“Rogéria nunca se fez de vítima. Não quis abordar o sofrimento para chegar ao estrelato”, diz o cineasta Pedro Gui


Documentário que conta a trajetória da artista performática mais querida do Brasil chega aos cinemas de todo o país no dia 18 de julho

‘Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto’ estreia dia 18 de julho nos cinemas de todo o Brasil

*Por Jeff Lessa

Tudo começou com um “psssiu” no Café e Bar Recreio do Leme, mais conhecido como Bar do Neto pelos locais. Queridíssimo dos moradores do bairro, o boteco era frequentado pela artista performática Rogéria (1943-2017), que morava no prédio ao lado. Certo dia, o cineasta Pedro Gui tomou coragem e chamou a estrela para conversar. O que deveria ser um simples papo entre o fã e sua diva transformou-se em uma longa conversa de muitas descobertas. Pedro saiu do bar convencido de que aquelas histórias precisavam ser ouvidas por mais gente. Muito mais gente. Ah, também levava o telefone da estrela no bolso, para futuros contatos.

Pedro Gui passou três anos estudando a vida e a carreira de Rogéria (Foto: Vinícius Mochizuki)

Assim nascia o docudrama “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto”, premiado com melhor direção no Los Angeles Brazilian Film Festival e melhor filme, direção e ator (Alessandro Brandão) no DIGO (Festival Internacional da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás). O filme estreia em 18 de julho em todo o país. “Rogéria era uma contadora de histórias maravilhosa. Naquela conversa, comecei a compreender o tamanho dela. Foi a primeira a colocar o travesti em um lugar de respeito, e a lutar por igualdade de uma forma belíssima”, observa o cineasta. A atriz Betty Faria concorda: “É muito bom ter o travesti no lugar do artista”, comenta no filme. Pedro Gui prossegue: “Os artistas costumam ser esquecidos rapidamente no Brasil. A Elke Maravilha (1945-2016) é um exemplo. Em pouco tempo não se saberá mais quem foi. Achei necessário fazer um documentário sobre a Rogéria”.

Rogéria foi a grande artista da família brasileira (Foto: divulgação Solar de Botafogo)

O processo para dar a largada no projeto levou três anos. “Convidei em 2013, mas ela estava envolvida com a filmagem de ‘Divinas Divas(documentário sobre as pioneiras do travestismo no Brasil dirigido por Leandra Leal lançado em 2017), não tinha tempo. Passei três anos estudando a vida dela, descobrindo quem tinha sido essa grande artista. Começamos a filmar em 2016”, explica o diretor.

A primeira ideia era fazer um road movie documental com a artista passando pelos locais que marcaram sua vida pessoal e sua trajetória no show business. No entanto, Rogéria morreu no dia 4 de setembro de 2017. Era premente mudar a estrutura do filme. “Foi necessário incluir a parte ficcional no doc. Eu havia feito uma longa entrevista para servir de base, mas não a usaria no filme. Durante a entrevista, a pedido da Rogéria, nós caminhamos pela Galeria Alaska enquanto ela falava de sua vida. Depois, continuamos no estúdio”, conta Pedro Gui. “Com sua morte, o roteiro mudou e a entrevista entrou no doc. A ideia do road movie, claro, foi abandonada. O filme começa com um show dela e, a partir daí, vai rememorando fatos de sua vida”. O personagem principal é interpretado pelo ator Alessandro Brandão.

Alessandro Brandão interpreta a estrela Rogéria no docudrama que narra a vida da artista

Uma das características mais marcantes e surpreendentes da personalidade da artista é sua visão sempre positiva da vida: Rogéria não esmorecia diante de dificuldades. “Ela nunca se colocou no lugar da vítima. Não quis entrar no sofrimento que, certamente, viveu para chegar onde chegou. Sempre foi muito corajosa”, revela o cineasta. No doc, a própria Rogéria faz uma revelação surpreendente. Pedro Gui conta que “sua personagem era a diva vaporosa da época do star system americano, tipo Marilyn Monroe. Por conta disso, ela não acreditava, no começo da carreira artística, que faria muita coisa depois dos 30 e poucos anos. Achava que voltaria a ser a cabeleireira do começo da carreira e fim. Mas permaneceu diva até morrer. Ela dizia que a Rogéria não abandonou o Astolfo (seu nome verdadeiro)”.

Por falar na dupla literalmente inseparável Rogéria/Astolfo, Pedro conta que conviveu com as duas personalidades – e como uma completava a outra com perfeição, proporcionando equilíbrio à ‘pessoa física’. “Isso não tem nada a ver com dupla personalidade ou misticismo. Mas havia horas em que o lado Astolfo assumia as rédeas. Astolfo era muito prático. Como se fosse o administrador da Rogéria, que era glamourosa. Mas ela jamais deixou o Astolfo aparecer para o público. A identificação das pessoas era com a Rogéria”.

Rogéria nos tempos da TV Rio arrumando Emilinha Borba, 1964

O público de Rogéria era imenso. Incluía do homem comum às celebridades mais badaladas. Para realizar as 11 entrevistas que constam do filme, Pedro Gui conta que o simples nome da artista abriu portas. “Bastava eu dizer que era para fazer um filme sobre ela que as pessoas aceitavam na hora. Entrevistei o Jô Soares na casa dele, por exemplo. A Nany People foi incrível, deu uma entrevista fantástica. Para mim, é a que mais se aproxima do que era a Rogéria”, pontua Gui.

Uma tirada genial de Nany People, aliás, vem de outra boutade fantástica e famosa de Rogéria. Quando percebeu que havia se tornado uma instituição, Rogéria passou a dizer uma frase que nunca se cansou de repetir. “Sou a travesti da família brasileira”. No doc, Nany faz uma correção carinhosa que muda tudo. “Não era apenas a travesti da família brasileira. Rogéria era a artista da família brasileira”.

Rogéria antes do visual feminino que a consagrou no Brasil, Europa e Estados Unidos

E que artista. Foi uma longa caminhada para Astolfo Barroso Pinto, do maquiador e cabeleireiro de celebridades a artista que morou e se apresentou por cinco anos em Paris, participou de espetáculos de Carlos Machado, fez filmes e novelas, abriu caminho para tantas companheiras de profissão e, mais importante que qualquer glamour, conquistou o coração de seu povo. Sem dúvida, Rogéria foi a artista da família brasileira.