menina em busca do grande amor. Era amiga dos amigos e como toda grande estrela, ingênua para os negócios. Assim como Elis Regina (1945-1982), foram os homens que a mataram, em linguagem figurativa e real”.

Assim como Elis Regina, Bréa talvez tenha partido desse planeta na hora certa porque sua genialidade não caberia no tabuleiro de pedras falsas que se tornou o showbiz brasileiro – DJ Zé Pedro

E, num tempo que alterna uma excessiva sensualidade com grande caretice, o DJ Zé Pedro lança seu olhar para a atual versão de “Elas por Elas“: “É um instantâneo do novo Brasil, com novo empoderamento e erotização bem distantes, no melhor e no pior sentido, daquele ano de 1982, onde Sandra Bréa permanecia musa absoluta após a realeza vivida nos anos setenta”.

Sandra “La” Brea. Ícone dos Anos 1970 e 1980, Sandra morreu em 2000. E deixou legado artístico e patrimônio controverso (Foto: Reprodução)e

LIBERDADE PARA A BORBOLETA

Os produtores podem anotar esse nome: Sandra Bréa. Ela quer ser uma Dolly [Parton], uma Elisa Dolittle, uma grande estrela dos musicais. Artes não lhe faltam. Canta, dança e faz suaves acompanhamentos aos violão“. Foi assim, com esse elogio-recomendação que Sandra Bréa (1942-2000) surgiu na cena artística nacional. Dotada de talentos e de um repertório incomuns para os artistas daquela época, ela já pensava em fazer teatro musical antes mesmo que estes fossem um dos principais e mais rentáveis gêneros teatrais brasileiros – como é hoje.

A estrela principal do show era Regina Duarte, e para ela foi criado o show “Regina Mon Amour”, mas uma atriz delgada, vibrante acabou roubando todos os aplausos ao interpretar o quadro [que referenciava-se ao filme] Cabaré” – disse o crítico teatral Cícero Sandroni, hoje um imortal da Academia Brasileira de Letras. Antes dessa montagem, Sandra já havia chamado a atenção na peça “Liberdade para as Borboletas“, de Gersh. E assim foi consolidando sua carreira, com o objetivo de fazer do Rio de Janeiro, a sua Broadway. Fez musicais no teatro e na televisão, que ainda buscava a sua linguagem.

Para o documentarista Theodoro Castro, a ideia de se fazer um doc sobre Sandra é urgente, pois objetiva “resgatar o quão importante é a Sandra para a cultura brasileira e para a teledramaturgia. Ela foi uma estrela de muita importância anos 1970 e 1980 e caiu no ostracismo [ainda em vida], nos Anos 1990”. Segundo o roteirista e pesquisador de teledramaturgia, “à medida que chegam em determinada idade, e por volta dos 40 anos a oferta de trabalho caía ou a atriz ficava refém de um tipo de papel. Não seria diferente com a Sandra. A não-menção a ela é até meio que comum. Tanto que vibramos quando saem matérias que dão destaque a ela, já que isso não é regra, mesmo ante o remake de ‘Elas por Elas’“.

Uma das protagonistas da versão original de “Elas por Elas” (1982), na qual sua personagem chamava Vanda, Bréa não foi devidamente reverenciada quando da estreia da nova versão da trama de Cassiano Gabus Mendes (1927-1993). “Aracy Balabanian (1940-2023) e Eva Wilma (1933-2021) acabaram recebendo mais atenção que as outras – afinal elas atingiram outro patamar nos anos 1990 e 2000. Não houve devida menção a Maria Helena Dias (1931-2023) ou Ester Góes e mesmo a Joana Fomm. A Sandra está nesta mesma lógica. Não resgatam, não procuram saber. Parece estar havendo um afunilamento de informações, à medida em que as notícias hoje são cada vez mais superficiais”, afirma Theodoro.

DJ Zé Pedro: “Apesar de vender uma imagem de mulher sexualizada, na vida real, Sandra era uma menina em busca do grande amor” (Foto: Reprodução)

Por haver revelado ser portadora do vírus HIV e assumido publicamente sua condição num mundo ainda vincado pelo preconceito, perguntamos a Theodoro se o ostracismo de Sandra se deve a isso. Ele negou: “Ao etarismo. O ator sobrevive da imagem, do marketing, do network, mas a mulher passa por processos mais cruéis, e naquela época era algo ainda mais forte, especialmente a partir do momento em que elas entraram na casa dos 35, 40 anos. A decadência se avizinhava sendo um fantasma na carreira das atrizes. Por ser uma sex symbol, Sandra tinha uma imagem que, para a sociedade, estava vinculada ao vigor, não ao envelhecimento – ainda que seja absurdo falar de uma atriz com 40 anos, quando hoje não há mais esta perspectiva para as artistas. A questão do HIV foi só a pá de cal de uma carreira que já vinha em declínio, por conta do machismo estrutural que renegava ela e outras atrizes frente ao envelhecimento”.

A máquina esta investindo em mim, mas até quando? – Sandra Bréa, em Manchete (1973)

Através de IA, Verônica Medeiros transformou-se em Sandra Bréa no especial de 50 anos do Fantástico. Bréa fez o primeiro musical do “Show da vida” (Foto: Reprodução/Globo)

Mesmo sendo pioneira nos musicais, tendo estreado o gênero no Fantástico, justamente no seu primeiro episódio, tendo inclusive um show com seu nome “Sandra e Miéle“, onde dançava a cantava, além de haver estrelado inúmeras novelas de sucesso como “O Bem Amado” (1973) e “Ti Ti Ti” (1985), Sandra entrou pelos Anos 1990 esmaecida. Fez uma participação de pouco mais de um minuto no último capítulo da novela “Zazá”  (1997-1998) interpretando a si própria numa campanha de conscientização à causa do HIV. E morreria dali a três anos, com direito a apenas uma capa de Isto É. Algo que impressiona José Valili, o diretor do docmentário “La Brea” (nome provisório). “Nos seus últimos anos Sandra entrou em reclusão e so saía para falar do HIV em palestras e uma das últimas aparições dela foi num simpósio sobre HIV em 1999. Foi nestas circunstâncias que comecei a pesquisar sobre ela”, diz Valili.

O projeto teve sua produção iniciada em 2016, e desde então tem enfrentado dificuldades para acessar o acervo de Sandra. O material já passou por várias mãos. É o que aponta Theodoro: “O acervo dela foi descentralizado. Na época do lançamento da biografia (Sandra Bréa – Estrelas Nascem Para Brilhar, lançado em 2007), ele pertencia ao Juarez Santos, e depois saiu das mãos dele. O patrimônio dela também se espalhou, o que complica não apenas o inventário, mas também as pesquisas”.

Segundo revelou-nos uma fonte, o acervo de Sandra Bréa – fotos, objetos, textos e afins –  foi dividido entre três pessoas. Uma delas, Juarez Santos que, após digitalizar os arquivos, doou-os para o Retiro dos Artistas. Outro, foi o babalorixá, Jair de Ogum (1945-2020), e uma terceira parte com a família de Alexandre Bréa Brito (1970-2019), filho adotivo da atriz. A parte que foi doada ao Retiro dos Artistas, segundo foi relatado à família, teria sido perdida numa enchente. Porém, o material equivalente ao que estaria sob posse do Retiro foi localizado por um especialista em alguns sites de leilões. E, nestes, o conteúdo já foi arrematado. Procurado a falar sobre o assunto, o Retiro dos Artistas não respondeu aos nossos contatos. Já a parte que coube aos falecidos, encontra-se sob posse de seus respectivos herdeiros.

Este porém, não é o único problema. Os restos mortais de Sandra estiveram sepultados no mesmo jazigo de seu ex-marido, Arthur Guarisse (1935-2016), e de lá foram retirados. Em 2017, foram exumados e disponibilizados em um ossário, dentro de uma caixa térmica envolta de uma outra de papelão, e assim permaneceu. Apavorados, alguns fãs temiam de que os restos mortais de La Brea fossem incinerados e, por conseguinte, perdidos. Em maio de 2022, canais do YouTube levantaram uma campanha de colaboração voluntária, uma “vaquinha”, a fim de conseguir um jazigo para que Sandra pudesse ter dignidade post-mortem. A chave pix destinada a esse fim seria a do administrador da Rio Pax, Sérgio Amaral – que inclusive teria autorizado o Canal Meu Brasil de Histórias, do YouTube, a ter acesso aos restos mortais da atriz e cujo email que servia de chave pix era um endereço eletrônico corporativo dele.

Porém, segundo a Administração do Cemitério São João Batista/Rio Pax não havia ninguém com esse nome lá. A chave pix não está mais ativa. A previsão para “Inauguração” do tal jazigo seria dia 20 de setembro. Porém, a RioPax disse desconhecer tal informação. O responsável pelo email também não responde. O espaço neste site segue aberto tanto para ele como para a RioPax e essa reportagem poderá ser atualizada, caso eles se pronunciem. Importante ressaltar que um jazigo perpétuo no São João Batista, na Zona Sul do Rio, pode chegar a custar R$450.000,00.

Nelson Cavaquinho já dizia: flores em vida. Se os restos mortais de Sandra foram extraviados agora pouco importa. O que precisa acontecer agora de forma imediata é um documentário que conte com fundamento sua passagem pela Terra – DJ Zé Pedro

A caixa com os restos mortais de Sandra Bréa (Foto: YouTube/Meu Brasil de Histórias)

Restos mortais de Sandra Bréa estão desprotegidos de lápide ou túmulo (Foto: YouTube/Meu Brasil de Histórias)

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YELLOW ROSE

Com ascendência americana e um furacão quando esteve nos Estados Unidos, Sandra ganhou naquele país o apelido, de “rosa amarela”. Mulher à frente de seu tempo, pagou o preço também por esta vanguarda “Havia piadas em cima dela. Nas refeições, quando havia galinha como prato principal, dizia-se que tinha “Sandra Bréa para o jantar“, ou ainda associavam-na a uma canja, também feita de galinha. Durante as pesquisas, flagrei com todas as pilhérias possíveis sobre a atriz. Diziam que ela transava com uma frota inteira de taxistas. Em todo estado brasileiro há quem diga haver transado com Sandra Bréa ou que conhece alguém que diz ter dormido com ela. A meu ver, Sandra, Xuxa, Anitta e Adriane Galisteu foram as mais julgadas pela opinião pública com comentários machistas associando-as à promiscuidade. Hoje em dia, em época de apps para tudo, a palavra promiscuidade perde totalmente o peso. Queremos, neste documentário, que o enfoque seja tanto na Sandra Bréa, sua persona artística, como na Sandra Bréa Brito, seu nome de batismo”, diz o documentarista Valili.

O diretor prossegue apontando um elemento fundamental no estabelecimento do preconceito: “Ela foi estigmatizada, também, por ser mulher e era uma época de forte preconceito contra soropositivos. Ela trouxe a consciência de que as mulheres contraíam o vírus também, já que era uma doença estigmatizada aos homens gays. Não sinto que tenha havido o mesmo estigma por sobre Cazuza (1957-1990), Renato Russo (1960-1996) ou Lauro Corona (1957-1989). Nem mesmo Cláudia Magno (1958-1994), igualmente portadora, foi julgada pelo inconsciente coletivo” .

A mulher com brilho incomoda. Por isso, Sandra foi chamada de estrelíssima, temperamental. Era indamissivel que uma mulher fosse senhora de sua carreira e das suas vontades – José Valili

Sandra Brea, em 1981 (Foto: Reprodução)

O longa dirigido e roteiriado por José Valili, que divide a roteirização com Theodoro ainda está em montagem e, aponta José, de que eles precisam de um co-produtor, de um novo tratamento de roteiro para apresentar o projeto e finaliza-lo. Theodoro Castro diz que “é um desafio fazer documentário no Brasil sobre pessoas falecidas. O Brasil não cultiva memória, não destina sua atenção para isso. Não admito que (…)  apenas por haver morrido há 23 anos as novas gerações não conheçam a Sandra. É nosso dever agora para que a memória não desapareça, que não fique, por isso mesmo”.

As mulheres eternas da cultura pop ganhavam um artigo em espanhol antes, para distinguí-las das meras mortais. Era assim com La Taylor, para a Elizabeth Taylor (1932-2011), ou La Monroe, para a loura eterna. Sandra Bréa surgiu no cenário artístico louríssima, enorme, inédita. Tanto que Gilberto Tumscitz, jornalista de Manchete, definiu-a e à Maria della Costa (1926-2015) dizendo “O pequeno mundo de cada um de nós reflete nessas duas louras. Duas mulheres nota 10”. Poucos anos depois desta frase, dita em 1973, o jornalista virou o imorredouro Gilberto Braga (1945-2021). E frente ao tamanho de La Brea, estamos nós aqui, saudadeando sua memória, 23 anos depois.

Primeiro ensaio de Sandra Bréa para Manchete, em 1970 (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)