Raquel Villar, destaque na série ‘Dom’: ‘Por ser negra de pele clara, estive quase sempre no papel da mulher sensual’


A atriz enfatiza esse lugar comum que acontecia em sua trajetória antes de dar uma guinada na vida e na carreira, quando se radicou em Berlim, desenvolvendo trabalhos na Alemanha e em outros países da Europa. No momento, está de volta à TV brasileira. Ela é um dos destaques da série “Dom”, sucesso da Amazon Prime Video, e, inclusive, grava no Uruguai a segunda temporada. Em entrevista exclusiva, a partir de suas observações e vivências nos últimos anos, ela traça um paralelo entre Brasil e Alemanha abordando temas como racismo, cultura e a questão sanitária da pandemia da Covid-19. “Na Alemanha, existe um esquema rigoroso que funcionou com a Angela Merkel, autoridade maior do país, indo à TV com um discurso sério, conscientizando, fazendo com que a população percebesse o grau do perigo”, relata ela, que diante das notícias sobre o Brasil, ficava preocupada com a família

* Por Carlos Lima Costa

Destaque na série “Dom”, sucesso da Amazon Prime Video, a atriz Raquel Villar estava afastada da televisão brasileira desde que deu uma guinada radical em sua vida, em 2014, e fixou residência em Berlim depois de atuar em novelas como Duas Caras, Cama de Gato, Gabriela e Amor à Vida. A oportunidade de interpretar Jasmin, personagem da série para o streaming, rendeu tanto que ela está no Uruguai, gravando alguns episódios da segunda temporada, que aborda a vida de Pedro Dom (Gabriel Leone), usuário de drogas, que para conseguir manter o vício se tornou líder de uma quadrilha.

“Fiquei muito animada quando soube que ia participar desse projeto. É a primeira série 100% nacional da Prime Video. Este produto é de uma qualidade muito forte. Não queria fazer nessa personagem nenhum tipo de estereótipo que costuma aparecer no audiovisual de outras formas. Ela é uma mulher forte que traz reflexões sobre a sociedade e a vida periférica”, ressalta sobre Jasmin, usuária de drogas, responsável por apresentar o mundo das drogas a Dom.

Raquel vivenciou situações racistas não só no Brasil, mas também na Alemanha. “Em Berlim, eu me deparei mais. No nosso país, o racismo é tão na sua cara que, às vezes, você não percebe. Infelizmente, muitas vezes, ele é naturalizado. E, na Alemanha, ninguém fala na sua cara, mas você capta no olhar. Eu lembro de, pela primeira vez, sentir o machismo e o racismo juntos. Ao mesmo tempo uma pessoa me olhou com uma cara assim tipo: ‘nossa, que gostosa’, e falou algo estranho, sussurrado. Senti algo como nunca antes. E enquanto andava de bicicleta, alguém gritava ‘estrangeira’, como se fosse algo pejorativo, porque pareço uma imigrante e ao mesmo tempo pelo tom da minha pele”, conta.

Considera que isso até já atrapalhou em âmbito profissional? “Às vezes, fico fazendo o papel da imigrante. Depois de anos você vai percebendo que existem essas situações. Sinto que, na Alemanha, eu consegui interpretar personagens diferentes, que não importavam muito quem eu era. Vivi uma astronauta e personagens mais lúdicos. Consegui representar tipos que eu nunca tinha feito, que não dependiam de como eu sou. No Brasil, por ser essa mulher negra de pele clara, estava quase sempre no papel da mulher sensual”, reflete.

Em “Dom”, a trama traz à tona a questão do vício e acaba remetendo ao debate sobre liberação das drogas. “Procuro ler sobre esse tema. A droga vem de fora, são fronteiras que se abrem, então, não é algo simplesmente comercializado na favela brasileira. Ela tem um caminho longo até chegar nesse lugar. A partir do momento que se legaliza você tem um controle. E não dá para simplesmente matar ou prender um usuário. Ele não é só um problema da polícia e sim da Saúde, ele tem que ser tratado, ir para uma clínica. Se ele for para a prisão, você não trata e piora a situação. Acaba que a prisão se transforma em uma fábrica de violência, de atraso ligado a questões históricas nessa guerra contra as drogas. E quem ordena, quem é o chefe, não está em uma comunidade. Está no Leblon ou em alguma outra praia bonita”, analisa.

Raquel Villar está no Uruguai gravando a segunda temporada da série Dom, ainda sem previsão de estreia (Foto: Le Quyen Nguyen)

Raquel Villar mora em Berlim e está no Uruguai gravando a segunda temporada da série ‘Dom’ (Foto: Le Quyen Nguyen)

Raquel havia acabado de gravar a primeira temporada, no início de 2020, quando a pandemia começou, em março do ano passado. Assim, com todas as atividades suspensas, acabou permanecendo mais uns cinco meses no Brasil, antes de retornar para a Alemanha, onde posteriormente tomou as duas doses da vacina contra a Covid-19, sendo a última, dia 14 de julho. “A Alemanha já está em um momento que é só você procurar um médico e dizer que quer tomar a vacina. Eu, por exemplo, fui à minha ginecologista, pedi e tomei”, comenta.

E reflete sobre a conscientização do povo alemão em contraponto ao brasileiro, que durante toda a pandemia tem se aglomerado em lugares públicos, bares e festas clandestinas. “A Alemanha é muito rigorosa, o sistema funciona e todos levam a sério a questão da prevenção contra a doença. Quando tivemos um número alto de casos e mortes, a Angela Merkel (chanceler do país, que depois de 16 anos, não concorrerá nas eleições do próximo dia 26), maior autoridade do país, foi à TV, fez um discurso puxando a orelha das pessoas e disse que se continuassem nas ruas, ela fecharia tudo. É importante você ver uma das maiores autoridades dando o exemplo. Existe um esquema rigoroso que funciona tendo a líder do governo conscientizando a população de que o perigo é real, além de um sistema de testes muito eficiente, portanto, existe um grande controle”, relata.

Na Alemanha, ela ficava preocupada com a família por conta das notícias que escutava sobre a situação no Brasil e a demora para o início da vacinação. “Eu ficava desesperada, ligando para a minha avó (Dilma Helena, 76 anos) a todo momento. Ela é tudo pra mim. O bom é que temos um pensamento político parecido, então, não precisava convencê-la de nada. Ela entendia a gravidade. Mesmo assim, eu falava: ‘usa máscara, não sai, fica em casa’”, lembra.

Em um determinado momento, Raquel precisou vir ao Brasil, justamente por conta da avó que ia se submeter a uma cirurgia. Na época, como queria encontrá-la, fez testes e descobriu que tinha anticorpos da doença. “Quer dizer, tive Covid em algum momento e nem percebi”, conta a atriz, que até hoje se preocupa também com a mãe, Sarah Alexandre, que trabalha em um hospital como instrumentadora cirúrgica. “Ela não teve nada. Mas fico com medo”, diz.

Raquel mora em Berlim, na Alemanha, desde 2014 (Foto: Le Quyen Nguyen)

“Angela Merkel faz as pessoas perceberem o grau do perigo da Covid, então, é importante você ver uma das maiores autoridades dando o exemplo” (Foto: Le Quyen Nguyen)

Experiência cultural

Morar e trabalhar na Alemanha não era uma meta planejada. “Não venho de uma família de dinheiro, mas juntei minhas economias e fiquei pensando no que poderia fazer para que a viagem à Europa fosse especial. No entanto, aconteceram imprevistos. Eu ia para o Festival d’Avignon, na França, depois de um mês em Berlim, e de lá eu retornaria ao Brasil”, recorda. Ao descobrir um erro na reserva e já tendo feito algumas amizades em Berlim, ela decidiu permanecer mais um tempo, soube de algumas audições e começou a participar de testes. “Estava em um momento de trabalho no Brasil onde precisava de um outro tipo de motivação. Queria sair do piloto automático que, às vezes, a gente entra na carreira. Achei que era a hora para isso”, conta.

No início, não falava uma palavra em alemão, fez testes em inglês e ao ser aprovada em um deles, decidiu ficar, aproveitar para estudar alemão e realizar outros trabalhos. O primeiro foi uma prova de fogo. “Acho que passei, porque, na verdade, era um trabalho sobre línguas, sobre comunicação, como que a gente faz tendo diferentes símbolos. Dei sorte, porque tinham umas pessoas que só falavam alemão, outras com deficiência visual, outras que se comunicavam em libras, que eu tinha aprendido mais jovem, quando era da igreja. E falava um inglês básico”, explica.

No decorrer de processo, começou a ter aula de alemão, depois participou de outra performance que também mesclava a língua local com outras. “Berlim é um lugar onde se reúnem muitas culturas. Então, tinha sempre artistas de lugares diferentes, como dos Estados Unidos e da França. Estava em uma panela de palavras diferentes. Aquilo é um pouco mais fácil do que uma questão burocrática, onde você tem que lidar tentando falar uma frase completa, uma comunicação mais formal. Ali, como artista jovem, a gente misturava tudo e todo mundo se entendia, falando em inglês, uma palavra em alemão, uma em português, então, não foi um obstáculo. Foi, na verdade, uma experiência interessante”, observa ela, que hoje fala alemão fluente e faz parte do grupo de teatro independente OhneFestenWohnsitz.

Em Berlim, Raquel integra o grupo de teatro independente OhneFestenWohnsitz (Foto: Le Quyen Nguyen)

Em Berlim, Raquel integra o grupo de teatro independente OhneFestenWohnsitz (Foto: Le Quyen Nguyen)

Durante esse anos, atuou em projetos europeus fora da Alemanha também, como no recente documentário da Áustria, Cycles, sobre ansiedade e depressão. Depois desses anos de experiência absorvendo cultura na Europa, Raquel traça um paralelo com a área cultural do Brasil, apontando o apoio governamental como uma drástica diferença. “Berlim é um lugar multicultural, uma cidade com muitos jovens. Ela não é rica se comparada a Alemanha como um todo. Ela tem uma dureza e ao mesmo tempo um escape através das artes. Uma diferença talvez seja como eles lidam com a arte, não só um investimento político, mas um pensamento. A arte nos ajuda a refletir sobre quem somos e quem podemos vir a ser, tanto que a primeira vez que ganhei um prêmio na minha vida foi lá. Nosso grupo independente de teatro ganhou do governo esse prêmio de incentivo, porque a peça falava de uma questão histórica sobre não violência e tolerância. Não visa somente o entretenimento. Lá eu me arrisquei e construí novas perspectivas artísticas. Isso me fez ficar”, ressalta Raquel que estreou na TV na novela Duas Caras, em 2007.

“Nós brasileiros somos tão criativos, temos tantas histórias, a mistura de diferentes culturas, só que não temos essa noção. Ao mesmo tempo a gente cria sem nem saber que está criando, fazendo arte. Nos falta o entendimento do quão forte é a nossa cultura, a nossa história e um incentivo do governo, que, no momento, não acontece. É como se o artista fosse um vilão, ele não é tão levado a sério. O incentivo tem que vir quando você está precisando. A cultura pode salvar. Para mim, o teatro foi importante. Lembro que comecei a fazer ainda criança, na igreja evangélica Cristo Vive, na Zona Norte, do Rio, onde eu era levada pela minha avó. Lá também aprendi libras. Muitas vezes, a igreja tem esse papel, que deveria ser do governo, de cuidar, levar cultura, teatro, dança para as crianças”, defende. Aos 15 anos, após a morte do pai, Raquel buscou o teatro profissional, no Teatro Gláucio Gil, em Copacabana onde tinha a Cia de Teatro Contemporânea.

"Por ser essa mulher negra de pele clara, aqui estava quase sempre no papel da mulher sensual”, frisa sobre suas personagens no Brasil (Foto: Le Quyen Nguyen)

“Por ser essa mulher negra de pele clara, eu estava quase sempre no papel da mulher sensual”, frisa sobre suas personagens no Brasil (Foto: Le Quyen Nguyen)

Mulher forte, Raquel é engajada em movimentos feministas e na luta contra o racismo. “Sou mulher negra de pele clara, então, acontece também por isso. Se eu não tiver essa consciência, vou ficar cega no meio de uma luta e caminhada. Então, é importante falar, tentar me conscientizar, escutar outras pessoas. Isso faz parte da evolução para a gente ter uma sociedade mais igualitária onde todo mundo se sinta bem, respeitado e tendo as mesmas oportunidades. Isso é o que todo mundo quer. Acho que meu trabalho é totalmente direcionado às artes, à cultura, não só ao entretenimento. Não me interessa ser só uma bonitinha, me interessa trazer reflexão para que possamos evoluir”, explica ela, que retorna do Uruguai no final do mês e deve permanecer no Brasil o restante do ano. À princípio, só vai retomar sua história com Berlim, em 2022.