*por Vítor Antunes
Estreou no Globoplay uma trama muito esperada pelo público noveleiro. Trata-se de Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu. Exibida em 1990 e tida como um dos maiores sucessos da Globo daquele ano, a trama teve de dividir os holofotes com outra obra da Manchete, Pantanal, um fenômeno. Sem poder “esconder” Regina Duarte – protagonista absoluta da trama, mas que não tem aparecido nas divulgações de inúmeros remakes e convites para celebrações, como o tributo de Manoel Carlos, por exemplo, desde que a atriz migrou para a política -, a Globo desta vez optou por colocar no pôster da novela uma foto dela e de Tony Ramos, para não ficar algo tão acintoso como em “História de Amor“, “Páginas da Vida” e “Por Amor“, novelas protagonizadas por Regina e nas quais ela não aparece na thumbnail.
Claudia Raia apareceu nua e levantou uma grande polêmica. Engordou para fazer Adriana, a bailarina da coxa grossa. Porém, segundo disse em entrevista para o JB, logo em seguida precisou emagrecer, pois passou a ser hostilizada pelo público, que dizia que ela estava gorda. Silvio de Abreu teve que ajustar suas cenas para encaixar a nova forma física de Adriana – sua personagem – na novela.
Relembre algumas das histórias pouco conhecidas de Rainha da Sucata que circularam no lançamento da novela. Como a da escalação, na qual José Wilker (1944–2014) era cotado para entrar na trama, mas acabou não atuando. Outra é que a Globo não teria gostado da abertura – hoje icônica – da boneca de sucata dançando lambada, segundo relato à época do Jornal do Brasil.
Ao contrário do que se diz, Rainha da Sucata não costumava perder para Pantanal. Pelo contrário, a Globo manteve fórmulas para fazer com que se mantivesse o interesse pela sua trama. Porém, o Jornal do Brasil noticiou que, de forma episódica, houve derrotas para a Manchete. Uma delas foi em 8/5/90. A necessidade de afirmação de Rainha era tão grande que a Globo divulgava Rainha da Sucata durante a exibição da própria novela, nas vinhetas de intervalo. Ainda em junho de 1990, a trama passou a mostrar capítulos mais longos e foi exibida sem vinheta de encerramento.
Algumas das novidades eram o retorno de Sidney Magal, que à época assinava apenas Magal, aos estúdios depois de sete anos para gravar o tema de abertura da novela. No campo musical, Rainha também teve a estreia de Adriana Calcanhotto, que chegou à trilha da novela após fazer sucesso no festival de Montreux, na França. Sua música era “Naquela Estação”. Como havia uma academia de lambada – a Lambateria Sucata – na trama, as cenas em que se dançava o ritmo que dominou o fim dos anos 1980 e o início dos 1990 eram coreografadas por Carlinhos de Jesus.
Córa Rónai, do JB, era uma das que não via Rainha da Sucata com bons olhos: “Rainha é uma novela engraçada e cheia de ideias, muitas das quais despudoradamente colhidas no cinema, mas peca pela falta de sutileza. Tudo é exagerado”. E, ao comparar a trama global com a da Manchete, dizia que “não entendo nada de Pantanal, mas diante dessa natureza deslumbrante e desconhecida, qualquer imagem do Rio ou de São Paulo fica com um ranço de arquivo”.
Rainha da Sucata foi a estreia de Silvio de Abreu nas novelas das oito, contou com o auxílio de Alcides Nogueira na escrita e também com a consultoria de Danuza Leão (1932-2012). Inicialmente, uma personagem que seria uma italiana espaçosa virou uma armênia, em homenagem à origem de Aracy Balabanian (1940-2023). Ela se inspirou nos pais, Raphael e Ester, para viver Dona Armênia, a histriônica personagem da trama, que flertava com a vilania. Em 1992, a personagem saiu de Rainha da Sucata e foi para Deus nos Acuda.
DA GUERRA DOS SEXOS À GUERRA DE CLASSES
Em sua biografia, “Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte“, da Coleção Aplauso, o autor conta alguns bastidores de “Rainha“, que não foram exatamente tranquilos. “Estreou com 30 capítulos escritos e, já na segunda semana de exibição, senti que não tinha engrenado. A audiência era boa, o público parecia se divertir, mas ninguém comentava. E sou de opinião que novela deve ser como catapora, precisa pegar; e nem tem de fazer sentido, precisa fazer sucesso, porque é o circo do povo. Na verdade, os problemas começaram uma semana antes de a novela ir ao ar, quando Fernando Collor de Mello assumiu a Presidência e os brasileiros viram suas contas congeladas com o Plano Collor, que procurava estabilizar a inflação pelo “congelamento” do passivo público. Era uma época de inflação absurda, e a novela girava em torno do vil metal – a história de uma família quatrocentona falida e de uma família cafona, cheia da grana – mostrando que, na sociedade moderna, o dinheiro estava mudando de mãos”.
Ele prossegue: “Tive que reescrever vários capítulos, pois o confisco do governo inviabilizava muitos personagens, que negociavam com dólar, aplicavam no over, práticas que tinham acabado de uma hora para outra. Os capítulos iniciais já estavam gravados, e precisei reescrevê-los às pressas para estrear dentro da nova realidade econômica do país. Foi um trabalhão, e, quando a novela estreou com os personagens reclamando do dinheiro preso, os jornais publicaram que a Globo já sabia do confisco e não avisou a população. Isso criou uma imensa má vontade do público e da imprensa contra a novela, apesar de não passar de um boato maldoso e infundado. Era comum aparecer nos jornais insinuações sobre a minha incapacidade de levar a contento uma trama no horário principal da emissora: ‘Como é que ele não quer mais fazer chanchada? Ficou pretensioso e agora quer fazer novela das oito’. Esse tipo de pensamento é engraçado, já que numa carreira é fundamental não se ter medo de se lançar a novos desafios. Há que se fazer de tudo”.
Sílvio continua: “Com tanta coisa contra e ainda sentindo a fria recepção do público com relação à novela, tive de enfrentar o crescimento de “Pantanal“, a excelente novela de Benedito Ruy Barbosa, que era apresentada na extinta Rede Manchete. Eram tempos de ‘vamos derrubar a Globo’, agora apareceu a Manchete e todos os elogios iam para a concorrência, que, assim como a minha, era um ótimo programa. (…) Sabiamente, a TV Manchete esperava Rainha da Sucata acabar para começar sua novela, que ganhava cada vez mais números de audiência em cima da linha de shows e só concorria com a novela da Globo no prestígio junto à imprensa”.
Acrescenta ainda que “como se tudo isso não bastasse, um gravíssimo problema particular apareceu em minha vida logo depois da sinopse ter sido entregue. Ubaldo, meu irmão, acometido de uma infecção no cérebro, voltou para o Brasil, quase sem esperanças de vida. Vê-lo daquela maneira, perdendo os movimentos, a visão, a fala, ia me acabando dia a dia, mas, além da novela, ainda tinha que manter o equilíbrio em casa, principalmente o dos meus pais que, já bem velhos, assistiam à degradação do filho querido. Todos em nossa família cuidávamos dele da melhor maneira que podíamos e eu necessitava urgentemente encontrar alguém para ser meu colaborador no texto da novela. Não tive sorte, tentei várias pessoas e nenhuma engrenava. Complicando ainda mais, era a primeira novela que escrevia em computador e a minha adaptação àquela máquina infernal, que sumia com meus capítulos a cada pique de luz, me deixava maluco”.
“Enfim, com tudo isso, ia tocando a história e só depois percebi onde estava meu erro como autor na condução da novela: sem tempo hábil para raciocinar e desenvolver as histórias principais, ia mantendo tudo em fogo brando, fazendo cenas episódicas, cotidianas, de histórias paralelas, arrumando gags e acontecimentos meio sem importância, esperando a hora de poder, realmente, ter a cabeça tranquila para mergulhar na história que interessava. Evidentemente, não percebia isso na época, e foi Gilberto Braga quem me alertou e, depois da morte de meu irmão, por volta do capítulo 50, me ajudou a dar um rumo de sucesso para a Rainha da Sucata. A história continuou a mesma, mas o que seria narrado em forma de comédia passou a ter um gosto de drama, centralizado nos personagens de Maria do Carmo (Regina Duarte), Edu (Tony Ramos) e Laurinha (Glória Menezes), o trio de protagonistas. O riso não foi abandonado, e sim reservado a outro núcleo de personagens, todos com enorme aceitação popular, como dona Armênia (Aracy Balabanian) e suas ‘filhinhas’: Nicinha (Marisa Orth), Caio (Antônio Fagundes) e Adriana (Claudia Raia). Contei o que queria contar, mas de uma maneira que os espectadores entendessem e se empolgassem. Misturei comédia com drama, riso com tragédia e conquistei a audiência do horário, que exige um núcleo dramático mais forte, gosta de torcer pela mocinha que sofre. Agarrei de vez esse público quando Edu e Maria do Carmo se casam e ele se recusa a ir para cama com ela”.
E relembra a entrada de Alcides Nogueira. “Por volta do capítulo 100, consegui encontrar o talento profissional que eu buscava para ficar a meu lado, e Alcides Nogueira entrou para me ajudar. Excelente autor e companheiro maravilhoso, foi a recompensa que ganhei depois de toda a infelicidade que provei no início da empreitada. Profissional irreparável, amigo carinhoso e escritor criativo, Alcides Nogueira gosta de escrever à noite e eu de dia, e essa diferença de fusos horários até contribuiu para nosso entrosamento. Acordava às seis da manhã, ligava para ele, que tinha acabado o capítulo que lhe passara no dia anterior, ele me enviava, eu relia, colocava os meus chistes, escrevia o capítulo seguinte, fazia a planificação do próximo dele e, às oito da noite, lhe passava para ele escrever de madrugada. Foi um período tranquilo e agradável, com a novela engrenada no gosto do público, com todo o Brasil repetindo o bordão ‘Na chon!’ de dona Armênia, as mulheres usando franja como Maria do Carmo e os pontos de audiência subindo cada vez mais. Foi a segunda vez que enfrentei uma crise profissional como escritor de novelas, mas outras ainda estavam por vir”. Rainha da Sucata, que já era escrita no computador, mas ainda não havia como transmitir direto. E quando ocorriam problemas na gravação, a solução era parar tudo lá no estúdio, no Rio de Janeiro, e esperar as modificações do autor no dia seguinte”.
Artigos relacionados