* por Vítor Antunes
Para além da do arquétipo que lhe é atribuído, de mulher-furacão, Rita Guedes mostra seu lado sensível e íntimo. Tanto que é uma das adaptadoras da montagem que estrela: “Uma relação tão delicada”, escrita por Loleh Bellon (1925-1999) e dirigida por Ary Coslov. A montagem, que estava em cartaz em 2020, precisou ser encerrada por conta da pandemia e retornou aos palcos trazendo, além de Rita Guedes, Amanda Acosta, consagrada atriz de teatro musical, que faz, depois de um longo tempo, uma peça em prosa. Rita fala sobre os desafios de ser uma mulher autêntica e sobre as – inúmeras – vezes em que em que seu talento foi questionado em razão de sua beleza: “Nunca liguei para as críticas não era algo que eu me importava, por mais que dissessem que eu era apenas um corpo ou rosto bonitos e que eu só sabia fazer personagens sex-symbols”.
ALÉM DO FURACÃO
Dentre os tantos lugares comuns que dialogam com os elogios destinados às mulheres, há aqueles que margeiam com o preconceito, como o “Você está muito bem para idade que tem”, ou o “Você nem parece ter essa idade”, como se a maturidade fosse, necessariamente, uma sinalização de falta de beleza e/ou sensualidade. Rita Guedes desmente essa máxima. É uma mulher bonita e ponto. Seus 51 anos consolidaram a beleza de uma vida inteira. “Eu não me vejo cheia de procedimentos (estéticos). Eu me vejo sendo feliz, com a minha sensualidade, com a minha beleza e cada época da vida tem a sua”.
Nos Anos 1980 e 1990, o corpo feminino era explorado em campanhas comerciais, em capas de disco e até mesmo nas trilhas sonoras de novela. É simbólica a capa de uma trama das 19h, “De Quina Pra Lua”, na qual a modelo posava de modo que seu corpo fizesse um trocadilho maldoso e sugestivo com o nome da trama de Alcides Nogueira. Hoje em dia, tanto a objetificação como a hiperssexualização do corpo feminino são problematizadas. Rita diz que mesmo na época em que iniciou a carreira, em 1992, ainda que lidasse bem com isso, foi “bastante criticada. Eu já lidava bem e não tinha problema com o corpo, com o nu, já era focada na minha carreira. Se o meu personagem pedisse aquela roupa, aquele figurino, eu fazia. Nunca liguei para as críticas não era algo que eu me importava, por mais que dissessem que eu era apenas um corpo ou rosto bonitos e que eu só sabia fazer personagens sex-symbol”. E prossegue: “Eu sou uma mulher que até quando eu quiser, usarei decotes, roupas mais justas ou skinny. Eu gosto, eu me sinto bem, e há quem critique dizendo que eu não tenho idade para isso, e é algo que questiono”.
Hoje em dia as mulheres têm mais liberdade e força para mostrar a sua feminilidade, sensualidade e sexualidade sem que isso seja visto como algo negativo, que a diminua ou que ela tenha menos valor, como era entendido naquela época. As mulheres não precisam estar com um figurino assim ou assado para serem respeitadas – Rita Guedes
Segundo Guedes, essa cobrança por um padrão estético a todo tempo é algo que sempre houve em sua vida: “Fui cobrada a vida inteira e tiro de letra. Vejo a mim como a uma mulher à frente do meu tempo. Não apenas por não ter querido casar e ter filhos, mas por lá no passado levantar bandeiras (feministas), sempre tive uma independência. Saí de casa cedo, razão pela qual era cobrada pelos meus pais – até pelo cuidado que eles tinham comigo – e também pelos meus fãs, diante do mesmo fato. Mas fico muito feliz com elogios, embora não seja algo que me transforma, não fio minha vida nisso. Eu acho que todas as fases da vida são lindas eu vejo mulheres belíssimas com 70, 80 anos”.
A gente descobre beleza e sensualidade em todas as idades. Aos 51 anos não trocaria esta fase por nenhuma outra. Acho que hoje sou mais bonita, mais segura, harmoniosa, faço o que quero, sou dona de mim, e isso é algo que vem de dentro. Ainda que me cuide, nunca me fixei na parte física, nessa cobrança estética – Rita Guedes
Em razão da aparente jovialidade, alguns atores relatam ficar numa espécie de limbo junto aos produtores de elenco. Algo que Sandy apresenta na música “Aquela dos Trinta”: São “jovens para serem velhos e velhos para serem jovens”. Perguntamos à Rita se em algum momento ela se viu nessa zona cinzenta junto aos produtores de elenco ou se isso trouxe a ela alguma dificuldade para ser escalada. Ela diz que “se trouxe dificuldade, eu acho uma besteira. Não só comigo, mas com outros atores”. Para tanto, exemplifica com “Arcanjo Renegado”, série da Globoplay na qual interpreta uma presidente da Assembleia Legislativa numa temporada e uma governadora na seguinte. Neste projeto, sua idade e/ou boa forma não eram relevantes para a personagem, Manuela, que é “uma mulher seriíssima, que se veste de maneira diferente das minhas outras personagens, e que experiencia perdas e ataques políticos”.
AMOR
“Tudo é incerto neste mundo (…). Menos o amor de uma mãe”. A frase do livro “O retrato do artista quando jovem”, de James Joyce (1882-1941) seria capaz de traduzir a atmosfera da peça. Segundo Guedes, que é uma das produtoras da peça, “Uma relação tão delicada” este é “um texto ao qual tive contato em 1990. Naquela oportunidade, Irene Ravache e a Regina Braga faziam parte do elenco. Fui arrebatada com aquela montagem que me levou a uma reflexão. Trinta anos depois de havê-la assistido, percebo que muitas coisas mudam, os costumes mudam, a época muda, mas a relação mãe e filha, não. Trata-se de um relacionamento pautado no amor e que passa por toda a trajetória de uma vida, desde as demandas de uma criança àquelas vividas por uma pessoa idosa, as incompreensões… É uma peça que quando se é mais jovem as pessoas se identificam com a filha, e um lado da mãe não é compreendido, e o inverso acontece quando as pessoas são mais maduras”. Rita prossegue sendo elogiosa ao texto. Segundo diz, “a autora, quando escreveu, foi muito profunda. O público se diz muito tocado, emocionado”. Mas a atriz assegura que apesar da emoção ser a tônica da montagem, ela não é “um drama pesado, é uma peça de emoção, e, também, tem momentos engraçados”.
Por tratar-se de uma encenação onde a base é o amor materno, perguntamos se em algum instante da montagem o relacionamento da atriz com a sua mãe esteve presente na cena e ela disse que “sim. A peça me remeteu a várias situações com a minha mãe, ou com as mulheres próximas a mim. Eu já as via em cena quando adaptei o texto. Tem coisas da minha vida, da minha mãe, da minha avó materna, especialmente quanto a esse olhar para com o tempo, e como isso mexeu comigo”
A mães têm um amor diferente para com os filhos. Quando se diz que o amor só muda de endereço, é uma verdade por que a maternidade traz sempre muito espelhamento e nos remete a muita coisa” – Rita Guedes
Ainda que esteja fazendo uma peça sobre maternidade, a atriz, reiteradamente, relata que a construção do papel tradicional imposto às mulheres nunca lhe caiu bem. Tanto que nunca interessou-se por casar ou ter filhos. “A sociedade impõe à mulher de que, ao chegar em determinada idade, ela precisa ser tais coisas e eu nunca aceitei isso. A gente é livre”, relata.
Segundo a atriz, o grande ensinamento que a peça traz tem a ver com o tempo, especialmente em lidar melhor com sua passagem. “Aprendo sobre o tempo. Pude perceber que o envelhecimento é visto de maneira pejorativa, como se envelhecer tornasse as pessoas improdutivas, menores. Há sempre um olhar muito ruim para os mais velhos, mas creio que, na verdade, tudo na vida tem dois lados. A infância tem um lado muito duro, assim como a adolescência também tem uma face muito negativa, bem como ser adulto – momento em que temos de resolver problemas à nossa maneira com a nossa forma de pensar, mas também há beleza nestas fases. Há uma recorrência em ver apenas a fase ruim da velhice. A peça me ensinou a ver o lado positivo da maturidade, do desprendimento da matéria, de uma maior liberdade, e que ainda que haja uma limitação física, acabamos por ser o que somos no mundo. Acabamos sendo nossa essência”, filosofa.
A gente é a nossa vivência, o que a gente cria, coleciona nos pensamentos. A velhice traz essa liberdade e as pessoas não usam muito desse ensinamento – Rita Guedes
Ainda sobre a peça, Rita sinaliza que um dos pré-requisitos para que montagem acontecesse, de acordo com a autora, a francesa Loleh Bellon, era de que as atrizes que vivessem as personagens da montagem tivessem mais de quarenta anos, por que “a idade próxima das intérpretes permitiria sair de um realismo e conferiria um olhar (mais empático). E para dividir a cena comigo chamei a Amanda Acosta, que é geralmente associada ao teatro musical. Os produtores de elenco ficam sempre no âmbito da segurança, com medo de arriscar. Inclusive a mim mesma, sempre costumam chamar para fazer personagens que têm um apelo sensual, ou que são de ideias fortes, o que é um registro que todo mundo sabe que funciona”, diz.
Dentro da história de Rita Guedes, especialmente na televisão, não foram poucos os trabalhos nos quais a atriz foi escolhida para viver jovens sensuais ou cuja diretriz estava pautada exclusivamente na beleza de sua intérprete. Uma exceção poderia ser a Doralice, de “Flor do Caribe”, que era uma empregada doméstica que torna-se uma noviça.
As pessoas estão acostumadas a me ver glamorosa, e mesmo no teatro eu me transformo, e chego a virar uma velhinha de 90 anos. Essa transformação é um elogio, uma maneira de eu transitar por lugares que tenho vontade. As pessoas têm um pouco de acomodação em achar que eu só posso fazer um tipo de personagem – Rita Guedes
Em 2006 no arrebatador sucesso de Walcyr Carrasco, “Alma Gêmea”, Rita Guedes interpretou Kátia, uma secretária voluptuosa que era chamada de “Anja” pelo caipira Crispim (Emílio Orciollo Netto), ainda que não tivesse nade santa. A novela, no entanto, foi a única parceria da atriz com o novelista, que é seu amigo de longa data. A artista comenta que “fizeram uma fofoca e eu e o autor acabamos nos chateando. Mas já está tudo bem e na hora que tiver de sair (uma parceria entre nós)”. Perguntamos se essa indisposição se deveu a um improviso no texto, algo que Carrasco não tolera e ela disse que não. “Walcyr tem um texto muito pronto já vem na boca. Ele tem uma maneira de desenhar os personagens que vai muito profundo nas suas almas. Trata-se de um texto que dificilmente precisa de caco porque o autor mesmo jáo colocou e está redondinho. É um texto muito bom para ser falado”.
De acordo com o dito pela atriz no podcast Papagaio Falante, “Um dia deram uma nota de que teria uma novela do Walcyr Carrasco e eu faria, e o Walcyr respondeu que eu não iria mais trabalhar com ele. Eu estava nos Estados Unidos, nem sabia. Fiquei muito chateada”, isso se deveu ao fato de a atriz estar numa peça de teatro do autor do qual Guedes precisou sair. “Eu disse que eu só poderia estrear, e depois precisaria de uma substituta (…). Atrasaram a estreia. Alguns atores deixaram o elenco, e do dia que eu ficaria, apenas um mês, foram todos de ensaios”, contou, sobre o, então, clima de animosidade entre ambos.
Depois de duzentos a tantos capítulos sendo chamada de Anja, o que há de angelical em Rita Guedes? “Eu acho que eu tenho muita empatia, gosto de cuidar do outro, de cuidar de quem eu gosto. Tenho esse olhar, e tento exercitar minha compaixão. O outro me toca, o sofrimento do outro isso me sensibiliza”. A ótica impressa às mulheres, especialmente às bonitas, perpassa pela crença de que a sensualidade anula inteligência ou mais, a sensibilidade. Para além dos estereótipos de um mundo operacionalizado pelos homens, que o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar, e que por isso, confundem as suas verdades com as verdades absolutas. A intérprete de uma anja, que não era exatamente angelical, afirma-se enquanto mulher cidadã do mundo. Afinal, como diz Simone de Beauvoir (1908-1986), “se a ‘questão feminina’ é tão absurda é porque a arrogância masculina fez dela uma ‘querela'”.
Artigos relacionados