*por Vítor Antunes
Uma das mais famosas frases do intelectual negro Milton Santos (1926-2001) diz que “O geógrafo é, antes de tudo, um filósofo, e os filósofos são otimistas, porque diante deles está a infinidade”. A afirmação também pode se estender aos artistas. Cria da Rocinha, indicado por dois anos consecutivos ao Emmy de Melhor Ator pelo protagonismo na série “Impuros“, Raphael Logam retorna ao teatro em “O Método Grönholm”, peça do autor espanhol Jordi Galceran, dirigida por Lázaro Ramos. Além desta, estará em mais uma temporada de “Impuros”, série da Star+, e terá lançado o filme “Faixa Preta”, longa cujo elenco e equipe técnica é majoritariamente composto por negros. De falas assertivas, e consciente de seu papel social, Raphael relata alguns desafios aos quais os atores racializados passam para afirmar-se em sua profissão, especialmente no que tange aos negros, ou hiperssexualizados ou marginalizados. O ator percebe avanços do povo preto no audiovisual, reconhece que há muitos caminhos a percorrer, mas, acredita que, “às vezes, a gente mesmo precisa se reeducar no próprio ambiente conversar e acostumar-se a falar do racismo quando necessário for preciso montar estratégias para combatê-lo”.
ALÉM DO MÉTODO
“O Método Grönholm” é uma peça de Jordi Galceran, encenada entre 2007 e 2008. No início de 2020, a montagem retornou aos palcos e precisou ser interrompida em decorrência da crise do Coronavírus. Com a melhora dos panoramas sanitários em 2022, a peça voltou aos teatros e torna ao cartaz agora, no início de 2023. No elenco, Tatiana Tibúrcio – que é uma das diretoras – além de Ana Sophia Folch, Luís Lobianco e Raphael Logam. Consagrado no streaming com “Impuros”, o ator está de volta ao tablado, local onde considera ser sua casa. “Entrei pro teatro em 1998 e minha primeira aparição no audiovisual foi em 2004, em “Irma Vap”. O palco é o meu tesão a minha forma de expressar.
Por mim, eu estaria fazendo muito mais teatro, desde sempre. Mas, infelizmente, no Brasil, ou fazemos um teatro muito rico ou um “no sangue”. E fazer teatro no sangue e ter que pagar as contas é algo muito difícil – Raphael Logam
Ainda segundo ele, “o audiovisual é algo que me apaixona, me conquistou e abraçou de uma forma muito boa, mas o meu amor pelo teatro não diminuiu, pelo contrário. E é ótimo voltar à cena depois de uma pandemia, diante da catástrofe que foi, e tendo tanta coisa acontecida”. A peça estava sendo encenada pouco antes de decretada a paralização motivada pelo Coronavírus e retornou quando a pandemia amainou. “O Método Grönholm” foi meu primeiro e último trabalho nesse período”.
“O teatro sempre vai me puxar quando necessário. Sei que quando ele precisar de mim eu estarei lá assim como o contrário – Raphael Logam
Na peça, quatro candidatos ao cargo de executivo de uma multinacional disputam entre si a possibilidade de estarem num emprego dos sonhos. O processo de seleção, muito pouco ortodoxo, desafia a lógica, a ética, e o bom senso em alguns casos. Raphael interpreta um diretor comercial de uma empresa de alimentos que disputa uma função acima daquela que ocupara anteriormente. Ainda que o ator seja negro, o seu personagem não é racializado, o que é um avanço. Na maioria das vezes, ainda na seleção de elenco, a etnia dos personagens já vem previamente estabelecida. E em alguns casos, até mesmo o seu histórico escolar é discutido: “Na peça não abordamos o que personagem fez para chegar até ali, se estudou em escola pública ou não, ainda que este seja um tema importante”.
Logam salienta que a questão afirmativa, na peça, é outra, que não a negra: “As bandeiras que queremos trazer com a montagem são pela causa LGBTQIAPN+, a das mulheres… O preconceito que existe no personagem do Luís Lobianco, por exemplo. Ainda que inteligente, o meu personagem é mais atrapalhado, ansioso, ainda que seja o primeiro a observar que aquilo tudo ali é um jogo, e que ele já esteve em outro semelhante. Mas em nenhum momento a questão racial vem à sua frente”.
E ele prossegue: “É chegada a hora de não falarmos tanto do passado. Por que razão devo, em todo personagem, dizer que ele foi um necessitado ou que chegou até ali sofridamente? Precisamos colocar personagens pretos como médicos e começar a história a partir dali, de modo que o público entenda que ele é médico e pronto, sem a necessidade de ficar explicando o que fez ou de onde veio. Isso acaba, de alguma forma, alimentando o racismo. E a peça aborda esse lado”, diz.
Logam destaca também o(s) reencontro(s) com Lázaro Ramos. Trabalharam juntos como atores, tornaram-se amigos, substituíram-se em trabalhos e agora estão retornam a trabalhar juntos. O marido de Taís Araújo o dirige nesta montagem: “Ramos é um orixá. Todo artista preto olha para ele e o coloca num altar. Afinal, ele era um menino que morava numa ilha na Bahia que lutou e venceu. É a prova viva de alguém que conseguiu construir sua família fazendo arte. (…) Eu me vejo muito nele por que passamos por questões muito semelhantes durante a vida e estamos conseguindo quebrar a máquina que já estava montada”, afirma, sobre o showbiz.
Em 2010, Logam esteve em “Gimba”, peça com um elenco negro de peso. Além dele, Antônio Pitanga, Sílvio Guindane e Taís Araújo, que acabou por aproximá-lo de Lázaro. “Ele foi assistir à peça, começarmos a trocar muita ideia, e depois, a nos encontrar nos sets e fazer projetos juntos. Eu já estava muito feliz em estar em sua companhia. Fui convidado a substituí-lo em “M-8, Quando a Morte Socorre a Vida” e, para mim, este foi um ponto de virada profissional, pois faria um personagem incialmente pensado para ser vivido por meu ídolo. Embora ele não tenha podido fazer o filme, acabou realizando uma participação afetiva no longa. Anos depois, quando ele próprio foi dirigir “Medida Provisória”, convidou-me para fazer o filme e eu não pude em razão de estar nas gravações de “Impuros”. Mas retribuí fazendo uma participação em seu filme. É uma honra imensurável poder estar com atores como ele”.
MERITOCRACIA E ANCESTRALIDADE
Um dos itans – lendas dos orixás – diz que Oxóssi não precisa de mais do que uma flecha para atingir seu alvo. Não à toa, Raphael traz o símbolo do orixá em seu braço. Acertado e definido o alvo profissional, ainda que tenha transitado por personagens mais expressivos que outros, o ator achou seu lugar no streaming. “Recebi o convite para fazer o filme “Pacificado”, onde interpretaria o irmão do chefe do morro, que não era bandido, mas portador de depressão. Ainda que aquele fosse um favela movie – algo que eu não queria fazer – eu teria que estudar e preparar o personagem (para falar de sua depressão). Decidi fazê-lo por ter Léa Garcia em seu elenco, e Bukassa Kabenguele, como irmão. Fui aprovado no teste num momento em que eu estava na Espanha graduando meus alunos de Capoeira. Voltei ao Brasil e gravei-o quando surgiu o convite para o “Impuros”, outro favela-movie”.
Há, especialmente entre os atores negros, reservas para com os favela-movies. Via de regra, nestes projetos, cabe a estes profissionais interpretar os personagens mais vulnerabilizados socialmente, ou os bandidos. Mesmo assim, nem sempre são eles os protagonistas. Raphael, convencido por sua empresária, fez o teste para o “Impuros”, por mais que, na letra fria, o projeto estivesse na canastra do preto-favelado-e-marginalizado. E a série foi muito bem sucedida. “Com este trabalho foi possível que o audiovisual me respeitasse, assim como as emissoras passaram a me olhar de maneira mais respeitosa e fora do estereótipo. Na época em que iniciei na carreira não havia o streaming: era o teatro, cinema ou TV e nesta última nunca tive muita chance”.
Segundo o ator, a “meritocracia não existe”, e esta fala torna-se ainda mais fundamentada quando nota-se quando “atores brancos não preparados acabam sendo destinados para papeis importantes. A pele branca, o olho claro e o cabelo liso trazem portas abertas. Eles não precisam mostrar talento: A cara deles vende. E não adianta falar que não há atores negros ou que não há tempo para prepara-los. Isso não é verdade. Eu sempre sugiro aos produtores que elenco que se dediquem a procurar talentos pretos em vários lugares. Ter, tem. Não é honesto dizer que se conta nos dedos a quantidade de atores negros. Acaba sendo um número pequeno por que não pequenas as oportunidades. É duro quando dizem que não há tempo para preparar [um ator preto]. Quando dizem não estar achando bons atores negros, estão procurando-os aonde?”, questiona.
Não são poucos os exemplos de papéis que deveriam ser interpretados por pessoas pretas e que acabam sendo vividos por pessoas brancas. É clássico o exemplo de “A Cabana do Pai Tomás”, no qual a Globo recorreu ao blackface para o personagem título, vivido por Sérgio Cardoso (1925-1972). A “Gabriela” da novela homônima, nas duas circunstâncias em que foi ao ar, 1975 e 2002, foram interpretadas por mulheres não-negras. E no caso da primeira versão, de 1975, o diretor, Walter Avancini (1935-2001), alegou, ao documentário “A Negação do Brasil”, de 2000, que “não havia atriz preparada para viver a personagem. Era uma impossibilidade. Era levar ao desastre colocar uma atriz negra não preparada”. O papel coube à Sonia Braga. Na época, o personagem chegou a ser oferecido, inclusive, para Gal Costa (1945-2022). Ainda que Jorge Amado (1912-2001) apresente a protagonista, no livro, como uma “mulata brasileira”. Mesmo hoje, em muitos casos, os personagens já vêm racializados nos próprios perfis: “Fulano de Tal, tantos anos, preto”.
“O artista que tem a pele clara, os olhos claros e calos lisos ele já sai lá na frente. Nós, a contrário temos que provar que somos bons o tempo todo, fazer 15 testes, por que a máquina escolhe o ator branco primeiro. Isso sem levar em conta a questão do número de seguidores. Por isso digo que a meritocracia não existe – Raphael Logam
O primeiro papel de destaque do ator na televisão foi como o protagonista de “A Turma do Pererê”, da TV Cultura. “Foi ali o meu primeiro papel grande no audiovisual e o meu primeiro encontro diário e próximo com a câmera”. Pensou o ator que isso poderia ser vertido em papéis robustos na televisão, coisa que não aconteceu. “Os convites se avolumaram sim, mas para fazer participações, ou como bandido ou em algum papel estereotipado”. Um deles, por exemplo, reitera a hiperssexualização a qual são alvo os homens negros. No “Casseta e Planeta” coube ao ator fazer uma paródia de Kid Bengala, ator de filmes x-rated. O que acabou resultando num afastamento voluntário de Logam do audiovisual.
Aceitei fazer estes papéis por que precisava pagar as contas. Depois passei a negar, ainda que atemorizado. Indicava outros atores para fazê-los, porém instruindo-os de que não fizessem, exclusivamente, papéis como estes – Raphael Logam
Ainda que considere importante a questão afirmativa, Logam diz que “nós, pretos, precisamos nos reeducar e não nos preocuparmos em TER QUE falar sobre racismo. Quem tem que falar sobre isso é quem o inventou. A fala sobre esse tema deve ser orientada quando houver a necessidade da discussão de estratégias. Quando necessário o debate, eu ponho de frente amigos que são intelectuais pretos, como o Roger Cipó, o Jonathan Raimundo, o João Bigon, o Preto Zezé. Agora temos um Ministro, o Sílvio Almeida, outro pode comentar de forma acadêmica e intelectualizada. Inclusive, quando eu e outro amigos nos encontramos não falamos sobre racismo. Encontramo-nos para brindar a vida. Por podermos, ao mesmo tempo, ir a um restaurante caro e ir celebrar na favela onde somos ‘crias’. Não só por havermos sido aprovados para um teste para novela ou pelo sucesso profissional, mas por estarmos vivos, graças aos Orixás”.
A sabedoria ancestral africana ensina que o respeito aos mais velhos é algo inegociável. E que Oxóssi, ao ganhar de Oxalá o diadema que compõe sua indumentária, credenciou-o a ser o rei dos caçadores. Certeiro. Preciso. Que com o ofá abre os caminhos pelas florestas e matas cerradas. Logam é capoeirista e diz que ela lhe deu “suporte necessário durante a vida”. Um dos maiores capoeiristas, Besouro Mangangá, reza a lenda, não morreu. Transmaterializou-se, de homem em besouro. A palavra de um negro tem o peso da poesia que até tolera o silêncio mas não admite ser silenciada. A quem tem a resistência como ninho, palavra é transformação, tal como Exu é movimento.
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