Roteiristas de Encantado’s, Renata Andrade e Thais Pontes sonham escrever novela e analisam rumos da TV aberta


Comemorando o sucesso da série no Globoplay, elas defendem um audiovisual mais diverso e menos racista, com negros em papéis que fogem dos estereótipos. A dupla também torce para que a produção tenha mais temporadas e anuncia que escrever novela é um sonho concreto. E ainda refletem: “Vejo pessoas brancas abraçando a questão racial, da representatividade, muitas vezes no discurso, porque na prática, não é bem isso que acontece. Abraçam porque é bonito, pega bem”. Segundo elas, a TV precisa reinventar-se e dizem o que pensam sobre uma possível ‘morte’ da TV aberta por conta do crescimento do streaming, como apontam alguns especialistas

*Por Brunna Condini

Renata Andrade e Thais Pontes são as criadoras da série ‘Encantado’s’, que tem se destacado na grade da Globoplay. A produção, além de ter se tornado um legado de representatividade negra – sem reforçar estereótipos, com personagens diversos – é uma trama das boas. “Na série temos todo tipo de gente. Não tem armas, sangue jorrando, mostramos que somos muito potentes e legais vivendo, trabalhando, sendo felizes, sendo a gente, pessoas normais”, diz Thais Pontes. As autoras, descobertas em uma oficina de roteiristas da Globo, revelam que sonham escrever juntas uma novela. “Já temos até uma sinopse”, anuncia Renata. Nesta entrevista, elas falam sobre a importância da diversidade na dramaturgia, do valor de verdadeiros aliados contra o racismo e dizem o que pensam sobre uma possível ‘morte’ da TV aberta por conta do crescimento do streaming, como apontam alguns especialistas. “A programação da televisão sempre teve altos e baixos. Mas acho difícil que acabe. Estamos falando de uma ‘bolha’, e quando as pessoas dessa ‘bolha’ falam, isso pode parecer a realidade. É dentro dela que as pessoas estão consumindo cada vez mais a TV fechada. A maior parte da população do país não consome streaming, porque não tem dinheiro para isso”, observa Thais. “A TV tem a capacidade de se reinventar sempre e a ameaça do streaming também gera esse movimento. Fora que a experiência coletiva de assistir televisão é maravilhosa. Acho que a TV será salva pelo coletivo!”, completa Renata.

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Assim como Thais, Renata é uma ávida consumidora de televisão e comenta sobre sua programação, que vem sendo duramente criticada nos últimos tempos. “A TV sempre esteve neste lugar de crítica, sempre apanhou muito. A programação da televisão dialoga muito com a realidade, com o que o público consome, no Brasil e no mundo. Então, para o bem e para o mal, acho que o que está lá é o que o público procura, um reflexo do espectador. Hoje vemos uma enxurrada de realities shows, por exemplo. Algo que se pensou ser momentâneo, mas vem funcionando há mais de 20 anos. A TV se rende ao público. E, por isso, também acho que tem que ter autocrítica. Sem demérito ao que é produzido, a televisão não deveria nivelar por baixo. Acredito que é possível conciliar as demandas do público, mantendo a qualidade da programação. Mas é preciso reinventar-se! O público está mudando, se renovando. No streaming e na TV aberta. Nossa série é um exemplo disso. A partir do momento que trazemos um produto negro, com criadoras negras, entendemos que o audiovisual, que nunca deu tanto espaço para talentos pretos, está com um olhar mais atento para a sociedade. O público quer se ver. O Brasil é feito de uma população em sua maioria negra, que não se vê representada. O ‘Encantado’s’ é um dos projetos que fazem parte dessa transformação da televisão”.

Renata Andrade e Thais Pontes falam da importância da televisão se reinventar (Foto: Globo/Rafaela Cassiano)

Renata Andrade e Thais Pontes falam da importância da televisão se reinventar (Foto: Globo/Rafaela Cassiano)

Thais fala da importância de ter oficinas como a que fizeram. “Dos 17 atores do elenco, 13 são pretos. Isso representa o Brasil. Somos plurais. Nos vimos na TV por muito tempo em lugares que não são apenas os que ocupamos, o papel da empregada, do escravizado, acho importante mostrar que não somos só isso. Lembro de quando criança ver na TV as atrizes negras como empregadas nas novelas. Olhava para o lado e minha mãe também era empregada. Ficava me perguntando se era só isso mesmo, sabe? Acho muito importante mostrar que não. Na série temos todo tipo de gente. Não tem armas, sangue jorrando, mostramos que somos muito potentes e legais vivendo, trabalhando, sendo felizes, sendo a gente, pessoas normais. O ‘Encantado’s’ não tem nada de diferente, é bem normal, por isso é potente. É importante falar do sofrimento, das mazelas, mas definitivamente não é só isso. Acho que muitas pessoas brancas ainda não entenderam que temos nossas histórias para contar, e não falar só da negritude”.

"Acho que muitas pessoas brancas ainda não entenderam que temos nossas histórias para contar, e não falar só da negritude" (Divulgação/ Globo)

“Acho que muitas pessoas brancas ainda não entenderam que temos nossas histórias para contar, e não falar só da negritude” (Divulgação/ Globo)

Renata também opina. “O audiovisual sempre apresentou um padrão, é racista. A partir do momento que essa representatividade vem com força, orgulhosamente, pode incomodar, porque essas pessoas são cutucadas, e em alguma medida se sentem ameaçadas em seus lugares de privilégio. A TV sempre exaltou o branco, a Zona Sul do Rio de Janeiro, por exemplo. Sou suburbana, de Oswaldo Cruz, e sempre vi o subúrbio representado na TV com gente falando alto, que usando roupas extravagantes, não me sentia representada”.

A partir do momento que trazemos um produto negro, com criadoras negras, entendemos que o audiovisual, que nunca deu tanto espaço para talentos pretos, está com um olhar mais atento para a sociedade. O público quer se ver – Renata Andrade, roteirista

E completa: “Vejo pessoas brancas abraçando a questão racial, da representatividade, muitas vezes no discurso, porque na prática não é bem isso que acontece. Abraçam por que é bonito, pega bem. Mas na hora de fazer valer essa representatividade, esse espaço, pega. “Sei ceder usando hashtag em rede social, mas não na hora de perder meu lugar de privilégio”. Na hora do ‘vamos ver’ percebemos quem é aliado mesmo”.

Amizade e parceria

“Nos conhecemos há 25 anos. Tínhamos uma amiga em comum, mas depois que eu e Thais nos encontramos, tivemos uma conexão tão imediata, que não desgrudamos mais. Éramos adolescentes esquisitas, assistíamos e comentávamos televisão, amávamos teatro”, lembra Renata. “Mais do que isso, entendemos que tínhamos um olhar diferente para vida, a gente meio que olhava o ‘torto’ da vida. Temos formas bem diferentes de escrever, mas temos o mesmo olhar. Me emociona saber que a minha melhor amiga está vivendo o meu sonho comigo. Fizemos o mesmo curso e na Globo sem ‘padrinho’ ou ‘madrinha’. O Mauricio Rizzo indicou a gente, mas não nos conhecíamos. Ele viu talento em nós. Aconteceu algo muito especial em nosso encontro. Temos muitos trabalhos para fazer juntas ainda e queremos que ‘Encantado’s’ tenha muitas temporadas. Depois da série o sonho da novela se tornou mais real. Entendemos que somos capazes, é concreto. É um sonho das adolescentes noveleiras”, diz Thais.

Renata Andrade e Thais Pontes as criadoras de 'Encantados' e suas famílias visitando a cidade cenográfica da série (Acervo pessoal)

Renata Andrade e Thais Pontes as criadoras de ‘Encantados’ e suas famílias visitando a cidade cenográfica da série (Acervo pessoal)

A série

‘Encantado’s’ conta a história dos irmãos Olímpia (Vilma Melo) e Eraldo (Luís Miranda), herdeiros em um empreendimento familiar, que durante o dia é um supermercado e à noite se torna a quadra da escola de samba ‘Joia do Encantado’.  A série, que conta com elenco majoritariamente negro, além de Tony Ramos, mostra a inusitada rotina do lugar. Renata e Thais assinam o roteiro com Antonio Prata e Chico Mattoso. “Esse trabalho é uma chance de dar visibilidade não só para a gente, mas também para os universos que desejamos mostrar”, afirma Thais. “É uma comédia sobre sonhos, perseverança, fé e relações”, finaliza Renata.