Rodrigo França: multiartista quer adotar uma criança, lança livro infantil, anuncia volta ao teatro e fala do racismo na TV


Diretor de cinema e teatro, dramaturgo, filósofo, produtor, escritor e artista plástico, Rodrigo França é referência no assunto afro-afirmativo. Lança o livro “O Menino e sua Árvore”, além de estar preparando retorno para o teatro numa peça autoral na qual dará vida a Hamlet. Em entrevista exclusiva, ele analisa a questão racial com a assertividade que lhe é característica: “Se uma sociedade é racista, suas instituições serão (…). E a gente não pode esquecer que a sociedade brasileira se forma, educa e formula através das telenovelas e dos programas de televisão. Enquanto os programas jornalísticos policiais da tarde prosseguirem em desserviços, colocando a população negra como construída socialmente à margem ou na violência, pouco mudará”

*por Vítor Antunes

Quando os negros vieram para o Brasil, antes de embarcar nos navios tumbeiros“, dizem os livros de História Africana, “eles eram obrigados a cirandar em volta de um frondoso baobá, a Árvore do Esquecimento. E isso acontecia no Portal de Não Retorno. Um deles, em Porto Novo, no Benin“. A escolha por uma citação inespecífica – um livro de História Africana qualquer – não é à toa. Essa história poderia ser contada por uma preta-velha, por uma avó ancestral, ou pelo ator, diretor, escritor Rodrigo França queu seu livro, narra tudo isso somado, porém, personificado uma árvore. Numa árvore-tempo. É assim que nasce o seu novo projeto literário “O Menino e Sua Árvore”, na qual o protagonista afirma categoricamente que ela é sua avó. “O livro se pauta numa perspectiva iorubana, mas que de modo algum se presta a ser uma literatura confessional, religiosa, ainda que seja inspirado no orixá Iroko, árvore sagrada para o continente africano e que reflete o tempo. Trata-se de algo que sempre estava na minha cabeça. Eu sou da filosofia por formação. Eu gosto de refletir sobre a existência humana e a gente precisa fazer esse exercício com as crianças e adolescentes”. Inclusive, em razão disso, ele está pensando em adotar uma criança. “Estou pensando em entrar na fila da adoção. São mais de 20 anos na educação como professor, como escritor de literatura infanto-juvenil. Acho que seria um desperdício ter esse amor em educar e não ter um filho. Principalmente quando penso de ha uma necessidade de instrumentalizar um exército para poder mudar o mundo”.

Para o multiartista, “a filosofia africana compreende que quem esta aqui hoje é o ancestral que quem ainda não nasceu será o de um que ainda virá. Independentemente da sua idade, de uma cultura de respeito aos mais velhos se pauta em cima de uma sociedade que tem ‘preconceito de’ . Simbolizar esse mais velho em uma árvore e tê-la como figura central que compartilha cultura e conhecimento que vai passando de gerações durante uma família. No pensamento africano está tudo tão explicado que a questão é que as soluções para as problemáticas contemporâneas não surge através do povo originário africano e qualquer pauta tem uma solução, mas a gente não ouve quem está há mais tempo nesta terra”.

Além do livro, Rodrigo está num ano muito movimentado. Vai reestrear a peça “Angu”, que conta com Orlando Caldeira no elenco, e que vai estar no SESC Ipiranga e depois no SESC Centro, no Rio. Rodrigo também está trabalhando a adaptação de um livro para o audiovisual e seu retorno ao teatro… como ator! Algo que é a sua habilitação profissional de origem, com “Hamlet eu“, diz ser “um solo onde retorno ao palco baseado num texto que foi o primeiro a discutir a humanidade no Ocidente. Quero aproveitar essa dramaturgia shakespeariana para discutir o hoje”.

Como não poderia deixar de ser, o racismo não fica – e nem deve ficar – longe do núcleo dos debates contemporâneos. Recentemente, um programa líder de audiência trouxe a polêmica do fato de uma integrante haver dito que seu companheiro de confinamento “lembrava um assaltante”, ou que ele era agressivo e/ou violento. “Existe uma máxima na Sociologia que diz que se uma sociedade é racista, suas instituições serão. Ou seja, o que se vê na TV é a reprodução em maior ou menor escala do que se vê na sociedade. Olhar para uma pessoa e achar que ela é tóxica ou violenta é o mesmo comportamento de uma pessoa que vê um negro num centro urbano e esconde a bolsa ou o celular. Ainda é um olhar colonial que valida que o nível de confiabilidade está essencialmente por sobre a pessoa branca e em construção estabelecida”.

A gente não pode esquecer que a sociedade brasileira se forma, educa e formula através das telenovelas e dos programas de televisão. Enquanto os programas jornalísticos policiais da tarde prosseguirem em desserviços, colocando a população negra como construída socialmente à margem ou na violência, pouco mudará – Rodrigo França

Rodrigo França e a ilustradora de “O Menino e Sua Árvore” Vanessa Ferreira (Foto: Divulgação)

IROKO KISSILÉ

Iroko foi à primeira árvore plantada. Através dela, todos os orixás desceram à Terra. Iroko costuma ser associado à consciência de tempo. A frase que o saúda, acima citada, significaria “Salve o Grande Iroko”. Para Rodrigo, “tudo que a gente propaga hoje socialmente é uma réplica de uma construção Ocidental do que a gente enxerga sobre a morte. É uma relação socialmente construída e não natural de medo e pavor. Quando se pensa em ancestralidade, em continuidade, legado, isso traz conforto de quem fica. A ancestralidade africana compreende que passado, presente e futuro acontecem simultaneamente”.

Quem devasta ou polui não é africano, ou originário. Essa cultura africana, essa tecnologia é a que devemos reproduzir – Rodrigo França

Para Rodrigo, seu livro “é uma semente oriunda do olhar de um menino que ama a sua História. Ele, no primeiro dia de aula, diz que tem uma bisavó árvore e todos caçoam dele, pois dizem que é impossível ter uma avó árvore”. Essa referência para o autor é importante. “A editora chegou a observar que tudo meu tinha árvore, reverencia o verde. Sem mata, sem folha, não há o sagrado”.

O amor preto cura, mas precisamos entender que amor é esse. Não só romântico perfeito, mas o que é conflituoso de uma sociedade onde as pessoas foram intoxicadas pelo racismo e  por ver os nossos, na busca por respeito e admiração. De ajuda de acompanhamento de terapia intelectual para que seja saudável – Rodrigo França

Rodrigo França: ator, diretor e acadêmico tem falas firmes sobre a questão negra no Brasil (Foto: Magali Moraes)

PALAVRAS NEGADAS

Quando Carolina Maria de Jesus (1914-1977) surgiu no cenário nacional, no fim dos anos 1950, tornou-se público os seus diários que mais tarde seriam compendiados e daria origem ao livro “Quarto de Despejo“. A profundidade da escrita, vinda de uma pessoa favelada e semialfabetizada, pôs em cheque – para algumas pessoas – a autoria do livro. Disseram ter interferências do jornalista da Folha de São Paulo Audálio Dantas (1929-2018), editor do livro. Para Rodrigo, essa invalidação não é distante de uma manifestação racista de preconceito por ser preta e favelada. “Não tenho dúvida. O geógrafo Milton Santos dizia, quando perguntado, não que é difícil ser negro e intelectual no Brasil, mas é difícil ser negro no Brasil. Eu percorro a academia e as pessoas querem sempre nos negar, estigmatizar nossa mão de obra, para a força braçal, para a hiperssexualização, negando o afeto e negando a nossa intelectualidade ou genialidade. A mesma sociedade que até hoje acredita que a Filosofia ou a Medicina veio da Grécia. É demais para uma sociedade racista ter que assumir a genialidade de Carolina Maria de Jesus, de Conceição Evaristo, de Milton Santos (1926-2001).

“A fome fabrica uma escritora”. Primeira publicação de O Cruzeiro fazendo menção a Maria Carolina de Jesus, em 20/06/1959 (Foto: Biblioteca Nacional/O Cruzeiro)

Rodrigo França diz estar avançado a inclusão de pessoas pretas na escrita de literatura hoje. “Eu sou muito otimista e digo isso por não por fazer uma falsa assimetria. Não dá para negar uma luta histórica, mas ainda estamos aquém, quando comparamos às pessoas brancas. 56% dos que se intitulam pretos ou pretas não está num lugar de poder. Estamos publicando mais, porém isso não significa que não tenhamos escrito”.

É importante que haja protagonistas pretos em novelas, mas isso não garante que as próximas terão. Além disso, é importante haver cada vez mais, gente que esteja atrás das câmeras, roteiristas pretos… É preciso que se saiba de quem é o olhar para o qual se direciona aquela história – Rodrigo França

Muito se fala sobre o negro que acaba servindo de porta-voz e/ou referência. Esta pessoa acaba concentrando todas as perguntas, e por conseguinte as respostas, sobre a questão racial. “Ser referência é uma responsabilidade que me orgulha, ainda que reconheça ser jovem e ter muitas pessoas mais velhas e aptas a falarem também sobre essa questão. Não me incomoda falar sobre racismo, mas sim quando a pauta é exclusivamente sobre. Enquanto houver racismo no Brasil, teremos de falar sobre isso e eu, por eu ser um estudioso, fico feliz que tenham me escolhido a falar. Amaria fazer apontamentos exclusivamente sobre a minha arte, mas talvez seja algo que nem mesmo a geração dos meus filhos verá”. Mas, nem tudo é desalento para Rodrigo. Para ele, é importante aquilombar-se. “É preciso estar com pretos iguais a mim. Não que isso seja segregação, porque os grupos sociais já fazem isso. Para mim isso é afeto, é troca afetiva. E me disponho a ir a qualquer lugar possível para estar com os meus pares”. O vento sopra, a folha vira.  Se sem folha não há orixá, sem raiz não há vida. O ramo sagrado, se nutre da seiva da História. Tempo, Iroko, Axé. Iroko Kissilé.