José Padilha segurou firme na direção de “Robocop” (2014), da mesma forma que o personagem não titubeia na hora de apertar o gatilho. Naturalmente, a primeira coisa que se procura identificar, após os primeiros minutos de filme, é alguma semelhança entre a visão do cineasta acerca do policial meio homem, meio máquina, transformado em ciborgue de matar por uma corporação que fabrica armas e os dois “Tropa de Elite” que conferiram à Padilha o passaporte para Hollywood. Obviamente, existem questões comuns às três produções, até porque estão sob a batuta do mesmo diretor, mas é importante salientar, logo de cara, que mesmo contratado por um grande estúdio, a MGM, para dar cabo de uma produção de encomenda, ele soube respeitar a essência do personagem imortalizado pelo filme original de Paul Verhoeven em 1987, sem deixar de adicionar um tempero seu, atualizando o tema e também a forma como filmá-lo. “Robocop”, além de ótimo entretenimento, continua irônico e levantando bandeira de questões que são pertinentes ao mundo atual como violência, poder da mídia, imagem pública e corrupção, devidamente transpostas para o cenário de hoje, possivelmente muito mais complicado do que já era nos anos oitenta.
Padilha trouxe ao roteiro uma forte dose de realidade, misturando a ficção científica com assuntos vistos diariamente nos jornais, não apenas em uma Detroit de ruas sujas e encardidas, mas em um mundo globalizado igualmente roto. Agora, por exemplo, os modernos escritórios da OmniCorp, a corporação que fabrica armas e robôs, podem estar situado em um belo arranha-céu no centro da metrópole americana, mas o resultado de sua atuação no mercado é conferido durante uma ação militar no Oriente Médio contra terroristas nacionalistas. E seu coração tecnológico – suas unidades de pesquisa e produção – não se encontra na América, mas em algum lugar ermo do China, com complexos fabris situados onde as leis trabalhistas são mais permissivas e a mão de obra é mais barata, ao lado de plantações de arroz.
Quando a primeira versão foi feita, ainda não existia globalização e seus indícios ainda engatinhavam, mal tendo sido preconizados cinco antes por “Blade Runner – O Caçador de Andróides” (de Ridley Scott, Warner Bros, 1982). Agora, surge um novo Robocop, atual em alguns quesitos, repaginado visualmente e atualizado por efeitos visuais de ponta, mas que continua sendo vítima dele mesmo, de sua insistência em ser honestamente cabeça-dura e não bater continência ao sistema podre que se propõe a proteger cidadãos, mas que, por suas conexões com o submundo, também é capaz de entregá-los de bandeja à cova dos leões, mais de 25 anos depois da primeira saraivada de balas que pôs o policial Alex Murphy (Joel Kinnaman) à nocaute, em estado vegetativo – motivo suficiente para transformá-lo em novo brinquedinho contra o crime por um empresário sem escrúpulos, mas com noções claras de comunicação corporativa (Michael Keaton, deliciosamente cínico e quase histriônico), um brilhante cientista que vê na oportunidade uma forma de ampliar o financiamento para suas pesquisas cibernéticas (Gary Oldman, ótimo), um marqueteiro de carteirinha ávido por chamar atenção do chefe (Jay Baruchel), uma advogada que sabe cuidar dos interesses do conglomerado para a qual trabalha (Jennifer Ehle), uma chefe de polícia que precisa fazer o jogo sujo de quem está acima dela para não ter sua cabeça servida em uma bandeja (Marianne Jean-Baptiste), um prefeito de mãos atadas que deve mostrar aos eleitores que consegue conter a escalada da violência urbana (Douglas Urbanski) e um elouquente âncora de programa de televisão que pretende dirigir a opinião pública a seu bel prazer (Samuel L. Jackson, brilhante!). Neste “Robocop”, ninguém é inteiramente mal, ninguém é bonzinho, todos têm suas motivações, escusas ou sinceras no íntimo de suas vidinhas e, talvez pela sua própria essência, os únicos personagens totalmente bons ou maus são o herói protagonista, sua família e o traficante que o levou à condição de meio-andróide. Mas, fora esse maniqueísmo necessário para o roteiro, é a ambigüidade de todo mundo que torna a película uma produção com a digital do diretor carioca, acostumado a ver as mazelas daquilo que acontece no Rio e no Brasil com olhos distanciados do maravilhoso mundo da Disney.
No fundo, o filme trata de manipulação, talvez a pior de todas as violências. Todos manipulam todos em função de ambições próprias ou interesses superiores, exceto Alex Murphy, colhido no meio desse tiroteio de verdades obtusas, lançadas convenientemente ao vento nos momentos certos para cada um se safar. E aqui a utilização dos sistemas midiáticos como munição de guerra é levada à exaustão, já que a comunicação é capaz de mudar o pensamento de indivíduos ou massas. Se isto é era visível no longa original, imagina como Padilha brinca em época de tecnologia da informação consolidada e de sociedade do espetáculo. Isso fica claro até quando a esposa do herói, café pequeno, resolve conceder entrevista à imprensa para protestar contra a corporação que a impede de ter contato com seu marido, com o intuito de angariar a simpatia do público. Prova de que, nos dias atuais, sujeitos bons ou maus, gigantes ou minúsculos, todos pensam em convencer todos com os recursos que estiverem à mão.
Tecnicamente, o material apresentado ao público é precioso, com questões como o uso da mídia em proveito próprio como destaque, não como pano de fundo, mas adquirindo uma proporção ainda maior que na primeira versão. E, claro, a forma de filmar e editar um filme, de lá para cá, ficou muito mais frenética, e tanto Padilha quando o editor de imagens Daniel Rezende – egresso de “Armas e Paz” (de Walter Salles e Daniela Thomas, 2002), “Cidade de Deus” (de Fernando Meirelles, 2002) e dos dois “Tropas” – deitam e rolam em berço esplêndido, com cenas picotadas na medida certa, pirotecnias de movimento, uso de câmera solta e olhar do ponto de vista do capacete-cérebro do homem-robô, como um moderno jogo de RPG, ideia que já existia nos anos oitenta mas que agora pode ser muito mais amplificada, aproximando o filme o olhar telêmico da geração Y. Diversão garantida, sem possibilidade de ninguém pedir o dinheiro de volta e se levantar da cadeira, sob o risco de algum esquadrão de drones (os gigantescos e impessoais robôs que mantém a ordem e que seguem estritamente uma programação) esperar na porta e obrigar você a voltar correndo para o escurinho do cinema.
Foto: Reprodução
Leia abaixo o artigo publicado aqui no HT no dia 2 de fevereiro.
Robocop 2014: José Padilha é o tempero que pode acrescentar novo paladar a uma velha receita de filmes de ação!
Assim como aconteceu com outros cineastas, é o estilo de violência do diretor que pode ser o mojo do qual Hollywood precisa!
A nova versão de “Robocop” (Idem, MGM, 2014), dirigida pelo brasileiro José Padilha, é o típico exemplo de cobra que morde seu próprio rabo. Na estilização da violência da qual o cinema – em especial Hollywood – tem se alimentado nos últimos 60 anos, esta parece ser uma premissa nos filmes de ação, sejam eles cerebrais ou apenas veículos para catalizar a adrenalina das plateias. A estética da pancadaria no cinema é como uma serpente que, transformada em círculo, roda sempre no mesmo lugar, trazendo novo sopro de oxigênio à rentável indústria cinematográfica para fazer com que esta permaneça onde costuma estar: como usina de sonhos pronta a arrecadar milhões. E, naturalmente, faz todo sentido a atual escolha dos produtores do estúdio pelo diretor brasileiro para comandar o remake deste clássico do sci-fi, passadas quase três décadas. Afinal, Padilha é o cara, desde quando despontou com “Ônibus 174” (Zazen Produções, New York Films, 2002), seu primeiro longa-metragem, para, em seguida, estourar de vez com “Tropa de Elite” (Zazen Produções, Universal Pictures e outros, 2007), batendo, logo depois, o recorde de maior bilheteria nacional (até então nas mãos de “Dona Flor E Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, 1976) com seu “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro” (Zazen Produções, Globo Filmes e outros, 2010), visto só no Brasil por 11 milhões de espectadores, façanha e tanto por aqui.
Em Hollywood, o compositor Niccolò Paganini (1782-1840) que, entre sua extensa obra, ficou conhecido do grande público por suas variações sobre um tema, é levado a sério na meca do cinema. Explica-se: variação em música é uma técnica formal onde o material composto é reiterado repetidas vezes, com alterações sobre um tema apresentado, se configurando naquilo que os teóricos chamam de desenvolvimento musical. Em Hollywood, o pensamento costuma ser parecido com essa teoria. Um tema – ou gênero –, em sua concepção ou forma, é explorado à exaustão, enquanto estiver rendendo lucro aos estúdios, produtores, distribuidores e quem fizer parte da cadeia produtiva na sétima arte. Grosso modo, isso é o que se convencionou chamar fórmula cinematográfica. E, claro, quando uma dessas tais fórmulas começa a dar sinais de esgotamento, está na hora de adicionar molho novo, ou seja, temperar a velha receita com novos ingredientes para que o cardápio final fique, digamos, novamente palatável, pronto para ser digerido pelo grande público. Daí a cobra que morde o rabo e vira roda, andando para frente sem nunca sair do lugar de fato. E Padilha é esse tempero que pode permitir à cobra continuar andando em círculos – e abocanhando milhões.
Quando o holandês Paul Verhoeven foi importado pelos estúdios americanos para dirigir o Robocop original em 1987, ele também impregnou o roteiro de elementos que conferiam à produção um gás de modernidade, não apenas na maneira de encarar o argumento – agente policial vítima de um atentado quase fatal e que, por isso, é transformado por uma poderosa organização (OCP) em um ciborgue, meio homem-meio máquina, destinado a se tornar uma literal máquina de matar –, mas também com nova estética formal. E ainda trouxe implicações filosóficas novinhas em folha (para a época), enfatizando a propagação da violência através do sistema midiático, que encara a brutalidade como showbiz para ganhar visibilidade e se manter no topo da audiência. Uma novidade nos idos de 1980, quando a sociedade do espetáculo ainda estava ganhando os contornos que possui hoje em dia. E, claro, o cineasta também recheou o empadão com diversas questões morais, como a discussão de que, se o ciborgue é uma máquina, de quem é a responsabilidade quando ele exerce sua extrema violência, inclusive quando toma uma decisão errada e arrisca a vida de inocentes. Mas, aliado a tudo isso, Verhoeven impôs ao público um novo estilo de filmar a violência, que pode ser conferido em suas produções seguintes nos anos 1990 (Instinto Selvagem, O Vingador do Futuro, Tropas Estelares).
Obviamente, não é de hoje que Hollywood importa talentos prontos a glamorizar a violência, tornando-a acepipe pronto para a degustação. Quando Akira Kurosawa (1910-1998) despontou na cinematografia mundial com “Os Sete Samurais” (Shichini no samurai, 1954), idealizando as cenas de luta com o charme de descendente dos genuínos samurais, rapidamente o cinema americano se apropriou de sua visão estilística não só para incorporá-la às suas próprias produções, mas até mesmo para copiá-la, embalá-la e distribuí-la como um produto seu, voltado para as grandes massas: “Sete Homens e um Destino” (The Seven Magnificent, de John Sturges, United Artists, 1960), a despeito de suas qualidades, é apenas uma transposição para o western do filme de Kurosawa.
Décadas depois, em 1985, o diretor japonês confirmou mais uma vez que a exploração detalhada da truculência, quando elevada ao patamar de obra de arte, não afasta o público, muito pelo contrário: a cena da decapitação da rainha má em Ran (Idem, Greenwich Film Productions e outros) é sugerida por uma parede branca que é lepidamente borrifada com o sangue da personagem no momento em que a katana do samurai lhe atinge o pescoço, em uma imagem que parece o vigoroso processo usado pelo pintor americano Jackson Pollock para realizar suas impressionantes obras de arte. Prova de que a estetização da crueldade pode adquirir inúmeros caminhos através dos diferentes estilos.
E é nessa busca por novas estilizações que revigorem a estética da violência que Hollywood se abre para novos talentos de fora. O britânico Alfred Hithcock (1899-1980) foi caso de uma das mais longevas parcerias entre o cinema americano e quem não é do país. Talvez seja parte do seu sucesso o apreço que o circunspecto diretor tinha por tornar elegantemente intolerável a ojeriza da plateia pela violência, em torturantes cenas como a do chuveiro de “Psicose” (Psycho, Paramount Pictures, 1960) ou aquela em que Tippy Hedren é atacada por pássaros enfurecidos prontos a lhe furar os olhos em “Os Pássaros” (The Birds, Universal Pictures, 1963).
O chinês Ang Lee (“O Tigre e o Dragão”, Wo hu can long, 2000) rivaliza com os irmãos Larry e Andy Wachowski (os americanos da trilogia “Matrix”, 1999-2005) como mentor da elevação das lutas coreografadas, amplificadas pelos efeitos digitais, à condição sine qua non dos filmes de ação, onde os combates corpo a corpo ganham precisão digna de Bob Fosse e acabamento estético que foge da realidade, mas que incorpora a magia da computação gráfica, diluindo a brutalidade em lindas imagens. Hoje em dia, é impossível pensar em uma película desse tipo onde não haja pelo menos uma cena dessas.
É neste ambiente prolífico, onde a maneira de estetizar a violência consegue até ganhar da necessidade de abrilhantar um filme com astros de ação consagrados, que José Padilha está construindo terreno sólido. Enquanto os produtores de elenco se esmeram em tentar substituir a velha prata da casa neste gênero – como Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Bruce Willis –, cujas pelancas hoje já começam a ser maiores do que a dose de testosterona nas veias, tentando impor astros fabricados sem o mesmo carisma (tipo Dwayne Johnson e Vin Diesel), está aberto o caminho para o cineasta brasileiro solidificar seu espaço na Califórnia. Não foi à toa que, em “Robocop”, ele conseguiu impor fácil sua equipe ao pessoal que cuida do dinheiro nas super produções. Claro que alguns deles, como o diretor de fotografia Daniel Rezende, responsável pela edição de “Cidade de Deus” (Idem, O2 Filmes, Globo Filmes e outros, 2002), devem ter sido vistos como barbada pelos engravatados do estúdio. Candidato ao Oscar por esse filme, Rezende faz parte dessa outra produção que, assim como “Tropa de Elite”, tem ingredientes capazes de adicionar o tal sopro de renovação no cinema de ação americano. Depois de Carmen Miranda, quem diria, uma possível invasão brasileira em Hollywood pode se dar não pela frente, mas por trás das câmeras.
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